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Palmira Silva

13 de Junho, 2006 Palmira Silva

Mundial proibido em Mogadishu

A guerra civil na Somália, embora intermitente, tem sido uma constante desde 1977. Guerra civil que escalou a partir de 1991 quando foi derrubado o ditador Mohamed Siad Barre, por senhores da guerra tribais que, desde então, têm semeado o terror e a insegurança na Somália na sua luta pelo poder.

As Nações Unidas ajudaram ao estabelecimento de um governo interino há dois anos, mas esse governo situado em Baidoa, a 250 km de Mogadiscío, não conseguiu entrar na capital, devastada por guerras entre senhores da guerra.

Segunda-feira, a União dos Tribunais Islâmicos, UTI, assumiu o controle da capital, expulsando os ditos senhores da guerra que a controlaram nos últimos 15 anos. Os habitantes da capital somali afirmaram-se inicialmente aliviados pela vitória da UTI, que pôs termo a décadas de insegurança e violência.

Mas agora os habitantes de Mogadiscío têm protestado energicamente as decisões dos fundamentalistas islâmicos que, não obstante os insinceros protestos em contrário, pretendem impôr o seu modelo aberrante de sociedade, nomeadamente a Sharia, a todos.

De facto, a milícia islâmica que controla a cidade proibiu a transmissão da Copa do Mundo de futebol, uma imoralidade ocidental. Todas as muitas exibições públicas improvisadas dos jogos de futebol do Mundial (não existe o equivalente à TvCabo na Somália) foram interrompidas à força pelos fanáticos islâmicos, desencandeando uma onda de protestos dos milhares de somalis que pretendem ver os jogos.

«Não permitiremos a exibição do Campeonato do Mundo porque isso corrompe as nossas crianças a quem nos esforçamos por ensinar a via islâmica da vida», declarou Abdul Kadir Ali Omar, vice-presidente da UTI, um grupo suspeito de ligações à Al-Qaeda.

A rota para a talibanização da Somália, análoga à do Afeganistão, parecia-me imparável mas aparentemente o futebol é o único catalizador capaz de despertar os somalis da complacência em relação ao fundamentalismo islâmico!

De facto, em todas as zonas da capital ainda sob o controle dos senhores da guerra os residentes mobilizaram-se para assistir à transmissão dos jogos e fora de Mogadiscío, nomeadamente em Jowhar, o reduto dos senhores da guerra 90 km a norte da capital, a população juntou-se em cinemas públicos para assistir ao Mundial.

«Nós não aceitamos que a milícia islâmica nos impeça de assistir à Copa do Mundo» afirma um residente de Mogadiscío, Ahmed Yusuf, «Continuaremos a manifestar-nos até eles cederem».

«Quando os islamistas assumiram a segurança da nossa cidade pensámos que teríamos liberdade» disse por sua vez Adam Hashi-Ali, um adolescente fã de futebol, «Mas agora eles têm impedido que nós assistamos ao Mundial».

11 de Junho, 2006 Palmira Silva

Fado, futebol e religião

Hoje é a estreia da selecção do Irão no Mundial 2006, estreia que promete ser animada, não apenas pelo que se passará no relvado durante os 90 minutos do jogo. Jogo que já agora todos podem acompanhar no canal francês M6, isto é, se a TvCabo não repetir a façanha de ontem durante a transmissão do jogo Suécia-Trinidade e Tobago, quando a meio deste cortou o sinal à M6.

Mas a animação a que me refiro advém dos protestos marcados para hoje em Nuremberga, onde a equipe do Irão defrontará o México. Vários grupos marcaram os protestos depois de grupos neo-nazis terem anunciado que planeavam cerimónias de solidariedade a Ahmadinejad – e de apoio ao seu negacionismo do Holocausto e ataques a Israel. Embora Ahmadinejad seja fan de futebol não se deverá deslocar à Alemanha para o evento, a não ser que contra todas as previsões o Irão passe à fase seguinte, embora o seu representante Mohammad Aliabadi deva comparecer.

PS: A TvCabo cortou novamente o sinal à M6, quando se iniciava a transmissão do jogo Sérvia-Holanda. Convido os nossos leitores a protestarem junto à TvCabo e indagarem da legalidade do procedimento com a Deco e o Provedor de Justiça.

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11 de Junho, 2006 Palmira Silva

Left Behind: revelando o fundamentalismo cristão

Imagina: és um soldado de um grupo paramilitar cujo objectivo é transformar a América numa teocracia cristã e estabelecer a sua visão mundana do domínio de Cristo sobre todos os aspectos da vida. É-te fornecido armamento high-tech e és instruído para enfrentar os infiéis nas ruas de Nova Iorque. A tua missão – simultaneamente uma missão religiosa e uma missão militar – é converter ou matar católicos, judeus, muçulmanos, budistas, homossexuais, todos os que advoguem a separação do estado e da Igreja, especialmente cristãos moderados «de café». A tua missão é «conduzir guerra física e espiritual»; todos os que resistirem devem ser mortos.

Esta é a melhor descrição que encontrei do novo jogo cristão que, antes do lançamento, previsto para Novembro, destinado a ser uma apropriada prenda de Natal, está a fazer furor nos Estados Unidos, «Left Behind: Eternal Forces».

O jogo, de cujo grupo de «conselheiros» faz parte um dos colaboradores do pastor Rick Warren, da Purpose Driven Church, é baseado nos livros «Left Behind»- um fenómeno de vendas comparável ao «Código da Vinci» com mais de 65 milhões de cópias vendidas – cujos fans rábidos são pastores dominionistas e homofóbicos, como, p.e., James Dobson da Focus on the Family que doutrinam incontáveis militantes cristobots para os seus exércitos de Deus.

Aliás, os autores dos livros são, como não podia deixar de ser, rábidos fundamentalistas cristãos, em especial o pastor ultra-fundamentalista, criacionista puro e duro, Tim LaHaye – fundador da American Coalition for Traditional Values, da Coalition for Religious Freedom, da organização anti-feminista Concerned Women for America e do Institute for Creation Research . Jerry Jenkins, ligado ao Moody Bible Institute, é o co-autor da série.

Quer o jogo quer os filmes retratam bem os fundamentalistas evangélicos americanos e o seu desejo dominionista. Assim como retratam bem o alvo principal do respectivo ódio incontido, bem evidente em toda a série: a laicidade.

Mas os alvos habituais de todos os fundamentalistas cristãos, a ciência e os homossexuais, não são esquecidos. Nos livros o anti-Cristo tem nome, Nicolae Carpathia, um romeno que preside às Nações Unidas, que, num detalhe não despiciendo, foi concebido «artificialmente» a partir de material genético de homossexuais:

«O marido de Marilena, Sorin, e o seu amante homossexual, Baduna Marius, forneceram material genético para a concepção de Nicolae».

Isto é, o Anti-Cristo é um produto da ciência e de homossexuais.

Um dos braços direitos de Nicolae é um bispo americano pelo que não admira que os católicos sejam advertidos em relação aos livros, considerados anti-católicos. Aliás, LaHaye, segundo a Times um dos 25 pastores evangélicos mais influentes na América, tem um extenso historial de propaganda anti-católica (e anti-semita) que inclui ter suportado um grupo chamado Mission to Catholics. Um dos panfletos debitados pelo grupo asseverava que Paulo VI era «o arquipadre de Satã, um farsante, um anti-cristo».

Larry Eskridge do Institute for the Study of American Evangelicals, vai mais longe que a Times e chama a LaHaye «o mais influente evangélico americano dos últimos vinte e cinco anos». Na realidade, LaHaye foi decisivo na primeira eleição de Bush, sendo após uma reunião com o grupo Committee to Restore American Values, liderado por LaHaye, em que este questionou o empenho de Bush em transformar a América numa teocracia, que os teocratas americanos decidiram empenhar-se a fundo na eleição de Bush, sem quaisquer hipóteses de ganhar as eleições não fora este inestimável auxílio

Não deixa de ser curioso que a obsessão apocaliptica de LaHaye, traduzida na série «Left Behind», esteja centrada no Iraque e que LaHaye esteja convencido que o Armagedão será lançado do quartel-general do Anti-Cristo na Babilónia. De facto, desde 1970 que LaHaye prega que Saddam Hussein é um emissário do Demo. Em 1999, LaHaye escreveu que Saddam é «um servo de Satã», possuído por um demónio e que preparava a «vinda do Anti-Cristo». Discurso com semelhanças assustadores com o do «eixo do Mal» de G.W. Bush…

10 de Junho, 2006 Palmira Silva

A teia dos fundamentalismos religiosos

Recentemente o Vaticano avisou os católicos ditos «liberais» que «Não há Teologia católica sem aceitação do Magistério da Igreja» – isto é, que ser católico implica a subordinação total aos ditames do Vaticano e que é heresia pensar pela própria cabeça. Aviso enfatizado pelo representante-mor do Vaticano cá no burgo que advertiu os católicos portugueses para os malefícios da ciência e da análise racional, destacando que «os discípulos de Cristo não podem cair nesta tentação [usar a razão]».

Aviso explicado na última emanação oficial do Vaticano que identifica o «inimigo» da fé:

«A ciência e a técnica convenceram algumas pessoas a pensar que tudo é fruto da evolução e que o homem não tem nenhum Deus».

Para além da execrada ciência, nomeadamente as ciências da vida que confirmam como absurda e desnecessária a hipótese de um «criador» todo-poderoso e refutam a existência de uma alma, isto é, destroem o mito cartesiano da separação res cognitas (consciência, mente) e res extensa (matéria), a técnica exacerbou os perigos modernos para a «salvação» do referido mito «alma» através da difusão de conhecimento via a World Wide Web, incluída nos «males» que um bom católico deve evitar.

O medo dos totalitários religiosos da difusão virtual de conhecimento, nomeadamente via sítios da internet em que são dissecadas e desmistificadas não só as respectivas mitologias como as pseudo «verdades absolutas» que as religiões arrolam como seu património, não é restrito ao catolicismo. Mas enquanto as hierarquias católicas não podem, como desejam, impôr a censura ou outros métodos mais drásticos para calar as vozes críticas nos países, democráticos, em que a sua mitologia é maioritária – obrigando os fundamentalistas católicos a outras tácticas para o efeito – tal não acontece na maioria dos países islâmicos, onde os blogs e jornais virtuais críticos do fundamentalismo islâmico começam a florescer.

A reacção dos fundamentalistas foi na linha do esperado. Assim, no Egipto, aparentemente «infectado» por bloggers, continuam presos três bloggers, Alaa Abd El-Fatah, Mohamed Sharkawy e Karim El-Shaer, depois de dois outros, Malek Mostafa e Asmaa Ali, terem sido libertados.

No Irão, a prisão de bloggers e de jornalistas que colaboram em jornais virtuais é de tal forma prática corrente que seria fastidioso enumerar todas. A última de que há notícia é a prisão do blogger Abed Tavancheh. Ramin Jahanbegloo, um advogado da laicidade e da não-violência, continua preso na infame prisão de Evin, onde foi torturada, violada e assassinada a fotojornalista Zahra Kazemi-Ahmadabadi.

Na Arábia Saudita, o jornalista Rabah al-Quwai’ foi libertado, após 13 dias de detenção, depois de ter assinado uma declaração reconhecendo ter denegrido a fé islâmica, reconhecendo não ser um verdadeiro muçulmano e prometendo defender os valores(?) islâmicos no seu trabalho futuro. Caso não assinasse esta retractação, seria acusado de «riddah» – renúncia do Islão – «crime» punido com a morte.

Os insultos à fé islâmicos merecedores de morte se o jornalista reincidir na heresia, são … críticas feitas por Rabah al-Quwai’ às rígidas interpretações religiosas dos wahabitas.

9 de Junho, 2006 Palmira Silva

Linha dura do Vaticano reafirmada

O Vaticano, mais concretamente o Conselho Pontifício para a família, presidido pelo Opus Dei Alfonso López Trujillo, debitou um documento de 57 páginas reafirmando todas as posições anacrónicas da Igreja de Roma em relação à sexualidade e reprodução.

O documento, intitulado «Família e Procriação Humana», pretende ser uma revisão das posições oficiais da Igreja nas áreas da família e reprodução. Isto é, o documento enfatiza a condenação católica das uniões homossexuais, aborto, inseminação artificial, divórcio, uniões de facto e contracepção «artificial».

E, desiludindo os que esperavam um suavizar das posições neolíticas, diria mais jurássicas, do Vaticano, não é mencionado directamente o desafio do cardeal Carlo Maria Martini à posição oficial da ICAR em relação ao uso do preservativo. Cardeal Martini que sugeriu ser o preservativo um «mal menor» no combate à SIDA, nomeadamente nos casos de casais «tradicionais» em que um dos cônjuges está infectado.

Mas a passagem acerca do aborto que reza «Nenhuma circunstância, finalidade ou lei poderá jamais tornar lícito um acto ilícito porque contrário à lei de Deus» pode ser um prenúncio de que não me enganei quando escrevi «não devemos esperar alterações radicais na posição católica em relação ao uso do preservativo na profilaxia da SIDA».

De acordo com o texto, que pede «castigo» para o aborto, as leis actuais na esmagadora maioria dos países europeus, que não reflectem os ditames do Vaticano, indicam «um eclipse de Deus», eclipse traduzido em leis que não discriminam homossexuais e uniões de facto heterossexuais, permitem «abominações» como a inseminação medicamente assistida, divórcio, contraceptivos e aborto.

Segundo os fundamentalistas do Vaticano é a ausência de Deus a causa da grande crise actual, «que inspira leis contrárias à família tradicional». Considerando que para os teólogos católicos a ausência de Deus resulta necessariamente no Mal devido ao pecado original este discurso tem implicações que uma primeira análise não indicaria.

De facto, toda a prosa agora debitada me recordou a prelecção do cardeal Jorge Medina Estevez, ex-prefeito da Congregação para o Culto Sagrado e a Disciplina dos Sacramentos, que relembrou o mundo católico da presença bem real do Demo, em cuja existência é mandatório acreditar. O cardeal chileno Opus Dei esclareceu que o Demo «Engana os homens persuadindo-os de que não precisam de Deus e que são auto-suficientes». E tem novas armas linguísticas que não hesita em usar: «O Diabo está muito presente, serve-se da mentira e para enganar usa eufemismos. Denomina o aborto interrupção da gravidez e os filhos, cargas. Anima os casamentos entre homossexuais e as leis de divórcio, apresenta o mal como bem, endeusa o dinheiro».

Semelhanças de discurso ainda aparentes na frase constante neste documento «O homem dos tempos modernos radicalizou a tendência para ocupar o lugar de Deus e substitui-lo». Só faltou acrescentar que são possuídos pelo Demo os que são a favor da despenalização do aborto, do controlo de natalidade, do casamento entre homossexuais e do divórcio.

O documento é igualmente uma crónica da guerra anunciada do Vaticano com o governo de Romano Prodi, cujo programa prevê a legalização das uniões de facto e a revisão da lei sobre a inseminação artificial, para além de, pela voz da ministra da Saúde, Livia Turco, ter anunciado a sua decisão de relançar a pílula RU486, proibida em Itália desde Janeiro deste ano pelo grande paladino de óvulos e espermatozóides Silvio Berlusconi.

Como já tinha igualmente previsto, no papado de Ratzinger a ciência em geral e a evolução em particular são alvo preferencial de ataques. Assim, neste documento a ciência é atacada no excerto que, a propósito dos avanços na genética, afirma:

«A ciência e a técnica convenceram algumas pessoas a pensar que tudo é fruto da evolução e que o homem não tem nenhum Deus».

8 de Junho, 2006 Palmira Silva

Código da Vinci retirado na China

A distribuidora estatal China Film informou que o Governo chinês vai cancelar a exibição de «O Código da Vinci» a partir de amanhã, sexta-feira.

O filme estreou neste país, no meio de violentos protestos dos católicos locais, há 19 dias tendo sido exibido numa pré-estreia em Pequim quatro horas e meia antes de ser mostrado em Cannes. «A empresa decidiu exibir o filme simultaneamente nas grandes cidades do país, com mais de 380 cópias em 30 cadeias de cinemas», informou à data Xu Bing, porta-voz da China Film à agência Xinhua. E os chineses acorreram em massa às salas de cinema.

Segundo um comunicado da distribuidora enviado às 400 salas que exibem o filme, o cancelamento deve-se «à comemoração do 85º aniversário da criação do Partido Comunista da China» (a 1 de Julho), visando, ao mesmo tempo, favorecer «as películas nacionais».

Mas, como explica uma funcionária da China Film «O cancelamento só abrange o Da Vinci, não outras películas estrangeiras», nem sequer cancela a estreia prevista para sexta-feira do filme norte-americano «Ice Age II» (Idade do Gelo II).

Fontes do sector cinematográfico chinês disseram à Agência Efe que na realidade o cancelamento deve-se ao barulho armado pelos grupos católicos de algumas províncias chinesas, depois de a Associação Patriótica Católica ter convocado um boicote ao filme, que consideram imoral e ofensivo para a fé, como noticiou a agência de notícias governamental da China.

8 de Junho, 2006 Palmira Silva

Exorcismos públicos no Congo ofuscam debate político

Padres e pop stars são os ídolos no Congo. Papa Wemba, a pop star mais famosa do Congo juntou forças com Mama Elisabeth Olangi, co- fundadora com o marido da Igreja do Combate Espiritual.

O ex-Zaire agora outra vez República Democrática do Congo ou Congo-Kinshasa, para o diferenciar do vizinho Congo-Brazzavile, é um dos maiores países de África. Independente desde 30 de Junho de 1960, o Congo assumiu à data o nome de República do Congo – em 1964 foi acrescentado o adjectivo «democrática». Mas de facto a democracia e a paz têm estado afastadas do Congo. Especialmente desde que em Novembro de 1965, Mobutu Joseph Désiré toma o poder num golpe de estado. Mobutu estabelece uma ditadura personalista e em 1971 muda o nome do país para Zaire e da capital para Kinshasa (ex-Leopoldville). Ele próprio passa a chamar-se Mobutu Sese Seko Koko Ngbendu wa za Banga, que significa «o todo-poderoso guerreiro que, por sua resistência e inabalável vontade de vencer, vai de conquista em conquista deixando fogo à sua passagem».

O poder absoluto de Mobutu foi especialmente contestado a partir Outubro de 1996, altura em que explode no país uma rebelião liderada por Laurent-Désiré Kabila. Nos meses seguintes aumentam os choques entre a guerrilha, baptizada de Aliança das Forças Democráticas pela Libertação do Congo-Zaire (AFDL) e o Exército, que enfrenta deserções em massa. Mobutu foi finalmente derrubado em Maio de 1997, e Kabila tornou-se presidente do Congo nessa data, cargo que manteve até ao seu assassinato em Janeiro de 2001. Foi sucedido pelo seu filho Joseph Kabila Kabange, que tentou pôr termo à guerra civil que assola o país e que, de acordo com um relatório do International Rescue Committee, vitimou 3.3 milhões de pessoas entre Agosto de 1998 e Agosto de 2002.

A esperança para a paz pode residir nas primeiras eleições livres no país que decorrerão, se não forem de novo adiadas, em 30 de Junho do corrente ano.

Pensar-se-ia que os debates políticos dominariam os media nacionais tão próximo das eleições, que prometem ser concorridas já que, como indica a missão das Nações Unidas no Congo, a Monuc que se encarregará de que estas decorram na normalidade possível, cerca de 25 milhões de congoleses estão inscritos para votar.

Na realidade, as ondas hertzianas no Congo são dominadas por exibições de exorcismos públicos e não por debates políticos. Exorcismos transmitidos por vários canais religiosos que competem ferozmente por clientes, na sua maioria propriedade de seitas cristãs lideradas por obscenamente ricos eclesiásticos. Eclesiásticos que enriquecem e ganham poder à custa da identificação de «possessões demoníacas», tarefa «árdua» pela qual cobram entre 5 a 10 euros, a que acresce uma taxa de «exorcismo», na realidade tortura sancionada pela família de cada vez mais crianças congolesas.

há uns tempos tinha escrito sobre uma realidade que preocupa as autoridades britânicas, a tortura de menores, por vezes a morte, por razões religiosas. De facto, assiste-se neste país europeu a uma explosão de exorcismos de menores de origem africana realizados por seitas cristãs fundamentalistas, exorcismos estes que resultam na tortura e muitas vezes morte das infelizes crianças consideradas possuídas pelo demo.

Igrejas cristãs fundamentalistas que explodem como fungos (fatais) em África, de que é um bom exemplo a Igreja do Combate Espiritual, envolvida num caso de tortura de uma «bruxa» de oito anos e no «diagnóstico» de kindoki (possessão) em mais crianças em Inglaterra, algumas delas levadas à força para a sede do secto em Kinshasa, onde são submetidas a torturas inhumanas apenas comparáveis às perpetradas pela Inquisição, nos seus tempos áureos de erradicação do mal, personificado por bruxas e hereges.

As ruas de Kinshasa e restantes centros urbanos do Congo estão apinhadas de crianças, muitas delas expulsas das suas famílias depois de «diagnosticadas» com kindoki, mais de 14 000 apenas em Kinshasa. E estas crianças de rua são as mais felizes dos «bruxos» infantis. Muitas são simplesmente mortas por familiares e vizinhos após o diagnóstico; outras são mantidas prisioneiras nas igrejas, supostamente aguardando exorcismo. O ministro dos Assuntos Sociais do Congo, Bernard Ndjunga, estima em cerca de 50 000 as crianças mantidas nestas condições.

De acordo com Trish Hiddleston, da UNICEF, citada num artigo da New Humanist de 2004 que denunciava a situação,«As causas de raíz são uma pobreza desesperada e um aumento do evangelismo, que é uma reacção a essa pobreza. Desculpas convenientes como a feitiçaria ou a possessão demoníaca são usadas, propositada ou inconscientemente, para se livrarem de crianças indesejadas».

De facto, quasi em cada esquina de Kinshasa pode encontrar-se uma igreja cristã em que pastores ululam ser o Demo e «bruxos» as causas de todo o mal que assola o país em geral e das desgraças privadas dos congoleses. Bruxarias e possessões pelo Demo que estranhamente se circunscrevem quasi exclusivamente a crianças e justificam a violência e a tortura que são infelizmente realidades corriqueiras para as crianças deste país.

Como disse Debbie Ariyo, directora da organização britânica Africanos Unidos Contra o Abuso de Crianças, parte da culpa nos maus tratos destas crianças reside nas religiões que propiciam e encorajam crenças em bruxarias e possessão.

De facto, é absolutamente reprovável e incompreensível que o exorcismo continue uma prática cristã florescente, acarinhada pelo Vaticano, em menor medida pela Igreja Anglicana e por uma quantidade alarmante de seitas evangélicas.

É um absurdo que a Igreja de Roma, no século XXI, esteja a encorajar a crença na existência do Diabo e a recuperar e a exponenciar uma superstição imbecil como é a possessão demoníaca. A ICAR está implicitamente a dar o seu acordo a estes atentados civilizacionais quando encoraja estas palermices supersticiosas e perigosas, com declarações bem recentes pelo papa que reconheceu o «importante trabalho ao serviço da Igreja» dos exorcistas.

6 de Junho, 2006 Palmira Silva

Os mitos do criacionismo cristão: Génese


Stairway To Heaven, Led Zepellin Escute Windows Media (clique na imagem para ouvir), em que supostamente o número 666 aparece como parte do «significado oculto» de duas das estrofes.

As influências exógenas de outras religiões na mitologia cristã são evidentes um pouco por toda a palavra «revelada». Nomeadamente no dia de hoje, em que os mais supersticiosos veêm augúrios apocalípticos, recordo que todas as mitologias retratam frequentemente o fim do mundo como uma grande destruição, de natureza bélica ou cósmica. Antes da destruição, surge um messias («ungido») ou salvador, que resgata os eleitos de Deus. Esse salvador pode ser o próprio ancestral do povo ou fundador da religião, que empreende uma batalha final contra as forças do mal e, após a vitória, inaugura um novo estágio da criação, um novo céu e uma nova terra.

Os mitos da destruição escatológica, abundantes e associados normalmente a ciclos de destruição-criação em outras religiões, manifestaram-se tardiamente na literatura apocalíptica judaico-cristã, que floresceu entre os séculos II a.C. e II d.C., com o zénite nos delírios do livro do Apocalipse.

Exemplo típico de um mito de destruição (embora não do fim dos tempos) são as grandes inundações. É bastante conhecido o episódio do Antigo Testamento que descreve um dilúvio e o apresenta como castigo de Deus à humanidade. Esse tema tem origens nos mitos mesopotâmicos, aliás é uma cópia integral desta mitologia. Depois de inúmeras tentativas para silenciar um povo ruidoso, desagradável aos ouvidos divinos, com pragas, secas e infertilidade, o deus Enlil lançou um dilúvio sobre a Terra. Somente sobreviveram a família e os animais do sábio Atrahasis.

De igual forma, o mito cristão da criação (indissociável dos mitos de destruição, morte e ressureição, o ciclo da vida na Terra) expresso no Génesis, recheado de alegorias decalcadas do Enuma elish, escrito 2000 anos antes da invenção do cristianismo, é um bom exemplo da forte influência mesopotâmica na mitologia judaico-cristã.

Numa altura em que criacionismos sortidos tentam recuperar para a religião a primazia perdida na explicação do mundo, importa explicar que, para palavra «revelada», a Bíblia revela claramente a sua origem humana (e humanos «reveladores» não especialmente imaginativos, já que copiaram, integralmente ou com poucas modificações, mitologias sortidas).

Segundo a Bíblia, com recurso a alegorias de clara inspiração babilónica, Deus criou o mundo a partir do caos, da escuridão, do abismo: os dois primeiros versículos bíblicos dizem que Deus criou o céu e a terra, e que a terra era um vazio informe, o tohu vabohu do texto hebraico.

A influência grega na génese da mitologia cristã da Criação pode ser encontrada nos versos 115 a 125 da Teogonia, em que Hesíodo (sécs. VIII-VII a. C.) pede às Musas que lhe contem o que existiu antes de tudo, deuses inclusive: «Em primeiro lugar – diz Hesíodo – existiu, realmente, o Caos». Seguiu-se-lhe Gaia, «a de amplos seios», e «do Caos nascerem Erebo e a negra Noite». Como «fruto dos amores destes dois, nasceram Éter e Hemera [Dia]».

Não podia deixar de referir o meu filósofo favorito, Epicurus, (341-270 a. C.), divulgado pelo epicurista Titus Lucrecius Carus (98-55 a.C.) no seu poema De Rerum Natura (A Natureza das Coisas). É interessante notar que o aforismo ex nihilo nihil fit (do nada, nada se faz) que resume a posição epicurista sobre a origem do Universo permanece actual. Aforismo inspirado numa das Sátiras (III, 24) do poeta estóico Pérsio (séc. I d. C.) e que significa simplesmente que nada é criado, tudo se transforma. A primeira formulação do que hoje apelidamos Lei de Lavoisier: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

A convicção cristã de que Deus teria realmente criado o mundo a partir «de nada», a famosa creatio ex nihilo estabeleceu-se e progrediu sobretudo no século II d. C., assente nas teses do (gnóstico) Basilides (início século II) e do apologista (São) Justino (início século II).

Mas o grande «teórico» e divulgador da creatio ex nihilo foi o infelizmente ainda hoje grande teólogo do cristianismo, Agostinho de Hipona (354-430), que, para combater as concepções emanistas do neoplatonismo, sustentou que o Universo foi criado por Deus a partir de nada. Ele defende esta ideia nomeadamente no seu livro De natura boni – onde tenta demonstrar que o mal é a privação do bem, todas as coisas criadas por Deus são boas em essência – em que explica que o nihil do qual Deus criou o Cosmos não é qualquer espécie de matéria ou caos preexistente, mas que a expressão ex nihilo, «do nada», significa apenas «não de algo».

5 de Junho, 2006 Palmira Silva

Fundamentalismo hindu

Bharath Mata (Mãe Índia), um quadro «herege» de Maqbool Fida Husain muito protestado

Os quadros de Maqbool Fida Husain, o mais reputado pintor indiano, considerado o Picasso deste país pela Forbes e fundador do Progressive Artists’ Group, são acusados por fundamentalistas hindus de denegrirem o hinduismo pelo facto de retratarem deuses e deusas do panteão hindu em nudez integral e poses eróticas. O fundamentalismo hindu não difere dos seus congéneres das religiões do livro, embora com menor divulgação no Ocidente e poucos seguidores, algo que enfurece os ditos fanáticos que se afadigam em trazer para a ribalta a intolerância da sua religião. Como se lamentou Vyankatesh Abdeo, o secretário-geral do partido de linha dura hindu Vishwa Hindu Parishad, que encenou uma série de protestos, sem grande adesão, em relação aos quadros do pintor (cuja cabeça já foi posta a prémio) que pretende ver na cadeia pela «blasfémia»:

«Apenas porque existe um cartoon do profeta Maomé, todo o mundo muçulmano protesta».

Em Inglaterra, o suposto ultrage destes fundamentalistas e as ameaças que produziram surtiram efeito e através dos grupos Fórum Hindu de Inglaterra e Hindu Human Rights conseguiram, como já indicou o Ricardo, cancelar uma exposição do referido pintor na Asia House Gallery em Londres (depois de destruirem dois dos quadros expostos).

Quarenta e dois académicos asiáticos, pertencentes à organização laica Awaaz – South Asia Watch, «uma rede secular baseada no Reino Unido que congrega organizações e indíviduos dedicados a acompanhar e combater o ódio religioso na Ásia do Sul e no Reino Unido», publicaram uma carta no Guardian pedindo a reabertura da exibição de Husain e condenando em termos veementes os fundamentalistas hindus britânicos:

«O Fórum Hindu de Inglaterra e o Hindu Human Rights acusam a Asia House de não os ‘consultar’ antes de montar a exposição. Consultas não deveriam ser um requerimento para a expressão artística. Estes grupos não foram eleitos, não são conhecidos por consultarem democraticamente a comunidade antes de exercerem pressão em outros em nome do hinduismo. As suas acções não seriam sancionadas pela maioria dos hindus. A tradição hindu tem uma história extensa de diversas representações das suas divindades, incluindo imagens nuas e eróticas de deuses e deusas. O hinduismo nunca teve o conceito de censura que estes grupos autoritários gostariam de promover. Nós pedimos à Asia House para reabrir a exposição – fazendo-o honrará as ricas e diversas tradições do hinduismo e da Índia».

Já anteriormente Lord Meghnad Desai tinha condenado, em outra carta ao Guardian, os grupos fundamentalistas. Carta a que o grupo de «tradicionalistas» hindus respondeu (aliás quasi uma réplica da carta que enviaram à New Humanist) afirmando que afinal as suas alegações iniciais de que era a nudez das divindades retratadas que os ofendia estavam erradas (isto é, eram patéticas de tão absurdas).

Afinal não é a nudez das deusas em poses sexuais, algo que Lord Desai tinha apontado ser frequente em templos hindus, que os ofende mas sim o facto de estas estarem envolvidas em «actos bestiais», isto é, sexo com animais. O que é obviamente falso, como quem quiser pode comprovar e apreciar os arrobos de imaginação (delirante) necessários para ver nos quadros «hereges» do muçulmano Husain a bestialidade que tanto «indigna» os fundamentalistas hindus!

De qualquer forma, considerando que os clérigos hindus casam frequentemente não só animais entre si mas também jovens raparigas com animais sortidos, desde cães a cobras, diria que se percebem as leituras delirantes dos devotos hindus…

4 de Junho, 2006 Palmira Silva

Código da Vinci: never ending story

«O Código da Vinci» foi proibido em mais dois Estados indianos, Andhra Pradesh e Meghalaya, elevando-se assim para 7 o número de Estados na Índia onde não é possível ver o filme. A estes estados juntam-se o Punjab, Nagaland, Tamil Nadu, Pondicherry e Goa.

Em Goa, as ameaças dos grupos católicos locais do recurso à força, isto é violência, para evitar que o filme fosse visto, pouparam o governo local às decisões indigentes e cobardes dos seus congéneres de Andhra Pradesh, que confessaram ter imposto a proibição com medo das represálias católicas. De facto, a distribuidora retirou o filme. Em Bombaim (Mumbai), o Comissário da polícia local viu-se obrigado a medidas extraordinárias de segurança em torno dos cinemas que exibem o filme para evitar a fúria dos (poucos mas aguerridos) católicos locais.

Também no Paquistão o filme foi proibido, por pressão não só da minoria cristã como da maioria muçulmana do país. Como já referi, o perigo do filme para os dignitários cristãos e muçulmanos reside especialmente no facto de o livro levantar questões, ou antes, sugerir blasfémias execradas por estas religiões misóginas, sobre o papel das mulheres nas respectivas religiões. E especialmente por não só sugerir que a misoginia das três religiões do livro se revela na sua abominação da sexualidade, com especial ênfase na feminina que é dever dos «santos» das 3 religiões reprimir, como sugere que o pecado original nos moldes que hoje é entendido foi uma congeminação da Igreja para destruir o «sagrado feminino» e justificar a subjugação da mulher.