25 de Setembro, 2006 Palmira Silva
Bento XVI e a racionalidade II
«O Mundo como o conhecemos foi criado por uma colisão fortuita de átomos»
Titus Lucretius Carus, De Rerum Natura (Da Natureza das Coisas), Livro V
A insistência de Ratzinger em afirmar que a racionalidade da religião é inseparável da sua helenização, sugerindo que apenas o «helenizado» catolicismo tradicional é racional, é deveras bizarra. Enfim, na sua palestra de Regensburg, Ratzinger ressalva que se trata de uma «herança Grega criticamente purificada», isto é, completamente deturpada ou cristianizada.
De facto, a filosofia grega representou uma mudança de atitude do homem perante o cosmos, o ínicio da emancipação em relação a mitologias sortidas do pensamento humano em que o primeiro filósofo da physis (natureza), Tales de Mileto (~640-546 E.C), marca essa ruptura procurando o princípio natural das coisas ou arqué, o elemento primordial da natureza, a matéria básica para a formação dos demais materiais, e na qual todos se reduziriam.
Ou seja, a filosofia grega desde os seus primórdios abandonou as explicações religiosas até então vigentes e procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo. Uma das escolas filosóficas mais antigas, o atomismo, nomeadamente como foi desenvolvido por Epicurus, assentava na existência exclusiva de causas materiais para todos os aspectos da natureza.
O que tornou o atomismo incompatível com o cristianismo que condenou primeiro e proibiu depois esta filosofia ateísta que, para além de refutar a transubstanciação do pão e do vinho – o canibalismo ritual no cerne da fé católica – negava a intervenção de qualquer força, inteligência ou entidade divina nos processos naturais. Não havia intenção no movimento (aleatório) dos átomos, o que não implica que tudo o que acontece é um acaso, pois tudo é regido pelas inalteráveis leis da natureza. Os atomistas acreditavam que todos os fenómenos têm uma causa natural, ou seja, negavam o argumento teleológico.
No entanto, para criticar não só as restantes religiões como principalmente para condenar a ciência «que pela sua própria natureza» «exclui a questão de Deus, fazendo-a aparecer como não científica ou como uma questão pré-científica» Ratzinger fabrica um helenismo «purificado» que na realidade corresponde a uma pré-helenização.
Isto é, a ciência – e não a religião versão catolicismo – é o resultado «natural» da nossa herança helénica, uma explicação natural dos fenómenos da natureza assente no empirismo em que a mitologia, isto é, a teologia, não é uma fonte de conhecimento. Assim como resulta da evolução do pensamento grego o facto de que «as ciências humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, tentam conformar-se com este padrão de cientificidade», algo que muito aflige Ratzinger que afirma ser este «o perigoso estado de coisas da humanidade» resultado de «perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão é de tal modo reduzida que as questões de religião e ética já não lhe dizem respeito». Neste ponto Ratzinger pretende falaciosamente que religião e ética estão de tal forma intimamente relacionadas que rejeitar a religião como fonte de conhecimento ético é correspondente a rejeitar comportamento ético, o que é obviamente falso!
Assim, Ratzinger pretende que os males actuais só podem ser remediados se retornarmos aos «bons» velhos tempos em que a religião, versão catolicismo debitada pelo Vaticano, era a fonte principal de «conhecimento» ético e dominava todos os aspectos da polis, nomeadamente impondo via direito as suas aberrações anacrónicas que Ratzinger confunde com ética.
Pretendendo que «As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e sociologia, acabam por se mostrar simplesmente desadequadas», carpindo neste ponto o facto de que a Europa simplesmente ignora as ululações constantes do Vaticano em questões sortidas – por exemplo no que respeita aos direitos de homossexuais e mulheres, à investigação em células estaminais, à fertilização medicamente assistida, ao divórcio, ao uso de preservativos como profilaxia da SIDA, ao uso de contraceptivos, etc..
Embora diga que a palestra «não tem nada a ver com recuar no tempo anterior ao Iluminismo ou rejeitar as conquistas da idade moderna» ao sustentar que a «revelação» divina é a fonte máxima da razão e conhecimento de facto Ratzinger está a atacar os princípios fundamentais do Iluminismo e do modernismo. Por outro lado, ao rejeitar os princípios básicos da ciência Ratzinger rejeita igualmente as conquistas da idade moderna, apenas possíveis devido a esses princípios. Ou, pelo menos, pretende usufruir dessas conquistas sem admitir que apenas foram possíveis devido ao facto de os cientistas excluiram qualquer sobrenaturalidade ou seres mágicos das suas hipóteses!
Isto é, ao afirmar que «Seremos bem sucedidos só se a razão e a fé se juntarem de uma forma nova» Ratzinger pretende realmente um retrocesso civilizacional ao pré-Iluminismo. Não há qualquer diálogo possível entre ciência e religião, nomeadamente o pseudo diálogo que Ratzinger quer impor, como o afirma na parte final da palestra, uma submissão à teologia de todas as áreas de conhecimento!