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Palmira Silva

25 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a racionalidade II

«O Mundo como o conhecemos foi criado por uma colisão fortuita de átomos»
Titus Lucretius Carus, De Rerum Natura (Da Natureza das Coisas), Livro V

A insistência de Ratzinger em afirmar que a racionalidade da religião é inseparável da sua helenização, sugerindo que apenas o «helenizado» catolicismo tradicional é racional, é deveras bizarra. Enfim, na sua palestra de Regensburg, Ratzinger ressalva que se trata de uma «herança Grega criticamente purificada», isto é, completamente deturpada ou cristianizada.

De facto, a filosofia grega representou uma mudança de atitude do homem perante o cosmos, o ínicio da emancipação em relação a mitologias sortidas do pensamento humano em que o primeiro filósofo da physis (natureza), Tales de Mileto (~640-546 E.C), marca essa ruptura procurando o princípio natural das coisas ou arqué, o elemento primordial da natureza, a matéria básica para a formação dos demais materiais, e na qual todos se reduziriam.

Ou seja, a filosofia grega desde os seus primórdios abandonou as explicações religiosas até então vigentes e procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo. Uma das escolas filosóficas mais antigas, o atomismo, nomeadamente como foi desenvolvido por Epicurus, assentava na existência exclusiva de causas materiais para todos os aspectos da natureza.

O que tornou o atomismo incompatível com o cristianismo que condenou primeiro e proibiu depois esta filosofia ateísta que, para além de refutar a transubstanciação do pão e do vinho – o canibalismo ritual no cerne da fé católica – negava a intervenção de qualquer força, inteligência ou entidade divina nos processos naturais. Não havia intenção no movimento (aleatório) dos átomos, o que não implica que tudo o que acontece é um acaso, pois tudo é regido pelas inalteráveis leis da natureza. Os atomistas acreditavam que todos os fenómenos têm uma causa natural, ou seja, negavam o argumento teleológico.

No entanto, para criticar não só as restantes religiões como principalmente para condenar a ciência «que pela sua própria natureza» «exclui a questão de Deus, fazendo-a aparecer como não científica ou como uma questão pré-científica» Ratzinger fabrica um helenismo «purificado» que na realidade corresponde a uma pré-helenização.

Isto é, a ciência – e não a religião versão catolicismo – é o resultado «natural» da nossa herança helénica, uma explicação natural dos fenómenos da natureza assente no empirismo em que a mitologia, isto é, a teologia, não é uma fonte de conhecimento. Assim como resulta da evolução do pensamento grego o facto de que «as ciências humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, tentam conformar-se com este padrão de cientificidade», algo que muito aflige Ratzinger que afirma ser este «o perigoso estado de coisas da humanidade» resultado de «perturbadoras patologias da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão é de tal modo reduzida que as questões de religião e ética já não lhe dizem respeito». Neste ponto Ratzinger pretende falaciosamente que religião e ética estão de tal forma intimamente relacionadas que rejeitar a religião como fonte de conhecimento ético é correspondente a rejeitar comportamento ético, o que é obviamente falso!

Assim, Ratzinger pretende que os males actuais só podem ser remediados se retornarmos aos «bons» velhos tempos em que a religião, versão catolicismo debitada pelo Vaticano, era a fonte principal de «conhecimento» ético e dominava todos os aspectos da polis, nomeadamente impondo via direito as suas aberrações anacrónicas que Ratzinger confunde com ética.

Pretendendo que «As tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e sociologia, acabam por se mostrar simplesmente desadequadas», carpindo neste ponto o facto de que a Europa simplesmente ignora as ululações constantes do Vaticano em questões sortidas – por exemplo no que respeita aos direitos de homossexuais e mulheres, à investigação em células estaminais, à fertilização medicamente assistida, ao divórcio, ao uso de preservativos como profilaxia da SIDA, ao uso de contraceptivos, etc..

Embora diga que a palestra «não tem nada a ver com recuar no tempo anterior ao Iluminismo ou rejeitar as conquistas da idade moderna» ao sustentar que a «revelação» divina é a fonte máxima da razão e conhecimento de facto Ratzinger está a atacar os princípios fundamentais do Iluminismo e do modernismo. Por outro lado, ao rejeitar os princípios básicos da ciência Ratzinger rejeita igualmente as conquistas da idade moderna, apenas possíveis devido a esses princípios. Ou, pelo menos, pretende usufruir dessas conquistas sem admitir que apenas foram possíveis devido ao facto de os cientistas excluiram qualquer sobrenaturalidade ou seres mágicos das suas hipóteses!

Isto é, ao afirmar que «Seremos bem sucedidos só se a razão e a fé se juntarem de uma forma nova» Ratzinger pretende realmente um retrocesso civilizacional ao pré-Iluminismo. Não há qualquer diálogo possível entre ciência e religião, nomeadamente o pseudo diálogo que Ratzinger quer impor, como o afirma na parte final da palestra, uma submissão à teologia de todas as áreas de conhecimento!

(continua)
24 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Message in a butt

Os Estados Unidos têm sido fertéis nos últimos tempos em manifestações iconográficas da mitologia cristã. Depois de tartarugas demoníacas e tostas de queijo ou chocolate com a imagem da «Virgem», estuque manchado com a imagem do mítico fundador da religião cristã e demais aparições iconográficas sortidas, chega agora a notícia de que Angus MacDougall, um terrier de três anos, exibe esta incrível aparição numa parte anatómica inesperada. O seu dono tem uma página dedicada a espalhar a boa nova que vale a pena visitar!

23 de Setembro, 2006 Palmira Silva

A ilusão de Deus

O novo livro de Richard Dawkins, «A ilusão de Deus», a ver a luz do prelo esta segunda feira, é o item mais vendido na Amazon britânica. A impossibilidade lógica -vulgo Deus – a religião, que ofende todos os ossos do corpo racional e ateísta de Dawkins, são o objecto do novo livro de um dos mais brilhantes intelectuais da actualidade, que denuncia igualmente o sofrimento que crenças absurdas causaram e causam à humanidade. Um livro absolutamente imprescíndivel numa altura em que hierarquias religiosas sortidas inflamam os crentes mais fanáticos para mais uma grande guerra de religiões!

23 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Ratzinger e Bento XV

Papa Paulo III, que convocou o Concílio de Trento em 1545. Retrato de Tiziano Vecelli, Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles.

A escolha do nome de «guerra» por parte de um novo papa tem normalmente associado um significado programático e o facto de Ratzinger não ter assumido o esperado João Paulo III, indicativo de que continuaria as pisadas do seu antecessor, mas Bento XVI surpreendeu muitos no meio católico. Os apologetas de serviço tentaram ver nesta escolha de nome um bom auspício já que Giacomo della Chiesa, que tomou posse como Bento XV um mês antes do início da I Guerra Mundial, é normalmente descrito como o «Papa da paz» devido aos seus esforços para a terminar.

De facto, Giacomo della Chiesa, nascido de uma família nobre genovesa, era um experiente diplomata que insistiu na neutralidade do Vaticano durante toda a Guerra e a partir de 1917 encorajou o presidente americano Woodrow Wilson a iniciar as negociações de paz. Mas convém recordar que dos dois lados das trincheiras estavam envolvidos países com consideráveis populações católicas: a Alemanha e o império Austro-húngaro de um lado; a França de outro. A neutralidade da Igreja que inventou a doutrina do bellum justum ( guerra justa) e a insistência na paz enquadravam-se assim em manobras diplomáticas destinadas a evitar a divisão da Igreja.

Uma vez que a diplomacia não é exactamente apreciada por Ratzinger, que escolheu Tarcisio Bertone, um teólogo que foi o seu braço direito na ex-Inquisição, para substituir o diplomata Angelo Sodano no lugar de secretário de estado do Vaticano – posição ocupada normalmente, com muito raras excepções, por diplomatas de carreira – conjugado com toda a actuação de Ratzinger desde a sua eleição sugere que a sua escolha de nome pretendia emular não os dotes diplomáticos do seu homónimo mas sim a sua firme oposição à modernidade, isto é à racionalidade e à democracia.

Oposição que pode ser apreciada na primeira encíclica que debitou uns escassos dois meses depois de tomar posse, Ad Beatissimi Apostolorum em que, depois de condenar nos primeiros parágrafos a I Guerra Mundial, Bento XV critica veementemente todos os que preferem o conhecimento e a razão à fé:

«Cegos e levados por uma ideia soberba do intelecto humano, pelo qual o bom dom concedido por Deus fez certamente muitos progressos no estudo da natureza, confiantes no seu julgamento e desdenhosos da autoridade da Igreja, chegaram a tal grau de imprudência que não hesitam em avaliar com a própria mente até as coisas escondidas de Deus e tudo o que Deus revelou aos homens. Daqui surgiram os montruosos erros do ‘Modernismo’ que o nosso predecessor [Pio X, nomeadamente no Decreto Lamentabili Sane e na encíclica Pascendi Dominici Gregis, encíclica que traduz fielmente o pensamento de Ratzinger sobre o modernismo ] declarou justamente serem ‘a síntese de todas as heresias’ e os condenou solenemente. Nós vimos desta forma renovar esta condenação na sua totalidade. (…) É assim a nossa vontade que a lei dos nossos antepassados deve ser mantida sagrada: ‘Que não haja inovação.’».

A encíclica, que condena todas as formas de democracia já que «Desde que a fonte do poder humano foi procurada na livre vontade do homem e não em Deus, o Criador e o Rei do Universo, a obrigação do dever, que devia existir entre superior e inferior foram tão enfraquecidas que quase desapareceram» considera que a crise social e política subjacente à I Guerra Mundial assenta em duas causas: o mal principal, o afastamento da fé da Europa que ditou a separação Igreja Estado, isto é, impediu ser a Igreja a determinar como devem ser governados os Estados; e a «ausência de respeito pela autoridade dos que exercem o poder».

Crise social e política caracterizada por uma «tal mudança nas ideias e na moral dos homens que, a não ser que Deus venha rapidamente em nosso auxílio, o fim da civilização parece estar próximo».

Ratzinger tem essencialmente a mesma apreciação da actual crise que o seu homónimo, isto é, a origem dos males europeus reside no modernismo, nas suas heresias laicas e na primazia da razão e da ciência sobre a fé, e prescreve as mesmas receitas: é necessária uma Europa em que a cristandade medieval seja recuperada, cristandade caracterizada pelo domínio implacável da Igreja de Roma sobre a sociedade, em que os «Santos» Padres se arrogavam ao direito de decidir sobre todas as matérias, mesmo as científicas. Assim, encoraja uma prática católica tridentina, virada para o passado e obscurantista, exponenciando com as suas prelecções constantes os preconceitos anti-Iluminismo e anti-democráticos dos católicos mais fanáticos.

Prelecções de que a recente palestra em Regensburg, que continuarei a analisar, é apenas mais um exemplo…

22 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a racionalidade

«O Iluminismo é a saída do ser humano do estado de não-emancipação em que ele próprio se colocou. Não-emancipação é a incapacidade de fazer uso de sua razão sem recorrer a outros. Tem-se culpa própria na não-emancipação quando ela não advém de falta da razão, mas da falta de decisão e coragem de usar a razão sem as instruções de outrem. Sapere aude! (ouse saber!)» Immanuel Kant.

A aula magna de Bento XVI na Universidade de Regensburg, para além de uma defesa do catolicismo tradicional, isto é, pré Vaticano II, em relação às outras religiões do livro, é essencialmente, como já apontei, um ataque à ciência «que tornou Deus supérfluo», causa última dos males profundos que dominam a Europa na opinião de Ratzinger, a «ditadura do relativismo» e concumitantes secularismo, laicidade, respeito pelos direitos humanos, tolerância e plurarismo.

O discurso do Papa, tal como tudo o que tem debitado desde que o «espírito santo» o escolheu, assenta na loucura e erro de uma Europa «surda a Deus», que não fundamenta na fé o conhecimento e a própria Europa.

Assim, a palestra desenrola-se em torno deste tema desde a congratulação inicial ao Magnífico Reitor pela existência na sua Universidade, com duas faculdades de teologia, daquilo a que chama universitas scientiarum, ou seja, a genuína universitas que destaca proeminentemente a teologia nos «saberes» a transmitir aos alunos, que aceita como dado adquirido que Deus, na versão cristianismo tradicional, é imprescindível na Universidade. Embora Ratzinger note que nem todos os docentes, nomeadamente os cépticos «radicais» que afirmam a inexistência de Deus, partilham a opinião dos teólogos de que a fé e a razão estão intimimamente correlacionadas e sem fé não pode ocorrer o exercício da razão. Isto é, sem fé cristã tradicional, porque no decorrer do discurso Ratzinger explana porque razão apenas esta fé é racional!

Depois destas reminiscências de Regensburg, uma «genuína» Universidade em que o debate racional integra a teologia (católica) como componente indispensável, em que a teologia é aceite como equivalente da filosofia no privilegiar da razão universal, surgem então os 3 parágrafos que tanta tinta fizeram correr nos últimos dias, em que Ratzinger, esquecendo dois milénios de história sangrenta do catolicismo, usa o dito diálogo de Manuel II Paleólogo como ponto de partida para analisar a necessária centralidade da razão na fé e a relação entre a fé e a razão nas «três ‘Leis’ ou ‘Regras da Vida’: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. Embora não explicitamente, Ratzinger sugere que o Islão, a religião judaica e o protestantismo, não «helenizados», enfermam de uma irracionalidade constitucional enquanto o catolicismo é a única religião racional.

Este papa, grande admirador de Agostinho de Hipona mais que de Tomás de Aquino como o seu predecessor, ambos citados no texto, correlaciona a racionalidade da fé com a «helenização» desta mesma fé, que permitiu «uma nova compreensão de Deus acompanhada de uma espécie de iluminismo», helenização que segundo Ratzinger não aconteceu por acaso já que Deus «desviou» Paulo de Tarso da Ásia e encaminhou-o para a Grécia ( Actos dos Apóstolos 16:6-10) no que Ratzinger chama «uma destilação da necessidade intrínseca de reconciliação da fé bíblica com a racionalidade grega». Assim, desde o início do cristianismo e por desígnio divino, que a razão e a fé cristã são indissociáveis pelo que a de-helenização corresponde a não usar a razão, e como tal é contrária à natureza de Deus.

Uso da razão que parece exclusivo dos europeus, pelo menos no excerto em que Ratzinger afirma que «Dada esta convergência [entre cristianismo e helenismo, equivalente para Ratzinger ao uso da razão], não é de estranhar que o cristianismo, apesar das suas origens no Leste, assumiu o seu carácter histórico e decisivo na Europa».

Ratzinger contrasta esta compreensão cristã helenista de Deus, coincidente com uma harmonia entre razão e fé através da revelação de um Deus racional, com a «irracionalidade do islamismo» exemplificada com o (irrelevante) teólogo muçulmano Ibn Hazm que defendia a absoluta transcendência de Deus e
rejeitava a necessidade de qualquer racionalização das leis islâmicas já que eram o código que Deus tinha legislado e a sua implementação, sem qualquer imiscuição da razão, indispensável na prática religiosa.

Compreensão helenista que Ratzinger afirma fazer parte essencial da fé cristã e
«permanece a fundação do que podemos chamar apropriadamente Europa». Criticando a de-helenização do cristianismo e da Europa- as causas dos tais «males profundos» que a assolam e a deixam impotente face à ameaça islâmica – que segundo ele ocorreu em três fases, interligadas mas claramente distintas nas motivações e objectivos.

Assim, Ratzinger critica a separação da fé e da razão que ocorreu com a Reforma, a primeira de-helenização que rejeita a razão (isto é, a interpretação bíblica de Roma) e assenta a fé no princípio da sola scriptura, postulado base da reforma protestante. Ou seja, afirma claramente que o protestantismo é irracional!

A segunda fase de de-helenização corresponde ao pensamento teológico liberal dos séculos XIX e XX, de onde surgiram as heresias modernista e progressista, censuradas na encíclica de Pio X, Pascendi Dominici Gregis, que têm para Ratzinger o seu representante máximo em Adolf von Harnack. Heresia que na prática reduz a fé católica a meras directivas éticas e morais, sem necessidade de culto nem de teologia.

Ou seja, mais uma vez critica os católicos que não seguem à letra os ditames do Vaticano, «enganados» por teólogos como Harnack ou Roger Haight que «numa subordinação [inadmíssivel] dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade» tentam reconciliar a fé com a modernidade. Para Ratzinger, como tem sido abundantemente expresso no seu papado e concretizado sem margens para dúvidas nesta palestra, é a modernidade que tem de se sujeitar à fé!

Harnack, que reconhecia a complicação irracional colocada pelos dogmas em que assenta o cristianismo, a divindade de um Cristo com duas essências integrante de uma trindade com três pessoas e uma essência, advogava que Jesus era apenas o pai de uma mensagem moral humanitária e tinha terminado com a necessidade de cultos.

Pior, Harnack afirmava ser necessário harmonizar o catolicismo com a modernidade libertando-o de elementos especulativos (isto é, teológicos), ou seja, advogava ser necessário basear o catolicismo em «uma exegese histórica crítica do Novo Testamento» a única forma de a Teologia ter assento numa Universidade já que «teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e assim estritamente científico» o que «acabaria na redução do cristianismo a um mero fragmento do que foi no passado».

Ora, Ratzinger não quer que o cristianismo seja este mero fragmento, quer retomar para o cristianismo o papel que este assumiu no seu passado «glorioso» e «racional» – nomeadamente na Idade Média em que este papel era assegurado «racionalmente» pela Inquisição – pelo que a ciência e o pensamento científico, crítica dos quais ele assume ser o cerne da dita palestra, têm de reconhecer ser a teologia a mais nobre das disciplinas à qual as restantes se devem submeter. Ou seja, os cientistas devem aceitar o Sapientia Dei, Scientia Mundi agostiniano, isto é, que há um conhecimento superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e um inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis.

(continua)
21 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Selam, mais um fóssil do Australopithecus afarensis

A última edição da revista Nature descreve a descoberta da equipa liderada por Zeresenay Alemseged, um paleoantropólogo do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig. A equipa encontrou o fóssil mais completo de um exemplar do Australopithecus afarensis, a que chamaram Selam ou DIK-1-1, o fóssil com 3,3 milhões de anos de um bébé de 3 anos encontrado em Dikika na Etiópia, uns quilómetros apenas do sítio arqueológico em que foi descoberto em1974 o fóssil de Lucy, o primeiro exemplar encontrado desta espécie.

Lucy é o membro mais antigo da linha de bípedes que levou, cerca de quatro milhões de anos mais tarde, aos humanos modernos. E, como veremos, os homínideos «Lucy» apresentavam uma série de características morfológicas intermédias entre os outros primatas e os humanos.

Aproveito o ensejo para corrigir um equívoco muito disseminado, que os «humanos são descendentes dos macacos», equívoco muito aproveitado pelos criacionistas embora seja totalmente errado. Os homínideos não são descendentes dos macacos; aproximadamente há 5 milhões de anos atrás, a árvore filogenética humana e a dos chimpanzés dividiu-se em ramos distintos a partir de um ancestral comum. Os macacos modernos, são deste modo apenas os nossos parentes evolutivos próximos, não são nossos ancestrais. Assim esse axioma utilizado e abusado pelos criacionistas é tão absurdo, como todos os seus argumentos, como dizer que alguém é descendente de um primo.

Voltando ao Selam, nomeado a partir da palavra etíope para paz, embora muitos mais exemplares do A. afarensis tenham sido descobertos, este exemplar de um bébé afarensis, cuja idade foi estimada em 3 anos, é o mais completo descoberto, e inclui a escápula ou omoplata, osso nunca encontrado antes. A escápula do A. afarensis apresenta características intermédias entre a escápula dos homens e macacos modernos que permitem concluir que este nosso antepassado remoto estava a perder as suas capacidades de locomoção nas árvores.

E de facto, uma análise do esqueleto de Lucy tinha permitido chegar à conclusão que Lucy exibia bipedalismo. Os membros inferiores do Australopithecus afarensis não eram simiescos e são quasi indistinguíveis dos membros inferiores humanos. Nos humanos, por exemplo, os ossos do calcanhar têm uma almofada alargada composta de osso esponjoso que absorve o impacto gerado pelo bipedalismo. O calcanhar do esqueleto de Lucy exibe esse osso esponjoso enquanto os macacos, que se movem apoiando-se nas articulações interfalângicas (dedos), não apresentam essa almofada óssea. O fémur de Lucy, embora proporcionalmente mais longo que nos humanos modernos, exibia uma série de características claramente humanas. Nos humanos, o colo do fémur apresenta um centro esponjoso que absorve o impacto de caminhar e uma camada mais espessa de osso compacto no topo da articulação para suportar o esforço. Nos macacos, este arranjo é totalmente diferente; o colo do fémur é quase completamente sólido, apresentando apenas um pequeno núcleo central de osso esponjoso.

O fémur dos macacos apresenta uma quilha larga ao longo da parte superior do colo onde se une com o receptáculo da anca. O fémur do Australopithecus afarensis é idêntico neste arranjo ao fémur humano. É na cintura pélvica, no entanto, que as características humanóides e o bipedalismo do Australopithecus afarensis são mais claramente evidentes. Na realidade, a cintura pélvica do Australopithecus afarensis, com o seu sacro proporcionalmente mais largo que o dos humanos modernos, era mais adequada ao bipedalismo que a nossa. Nos humanos um sacro tão largo estreitaria o canal de parto e tornaria impossível o parto, o que não acontecia no Afarensis que apresentava uma dimensão craniana muito inferior.

Este trilho de pegadas de hominídeos, descoberto em 1978 por Mary Leakey numa camada de cinzas vulcânicas com mais de três e meio milhões de anos, num sítio próximo de Laetoli na Tanzânia, mostra claramente mostram que a espécie que deixou estas marcas caminhava de forma bípede eficientemente, como um humano. Não há evidência de um polegar divergente como apresentado pelos macacos, e foi encontrado um arco plantar muito similar ao humano. Um modelo do pé do A. afarensis reconstruído a partir dos ossos fósseis recuperados, encaixa-se perfeitamente nas pegadas de Laetoli.

O osso hióide (o Hyoideum ou osso da língua) do Selam, por outro lado, apresenta mais semelhanças com o análogo nos chimpazés modernos o que implica uma capacidade de vocalização muito próxima da dos macacos e que um longo caminho evolucional foi percorrido para o desenvolvimento das nossas capacidades discursivas.

Não há ainda reacções dos criacionistas a esta descoberta que comprova claramente o carácter transicional do Afarensis, provavelmente vão continuar a negar todas as características humanóides do Afarensis e pretender que este é apenas mais um macaco e que as pegadas de Laetoli foram feitas não pelo A. Afarensis mas por um homem igualzinho aos homens modernos, criado à imagem de Deus!

20 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade – um esclarecimento

Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa

Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.

Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.

Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.

Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!

A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.

Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…

Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:

1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.

A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…

Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.

Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.

19 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade II

O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa – que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» – não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.

De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.

O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».

E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano – e muitos católicos – interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.

Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.

Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.

Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica – sempre com muita oposição pela Igreja – e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.

Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional – e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» – que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!

Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!

Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.

Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.

Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..

(continua)
18 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade

O cerne das preocupações de Ratzinger, expressas nos dois livros que já referi, Without Roots: The West, Relativism, Christianity, Islam e «Values in Times of Upheaval», é o facto de que na Europa não só o catolicismo está em remissão como a religião mais dinâmica é o islamismo. Crescimento que ele atribui ao « relativismo» europeu que permite a construção de mesquitas, sinagogas e templos sortidos e a proselitização aberta de outras religiões – o que, não obstante os constantes protestos do Vaticano, não se verifica em países islâmicos, nalguns dos quais a mera conversão a outra religião dita uma pena de morte.

Assim, a Europa está «surda a Deus» – que para Ratzinger é equivalente a ignorar os dislates debitados pelo Vaticano, o único intérprete autorizado do «livro sagrado» que contém tantas ou mais barbaridades que o livro sagrado da maior religião da concorrência- e o propósito prioritário do Vaticano é a re-evangelização da Europa, objectivo a que Ratzinger se devota desde a sua eleição, denunciando estridentemente o suposto «relativismo» que assolou a Europa, o secularismo, a laicidade e a causa última de todas estas «blasfémias», aquela em que tem assestado baterias, a ciência «que tornou Deus supérfluo».

O Papa, que, como exprime em outro livro, Fé, verdade, tolerância, considera a sua como a única religião «verdadeira» e todas as outras erradas, aflige-se com o pluralismo, tolerância e liberdade de religião – que iguala a relativismo – que «infectam» o outrora bastião da cristandade. Assim, a actual cultura herdeira do iluminismo e não da cristandade, ateisticamente assente nos direitos humanos e na tolerância e não na «vontade» divina (interpretada e debitada pelo Vaticano), que explica cientificamente o mundo sem necessitar de Deus e que desenvolve uma ética e uma moral humanistas à revelia do emanado de Roma, é o inimigo da fé cristã que urge combater.

John Wilkins, o ex-editor do periódico católico londrino The Tablet, resume magistralmente o que acabei de dizer:

«Este Papa não aceitou de facto o pluralismo. Ele confunde-o com relativismo».

Apesar das suas ululantes e constantes exortações aos católicos europeus para seguirem estritamente os ditames do Vaticano, da afirmação de que não é um maçador insuportável quem o faz e da advertência de que o catolicismo não é uma «religião faça você mesmo», as suas constantes homilias condenando os erros da modernidade, a tal «ditadura do relativismo» que tanto esgrime, não surtem qualquer efeito e os católicos europeus são na sua maioria «católicos de café» ou católicos light, que não ligam aos anacronismos que este Papa quer impor, isto é, um regresso aos gloriosos tempos da cristandade medieval.

Imposições claramente expressas na sua primeira encíclica que, como alertei na altura, depois de arrumar na primeira parte a ortodoxia da res privada, explicita na segunda parte o que tem sido tema do seu papado, a denúncia da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos. Segunda parte da encíclica que versa sobre como deve ser ordenada a res publica, a polis, mais concretamente, quais devem ser os papéis do Estado e da Igreja na sociedade.

A guerra anti-modernidade do Vaticano não encontra assim eco nos católicos europeus, para grande consternação de Ratzinger. Mas é partilhada por todos os dignitários da concorrência, inclusive a islâmica, que tentam manter os seus fiéis longe das tentações da modernidade e elegem igualmente a laicidade e a ciência como os grandes inimigos da fé. Mas os dignitários islâmicos têm mais sucesso nesta guerra porque associam a modernidade ao execrado Ocidente e conseguem disfarçar o seu receio de perderem clientela com a suposta luta contra a «ocidentalização».

Ou seja, Ratzinger tem poucas hipóteses de arregimentar soldados para esta guerra anti-modernidade, de encontrar uma causa para unir os europeus sob o estandarte do Vaticano. Resta-lhe apenas a fórmula clássica, inventar um inimigo da civilização ocidental, o ideólogo do mal, desumanizá-lo e exponenciar o ódio contra esse inimigo, transformando-o num sentimento europeísta que deixe em segundo plano tudo o resto e esconda o seu real propósito obscurantista.

(continua)
17 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI lamenta reacções islâmicas

Na oração do Angelus de há duas horas em Castel Gandolfo, Bento XVI disse lamentar a reacção dos muçulmanos à palestra que proferiu na semana passada em Regensburg, e frisou que o texto que citou não reflecte a sua opinião pessoal:

«Nesta altura, gostaria de acrescentar que lamento profundamente as reacções em alguns países em relação a algumas passagens do meu discurso na universidade de Regensburg, que foram consideradas ofensivas à sensibilidade dos muçulmanos.

Na verdade, tratava-se de uma citação de um texto medieval, que não expressa de forma alguma o meu pensamento pessoal.

Ontem, o cardeal secretário de Estado publicou um comunicado neste sentido no qual explicou o verdadeiro significado das minhas palavras.

Espero que isto sirva para apaziguar os corações e para esclarecer o verdadeiro significado da minha apresentação, que na sua totalidade foi e é um convite ao diálogo franco e sincero, com grande respeito mútuo».

Ratzinger não pediu desculpas pela palestra, como foi exigido pelos líderes e dignitários islâmicos, mas aparentemente este discurso é suficiente para apaziguar pelo menos alguns ânimos islâmicos…