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Palmira Silva

12 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Ideologia neo-conservadora contra a ciência

Um artigo do astrofísico Rui Curado Silva simplesmente a não perder no Cinco Dias. Que apenas resume o que há anos vimos denunciando no Diário Ateísta. Um pequeno excerto:

«O novo livro de Richard Dawkins (autor de ‘O Gene Egoísta’) intitulado The God Delusion e a edição hors-série a lançar no próximo dia 8 da revista Ciel et Espace, L’Univers a-t-il besoin de Dieu, são duas respostas enérgicas de quem na comunidade científica já percebeu o carácter organizado e profundamente político da tentativa medieval de retorno ao criacionismo.

O padrão que encontramos nestes ataques à ciência encaixam perfeitamente nos mecanismos de controlo social da ideologia neo-conservadora: o controlo do indivíduo através de um moralismo religioso validado por fraudes científicas e o controlo do colectivo confinando o grosso do lucro e da produtividade a grupos empresariais fiéis à ideologia (industrias do petróleo, tabaco e sector alimentar). A tentativa de introdução do criacionismo nas escolas é um exemplo do primeiro mecanismo e o negacionismo do aquecimento global é um exemplo de tentativa de eliminação de obstáculos ao bom funcionamento do segundo. »

12 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Outra guerra dos cartoons?

Um grupo intitulado «Defending Denmark» infiltrou a juventude do partido Danish People’s Party para «documentar as suas associações de extrema-direita». Uma dessas documentações foi um vídeo filmado no campo de Verão da juventude partidária e mostrava um concurso de «desenho» em que os jovens se entretiveram a desenhar cartoons de Maomé, entre outros cartoons alusivos ao terrorismo islâmico.

O filme foi colocado no Youtube (agora retirado) e depois transmitido em dois canais da televisão dinamarquesa.

O primeiro ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, afirmou que os excertos do vído transmitidos o foram não para «provocar os muçulmanos mas sim para ilustrar o assunto».

Esta explicação não obstou a que o Irão e a Irmandade Muçulmana, mais uma vez confundindo as acções de alguns com uma posição oficial, reagissem contra o sucedido ululando que os cartoons são insultuosos ao Islão e um grupo militante em Gaza ameaçasse os dinamarqueses que se encontram na Palestina. Os governos iraniano e indonésio exigiram explicações aos respectivos embaixadores dinamarqueses. A maioria dos deputados iranianos pediu ao presidente Ahmadinejad para suspender as relações diplomáticas com a Dinamarca.

Ontem a embaixada da Dinamarca em Teerão foi atacada com cocktails molotov e encontra-se temporariamente encerrada.

O governo dinamarquês, entretanto, avisou os seus cidadãos para não visitarem alguns países muçulmanos e espera o conteúdo das orações de sexta-feira para ver se o incidente vai acender outra guerra dos cartoons.

O ministro dos negócios estrangeiros, Per Stig Moller, afirmou numa conferência de imprensa que:

«Nós vamos esperar pelas orações de sexta-feira (no mundo muçulmano) e se nada acontecer talvez este assunto seja ultrapassado».

10 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Objecção de consciência

A intolerância, que mais uma vez recordo ser apenas a atitude de não admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo, é indissociável das religiões e dos crentes que seguem estritamente o preconizado por essas religiões.

A nossa sociedade, assente na tolerância e no pluralismo, isto é, no respeito dos direitos humanos que incluem o direito à diferença, é assim intrinsecamente incompatível com o fundamentalismo religioso.

De todos os cantos do mundo nos chegam exemplos da intolerância religiosa, que nos deveriam fazer reflectir e despertar da complacência em relação às religiões, todas elas, e perceber que a única forma de combater o perigo que o fundamentalismo religioso constitui é a defesa intransigente da laicidade. Não temos qualquer legitimidade para condenar os excessos dos fundamentalistas de uma religião se assobiamos para o lado em relação aos excessos dos representantes de outras.

Todos, e não apenas os islâmicos, têm de perceber que no nosso modelo de sociedade não são admitidas manifestações públicas da intolerância das religiões respectivas. O nosso modelo de sociedade assenta no respeito pelo outro não no respeito pelas ideias do outro. Aliás, foi e é construído no debate livre de ideias. A imposição aos outros dos anacrónicos, discriminadores e, em muitos casos, criminosos preconceitos religiosos é anátema para esse modelo de sociedade!

Um exemplo de intolerância religiosa que deveria ser firmamente combatida ocorreu recentemente em França, em que uma adolescente foi apedrejada por colegas no recreio da escola Jean Mermoz em Lyon por ter violado o jejum do Ramadão. Quase tão sintomático como o apedrejamento foi a reacção de Azzedine Gaci, presidente do CRCM (Regional Council for the Muslim Religion) que deplorou a reacção dos alunos, que considerou devida à sua ignorância do Corão – e aproveitou para lançar a farpa de que este deveria ser ensinado na escola.

A deplorada ignorância do Corão não se refere ao facto de este livro «sagrado» pregar a tolerância. Na realidade, todos os livros ditos «sagrados» pregam a observação estrita dos seus anacronismos, isto é, pregam a intolerância de quem não os siga. A ignorância do Corão lamentada refere-se ao facto de que este prevê que as mulheres «que não se sentirem bem», um eufemismo para a menstruação, estão dispensadas do cumprimento do jejum.

Outro exemplo de intolerância islâmica contra a qual medidas firmes deveriam ser imediatemente tomadas está a surgir um pouco por todo o globo e tem a ver com o facto de que os motoristas de táxi muçulmanos se recusam a transportar os infiéis que violam as leis islâmicas. Nomeadamente invisuais acompanhados por «sujos» cães guia ou passageiros que transportem álcool, mesmo em garrafas seladas.

Este exemplo levanta uma questão delicada: se é certo que não podemos tolerar este tipo de comportamento dos motoristas de táxi, especialmente em relação aos invisuais que dependem do transporte público na sua vida profissional e pessoal, em que é que este difere da chamada «objecção de consciência» permitida aos profissionais de saúde cristãos em relação à saúde reprodutiva?

«Objecção» dita de consciência que reflecte apenas preconceitos religiosos e que não se restringe ao aborto terapêutico ou em caso de violação, as condições previstas na limitada lei que temos. Manifesta-se em muitos ginecologistas que se recusam a prescrever ou aconselhar o DIU (na realidade dão informações erradas sobre o dispositivo); manifesta-se na mutilação desnecessária de mulheres no caso de gravidez ectópica, manifesta-se no «sermão» que acompanha a venda da pílula do dia seguinte (que em muitas farmácias nacionais, dirigidas por farmacêuticos católicos, nem sequer é disponibilizada, assim como não é disponibilizado o DIU), manifesta-se na objecção à fertilização medicamente assistida, etc..

Os motoristas de táxi que se recusam a transportar invisuais acompanhados por cães guia também «desejam exercer a sua profissão à luz dos princípios evangélicos» da religião respectiva e reger o trabalho pelo seu equivalente da «luz do valor de Cristo e do Evangelho» . Porque razão devemos penalizá-los por aquilo a que os católicos cá no burgo chamam coerência ou fidelidade à fé respectiva (e na Austrália pelo menos foram retiradas cerca de 200 carteiras profissionais a estes motoristas «coerentes com a fé»), assim como a Testemunhas de Jeová que desejem ser profissionais de saúde, e não devemos penalizar médicos e farmacêuticos católicos que se recusam a cumprir a lei vigente nos países respectivos?

Ninguém deve transportar para o espaço público os preconceitos e aberrações das respectivas religiões. O que fazem na esfera privada, desde que no cumprimento das leis vigentes nos países em que se encontrem, é uma questão de consciência individual. Mas a consciência colectiva das nossas sociedades tem necessariamente de ser completamente dissociada da religião. E especialmente o Direito não só não pode reflectir essas aberrações como deve penalizar de forma inequívoca as manifestações públicas da intolerância concomitante.

O direito à liberdade religiosa não pode ser confundido com o direito à intolerância religiosa. E esse é o ponto fulcral que precisamos urgentemente que os crentes em qualquer religião, não apenas a islâmica, entendam!

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9 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Em nome de Deus


Bob Woodward, o jornalista do Washington Post que com Carl Bernstein denunciou o caso Watergate, conversa no programa «Meet the Press» acerca do seu último best seller, «State of Denial», o terceiro devotado às guerras «divinamente inspiradas» contra «o eixo do mal» de G.W. Bush.

Os Estados Unidos são cada vez mais um país onde o muro de separação entre Igreja e Estado vai sendo demolido tijolo a tijolo. Como indica este artigo no New York Times, que mostra com um exemplo simples, creches e centros de ATL, que as igrejas estão fora da lei. Mesmo das inúmeras e dispendiosas regras indispensáveis a qualquer outra organização para poder operar estes centros. Este artigo, que recomendo, mostra como nos últimos anos foi produzida legislação que concede impunidade (e isenção fiscal) aos muitos negócios das igrejas americanas, muitos deles sem nada a ver com religião. Recordo que, por exemplo, a Igreja Católica é a multinacional mais poderosa nos Estados Unidos, com negócios totalmente isentos fiscalmente que vão desde a operação de parques de estacionamento, hotelaria, empresas de comunicação social a bancos.

Apesar de mais de 200 novas disposições legais que colocam efectivamente as igrejas acima da lei, os pastores consideram que decorre nos Estados Unidos uma (inexistente) «guerra aos cristãos». Expressa, nomeadamente, em legislação que os impede de prosseguir a «causa» cristã mais glorificada nos Estados Unidos: o direito à intolerância daqueles que não seguem os preceitos «morais» cristãos. Aliás, os devotos pastores consideram ser a luta cívica do século XXI o direito à intolerância, a que chamam o «direito de serem cristãos». Devo confessar que neste ponto estou totalmente de acordo com os cristãos americanos mais fanáticos, isto é, na correlação entre intolerância e religião!

Em muitos estados esse direito à intolerância manifesta-se em «cláusulas morais» a que a legislação federal está sujeita. Como nos conta uma feminista do Ohio na sua crónica da humilhação a que foi sujeita ao tentar obter algo que de acordo com a legislação vigente é perfeitamente legal e nem sequer necessita receita médica: a pílula do dia seguinte.

A esperança reside nas gerações mais novas que, de acordo com os preocupados pastores evangélicos, abandonam em massa as igrejas. As projecções desses pastores indicam que apenas 4% dos adolescentes serão «adultos que acreditam na Bíblia», isto é, fundamentalistas cristãos, intolerantes e integristas, que acreditam literalmente em todos os dislates inscritos na colecção de delírios e fantasias que dá pelo nome de Bíblia.

Como Evan Derkacz indica, é curioso que 4% seja igualmente a percentagem que os teocratas americanos acreditam representar a fracção de muçulmanos fundamentalistas…

8 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Carta a uma nação cristã

Novo livro do filósofo Sam Harris, «Carta a uma Nação Cristã.»

Não obstante as pretensões dos nossos crentes leitores de que a filosofia implica uma mundivisão religioso-sobrenatural, a maioria dos filósofos actuais, aliás todas «as ciências humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia» como se queixou Ratzinger na sua palestra em Regensburg, partilham com o ateísmo uma visão do Universo científico-natural na qual assentam as respectivas elucubrações.

Na realidade, considerando que a teologia não é filosofia, é apenas pseudo filosofia, com excepção dos que se dedicam à filosofia da religião, são muito poucos os filósofos contemporâneos que contemplem «verdades reveladas» ou o sobrenatural a não ser para as desmistificar. Na minha opinião, as religiões «reveladas» são tão incompatíveis com a filosofia como o são com a ciência, já que assentam em dogmas inquestionáveis e o dogmatismo não é consentâneo com uma postura filosófica.

De facto, desde a Renascença que a visão científico-natural do mundo e concomitante humanismo permearam o pensamento ocidental. Desde a Renascença que a Cristandade, a supremacia da religião e da visão religiosa-sobrenatural do Universo, está em declínio no Ocidente. O Humanismo, o traço dominante da Renascença, venceu o teocentrismo medieval, com a sua redescoberta do homem, confiante no seu intelecto, poder e valor, em contraste com a Idade Média, que apenas considerara o homem como um ser pecaminoso e sem valor intrínseco. Libertação do homem renascentista bem representada no discurso «Da dignidade do homem» (Hominis Dignitate) de Picco della Mirandola.

Antes da visão cientifico-natural prevalecer, as pessoas acreditavam e utilizavam astrologia, alquimia, cabala mística e demais parafernálias religioso-sobrenaturais. A mundivisão mitológica e mágica do mundo proporcionava um weltanschaaung e propósito cognitivo pré-científico, em que se acreditava, por exemplo, que os corpos celestes eram manifestações de forças divinas sortidas que podiam magicamente influenciar objectos terrestres. De acordo com esta crença astrológica – considerada científica – os corpos superiores poderiam imprimir nos corpos inferiores a podridão e as chagas. E o ar era o elo condutor. Caso estivesse corrompido pelos astros, «feriria o coração» e agravaria a natureza do corpo sem que a pessoa sentisse nada. Todos os aspectos da vida humana eram assim determinados «sobrenaturalmente» e o sobrenatural dominava a forma como vivia e morria o homem medieval.

No centro do peito da figura que eu havia contemplado no seio dos espaços aéreos do Sul, eis que surgiu um roda de maravilhosa aparência. Continha os signos que a reaproximavam dessa visão em forma de ovo, que eu tive há dezoito anos e que descrevi na terceira visão do meu livro Scivias. «O Livro das Obras Divinas», Hildegard von Bingen, a tal para a qual, segundo o Vaticano, «a relação entre fé e ciência era quase co-natural».

As imagens fantásticas da visionária beneditina expressam as teorias sobre o microcosmo e a cosmologia vigentes. A «vontade» de Deus e a vinda de adversidades podem ser lidas nos signos do céu, os pecados da terra ressoavam nos céus. Cometas e eclipses eram «maus presságios», uma forma de Deus anunciar catástrofes sortidas com que decidira mimosear a Terra.

A cosmologia medieval distinguia duas regiões do Universo, a esfera sublunar, que continha todas as substâncias sujeitas à corrupção devido à incompatibilidade natural existente entre os quatro arqué – os elementos primordiais de Empedokles ainda aceites – (o fogo quente, o ar seco, a terra fria e a água húmida) que a constituiam. A segunda região, a esfera supralunar (ou celeste), era povoada pelos astros, pelos santos que estão na «Glória Eterna», os anjos e Deus. Acreditava-se que o mundo supralunar emitia fluidos, influxos invisíveis ou segredos naturais, que influenciavam o mundo sublunar.

Ou seja, as pessoas não percebiam a natureza das interacções químicas e físicas, os processos físicos pareciam ser o produto de enigmáticas «propriedades ocultas» e os elementos e reacções químicas pareciam ser o produto de magia. Hoje, quando a ciência se impôs com as suas explicações naturais de fenómenos naturais, não há alguma razão ou prova para acreditarmos que, a existir o sobrenatural indispensável às religiões, este tenha qualquer interacção ou efeito no mundo natural.

A falência óbvia da mundivisão religiosa-sobrenatural para explicar o Universo, a falta de qualquer evidência da existência do sobrenatural associada à certeza de que a existir não exerce qualquer influência no mundo natural, não obsta a que os fanáticos de todas as religiões se achem no direito de impor a todos as suas fantasias religiosas. E explica porque são cruzados contra a ciência todos os fanáticos em nome de Deus. Um dos aspectos abordados por Harris no seu novo livro.

7 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Violência nos subúrbios de Paris

Michel Thoomis, secretário geral do sindicato Acção Polícia, escreveu uma carta ao ministro do interior francês avisando Nicolas Sarkozy de que decorre uma intifada não declarada contra a polícia nas ruas dos bairros sociais de Paris, que albergam um grande número de desempregados de origem magrebina.

De acordo com este sindicalista, que pede carros blindados e canhões de água para controlar a situação:

«Nós estamos num estado de guerra civil, orquestrada por radicais islâmicos. Já não se trata de uma questão de violência urbana, é uma intifada com pedras e cocktails Molotov. Já não se vê dois ou três jovens enfrentando a polícia, vê-se blocos de edíficios a serem despejados nas ruas para libertar os ‘camaradas’ quando estes são presos».

O número de ataques à polícia aumentou cerca de 33% nos dois últimos anos e os polícias, especialmente os que patrulham estas zonas em pequenos grupos, são imediatamente atacados mal tentam prender algum dos habitantes destes bairros problemáticos.

Algumas fontes da polícia francesa insistem no entanto que o problema é essencialmente criminoso, uma reacção dos patrões do crime organizado destes bairros às políticas duras de combate à criminalidade do ministro do interior, que é um dos mais fortes candidatos do centro-direita às eleições presidenciais de Abril próximo.

Uma destas fontes afirmou ao Figaro que essas políticas «destruiram a economia paralela dos bairros sociais» e segundo Gerard Demarcq, do maior sindicato policial francês, o aumento do número de ataques à polícia apenas reflecte o facto de que esta recuperou território anteriormente na posse de bandos criminosos, traficantes de drogas e outros marginais.

Os presidentes de câmara dos subúrbios mais afectados, os mesmos que há um ano assistiram a semanas de violentos tumultos e à destruição pelo fogo de centenas de carros, já expressaram a sua preocupação sobre as novas tácticas policiais, mais musculadas, de combate à criminalidade que segundo eles conduzem a um círculo vicioso, isto é, que a acção policial destinada a erradicar o crime organizado das suas comarcas agravará o resentimento dos locais.

Les Mureaux, subúrbio parisiense constituído por 46% de habitação social, conheceu outro tumulto no passado fim de semana, com vários polícias feridos e um carro da polícia incendiado. Na quarta-feira, cerca de 100 polícias – e alguns jornalistas- efectuaram um raid matinal num dos bairros mais problemáticos deste subúrbio, des Musiciens. Esta reacção da polícia às agressões sofridas tem levantado alguma celeuma em França e já motivou um pedido de explicação ao ministro do Interior por parte do Partido Socialista francês.

7 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Prémio Nobel da Química 2006

O investigador norte-americano Roger D. Kornberg foi ontem distinguido com o Prémio Nobel da Química 2006. O cientista foi galardoado pelo seu trabalho sobre «a base molecular da transcrição eucariótica».

A resolução da estrutura atómica da ARN polimerase serviu de base a um trabalho extremamente elegante que foi decisivo para elucidar a nível molecular o mecanismo de transcrição em eucariotas ou eucariontes (organismos cujos células têm núcleo- todos os organismos multicelulares são eucariotas).

A transcrição é a leitura da informação contida nos genes ou fragmentos de ADN, informação transcrita numa molécula de ARN que é complementar à cadeia da dupla hélice de ADN «lida». É o primeiro de dois passos, transcrição e tradução referidos conjuntamente como expressão génica, necessários à produção de proteínas. A transcrição não se limita à expressão de proteínas já que o ARN tem outras funções para além de servir de ponte entre o ADN e a produção de proteínas.

A ARN polimerase é a principal enzima do complexo enzimático responsável pela transcrição do ADN em ARN. Ao contrário dos procariotas ou procariontes – organismos unicelulares, por exemplo bactérias, cujas células não têm núcleo – onde o processo de transcrição é relativamente simples, com apenas um co-factor designado por factor sigma, nos eucariotas existem uma série de co-factores necessários à transcrição, os factores de transcrição ou TFs.

Esta complicada coreografia molecular está directamente relacionada com o grau de complexidade celular encontrado nos organismos multicelulares. Estes organismos apresentam células especializadas, como um neurónio ou uma célula muscular, que necessitam expressar diferentes proteínas, isto é, de activar genes diferentes. Ou seja, a transcrição selectiva das dezenas de milhares de genes presentes numa célula determinam se esta se transformará num neurónio, numa célula muscular, do fígado ou se se mantém estaminal. E determinam se uma dada célula se desenvolve normalmente ou se transforma numa célula cancerígena.

Investigar como são activados os genes é uma questão fundamental em biologia, necessária, por exemplo, à diferenciação optimizada de células estaminais numa futura medicina regenerativa.

Enquanto o prémio Nobel da Química trata da activação e transcrição de genes, o prémio Nobel da Fisiologia e Medicina, atribuído segunda-feira aos investigadores norte-americanos Andrew Fire e Craig Mello, tem a ver com a desactivação ou silenciamento de genes.

De facto, os dois cientistas foram galardoados pela sua descoberta da interferência de RNA (RNAi), mecanismo que permite silenciar genes introduzindo na célula uma curta cadeia dupla de RNA complementar à sequência de RNA do gene a silenciar. Ou seja, este mecanismo, presente naturalmente não só em animais mas também em plantas como defesa contra vírus e para regular a expressão de cerca de 30% dos genes, permite, de forma simples e eficaz, manipular a expressão de um determinado gene. Para além de ser fulcral na investigação da função de uma determinada proteína, pode suprimir a expressão de uma proteína que esteja na origem de uma determinada patologia.

Por exemplo, pode ajudar a controlar os níveis de colesterol, como indicam estudos preliminares realizados em primatas em que se silenciou o gene que codifica uma proteína envolvida no transporte e metabolismo do «mau» colesterol.

6 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Laicidade radical e outras falácias – II

Para além de uma cedência inadmíssivel às pretensões do terrorismo islâmico, se estas de facto se devessem ao que pretendem os que querem combater o fundamentalismo islâmico com o católico, «a exclusão de Deus» que constitui «um ataque às convicções mais íntimas» dos terroristas em nome de Deus, o que advogam os católicos mais fanáticos, para além de corresponder ao desmoronamento da sociedade tolerante que construímos, não só não resolveria o problema que o terrorismo em nome de Allah constitui como apenas conduziria a uma escalada da violência e a uma nova «cruzada».

Como o confirma, por exemplo, o facto de o número 2 da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahri, para além de chamar fracassado e mentiroso a George W. Bush, ter designado por charlatão o auto intitulado representante do Deus católico, numa mensagem de vídeo divulgada a semana passada no site da rede de televisão Al-Jazeera. O líder terrorista mencionou Bento XVI afirmando «Esse charlatão acusou o Islão de ser incompatível com a racionalidade, enquanto esquece que a sua própria cristandade é inaceitável para uma mente sensível».

A única forma de combater o terrorismo religioso e simultaneamente defender a nossa sociedade é a defesa intransigente dos valores em que esta foi fundada, primordiais entre estes a laicidade e a liberdade de expressão!

Aproveitar a ameaça que o terrorismo islâmico constitui – e uma simples inspecção aos nossos arquivos confirma termos denunciado desde sempre o fundamentalismo religioso, seja de que confissão for, como a pior ameaça à humanidade na actualidade – para verberar, como um dos apologetas profissionais de serviço ao nosso espaço de debate o faz, que a laicidade e os laicistas são os «maiores amigos» do terrorismo islâmico e que «o verdadeiro inimigo dos terroristas é o Papa Bento XVI», apenas confirma a minha análise da palestra de Regensburg: que esta foi cuidadosamente estudada para que Bernardos sortidos espalhados pelo Ocidente fizessem a apologia de Bento XVI e do catolicismo como bastião da defesa contra o fundamentalismo islâmico e simultaneamente atacassem a laicidade e os valores civilizacionais que pretendem falaciosamente defender!

De facto, afirmar que passa pelo fundamentalismo católico a defesa do nosso modelo de sociedade, isto é, dos seus valores civilizacionais – declarados contra a Igreja católica, que sempre os combateu e os denominou de «loucura e erro» – é rejeitar esses valores e corresponde a uma regressão para uma sociedade análoga à que os fundamentalistas islâmicos querem impor (ou já impuseram) nos respectivos países.

Ao embarcarmos nas falácias preparadas pelos fundamentalistas católicos, que se desdobram em ataques constantes à laicidade e à liberdade de expressão – lendo os textos dos escribas de serviço aparentemente apenas o Papa e os católicos podem usufruir dessa liberdade para criticar outras posturas face à religião, principalmente o islamismo e o ateísmo – não estamos a defender a nossa sociedade: estamos a atacar as bases em que ela foi construída!

Não há qualquer diferença em género que não em espécie entre sociedades integristas em que a religião, qualquer, determina todos os aspectos do quotidiano. A ameaça que constitui o terrorismo islâmico deve-se ao fundamentalismo religioso em que se baseia não ao facto de a religião em causa ser a islâmica. Qualquer fundamentalismo religioso constitui uma ameaça aos nossos valores civilizacionais, que não distinguem cor nem credo.

É extremamente preocupante que há pouco menos de um mês, sem fanfarras nem grandes anúncios públicos, a Assembleia Geral das Nações Unidas tenha aprovado uma moção genérica de combate ao terrorismo global, em que se inclui uma frase defendendo a tomada de medidas contra «a difamação das religiões». Isto é, exortando os estados membro à criação de leis punindo a «blasfémia».

Esta medida, a ir para a frente, indica apenas que o terrorismo global teve a sua primeira grande vitória: a derrota dos valores civilizacionais em que assentam as nossas sociedades democráticas e simultaneamente a derrota de uma declaração que a ONU proclamou faz 58 anos no próximo dia 12, principalmente dos seus artigos 18, 19 e 28.

6 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Da laicidade radical e outras falácias

O ateísmo, normalmente reduzido ao seu significado etimológico, isto é, a negação de Deus (ou deuses), na realidade é a posição filosófica herdeira da filosofia grega, que correspondeu ao abandono das explicações religiosas até então vigentes e em que se procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo.

Uma das escolas filosóficas mais antigas, associada ao atomismo, nomeadamente como foi desenvolvido por Epicurus, o primeiro ateísta de que há registo histórico, assentava na existência exclusiva de causas naturais para todos os aspectos da natureza. O ateísmo, se quisermos, corresponde à evolução desta escola filosófica na medida em que os ateístas não sentem qualquer necessidade do sobrenatural, isto é, o Universo é simplesmente aquilo que vemos, é a única realidade existente e nós somos apenas um infíma consequência de processos naturais casuísticos. Assim, o significado da nossa vida é o que fazemos dela e não há qualquer causa última quer para nós quer para o Universo.

Em resumo, para os ateístas a mera concepção de um qualquer ser transcendente ou sobrenatural é, para além de desnecessária, absurda, e toda a «ligação» para além da física, a metafísica que muitos confundem com sobrenaturalidade, se reduz à sua definição por William James, «apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza», isto é, sem arbitrariedade nem dogmatismo.

Todas as religiões, especialmente as do livro, são anti-ateísmo e todas elas, na sua história mais ou menos recente, perseguiram e assassinaram todos os que se atreviam a pôr em causa os dislates em que assentam. Todas elas, com excepção do judaísmo, consideram ser obrigação dos crentes espalhar a fé e combater o ateísmo. No entanto, muitos crentes, os mais fanáticos em especial, ululam estridentes acusações de anti-religiosidade em relação a todos os ateus que se atrevem a afirmar publicamente as suas convicções filosóficas.

E enquanto um crente que combata o ateísmo é designado como convicto ou coerente com a doutrina respectiva, um ateu que simplesmente se atreva a manifestar, num espaço que tem o nome Diário Ateísta, as suas convicções filosóficas ou a sua coerência humanista é imediatamente rotulado de ateísta radical ou fundamentalista.

Ou seja, por uma qualquer razão obscura, esses crentes, que não foram permeados pelo pluralismo nem respeitam de facto os valores civilizacionais em que assenta a nossa sociedade democrática, consideram ser apenas o que chamam «convicção» religiosa o que é na realidade fundamentalismo, porque passa pela defesa de um conjunto de princípios, de natureza religiosa tradicionais e ortodoxos, a que chamam «valores radicados na natureza mesma do ser humano», tidos por verdades fundamentais e indispensáveis à consciência colectiva dos Estados em que se inserem, nomeadamente consideram ser dever dos Estados impor esses «valores morais universais e absolutos» na letra da lei.

E chamam «fanáticos» ou «fundamentalistas» ateus aos que se opõem a essa «legítima» imposição a todos dos dislates religiosos respectivos e denunciam as manobras nesse sentido.

Mais interessante ainda é o oxímoro com que mimoseiam os que se opõem a que o Estado seja utilizado na evangelização da sociedade: laicistas radicais!

Tal como não podem existir graus nem adjectivação da democracia, ou há democracia ou não há, também ou existe laicidade ou de facto não há separação Estado-Igreja. Quando quem detém o poder político legitimamente sufragado perpetua ou prolonga esse poder – vide o que está a acontecer na Venezuela em que Hugo Chavez prepara a perpetuação da sua presidência – mata a democracia; de igual forma, quando o Estado deixa a Igreja, que aproveita a mínima oportunidade para tal, imiscuir-se no espaço público (em que este público se refere ao espaço sobre a tutela do Estado) deixa de existir laicidade – contra a qual verberam todas as religiões nos países em que são maioritárias e que exigem veemente e estridentemente naqueles em que são minoritárias.

Nas sociedades ocidentais os sucessivos embates entre a ciência e a religião iniciados na Renascença, exactamente com a redescoberta do trabalho do ateísta Epicurus na forma do poema de Titus Lucrecius Carus De rerum Natura, continuados nos combates políticos ao poder da Igreja, proporcionaram a sociedade tolerante, democrática e assente em valores humanistas que é a nossa. Sociedade que é incompatível com o fundamentalismo religioso. Qualquer que este seja, islâmico ou cristão!

(continua)
5 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Prémio Nobel da Física 2006

O Prémio Nobel da Física 2006 foi atribuído aos astrofísicos George Smoot e John Mather pelos seus trabalhos sobre a origem do universo e o Big Bang, mais concretamente pela descoberta das propriedades da Radiação Cósmica de Fundo de Microondas (RCFM) com o satélite COBE- Cosmic Background Explorer Satellite.

A RCFM foi prevista por Gamow, Alpher e Herman, em 1948, quando estudavam a origem dos elementos químicos e o estado da matéria no Universo primordial e foi descoberta, por serendipidade, há quase quarenta anos, por Arno Penzias e Robert Wilson. A detecção da RCFM, uma das fontes mais ricas de informação sobre o Universo primordial e por isso considerada como uma das mais importantes descobertas da história da cosmologia observacional, valeu a Penzias e Wilson o Prémio Nobel de Física em 1978.

Como a Real Academia Sueca das Ciências anunciou, o Nobel foi atribuído aos dois cientistas norte-americanos pela «sua descoberta da anisotropia [perturbações na distribuição espacial da RCFM] e emissão tipo corpo negro da Radiação de Fundo Cósmica de Microondas». O «trabalho efectuado sobre a origem do universo numa tentativa para melhor compreender a origem das galáxias e das estrelas» «reforçou o cenário do Big Bang para explicar a origem do universo».

De acordo com o o cenário Big Bang, a RCFM é uma relíquia da fase inicial do Universo já que «Imediatamente após o Big Bang o Universo pode ser comparado a um corpo que emite radiação [fotões] com uma distribuição de comprimentos de onda emitidos que depende apenas da sua temperatura. O forma do espectro deste tipo de radiação tem uma distribuição especial conhecida como radiação de corpo negro. Quando foi emitida a temperatura do Universo era de quase 3000 ºC. Desde então, de acordo com o cenário Big Bang, a radiação arrefeceu gradualmente à medida que o Universo expandia. A radiação de fundo que medimos hoje corresponde a uma temperatura que é apenas 2.7 graus acima do zero absoluto*» .

Isto é, actualmente em cada centímetro cúbico do Universo existem cerca de 400 fotões, a uma temperatura de -270 ºC ou 3 Kelvin. Este gás de fotões, uma relíquia do Big Bang e uma prova da expansão e de um passado extremamente quente do Universo, constitui hoje a sonda de excelência sobre os eventos do Universo primordial e permite reconstituir, com razoável precisão, cerca de 13.5 mil milhões de anos de História Cósmica. As anisotropias do RCFM constituem uma fotografia das flutuações de matéria que deram origem a galáxias e grandes estruturas do universo.

*A temperatura não é mais que uma medida da agitação molecular ou atómica. Ao zero absoluto ou 0K estão congeladas as rotações, vibrações e translacções, isto é, moléculas ou átomos estão quietinhos.