21 de Outubro, 2006 Palmira Silva
O referendo ao aborto: direito, ética e religião – I
Van Rensselaer Potter, que introduziu em 1971 o neologismo bioética – no livro Bioethics: bridge to the future -, pretendia com a conjugação «’bio’ para representar o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas vivos, e ‘ética’ para representar o conhecimento dos sistemas de valores humanos» estimular o diálogo entre as ciências exactas, as ciências sociais e a filosofia. Diálogo essencial para «ajudar a humanidade no sentido de uma participação racional e cautelosa no processo da evolução biológica e cultural».
Na realidade, os progressos científicos e tecnológicos muito rápidos que se verificaram a partir de meados do século passado, tão rápidos que não permearam a sociedade, introduziram uma série de problemas novos, nomeadamente no que se refere às ciências da vida, em que a falta deste debate entre ciência e ética permitiu que se instalassem formas veladas de Inquisição que ensombram não só o desenvolvimento da própria ciência como o desenvolvimento ético da nossa sociedade.
A questão do aborto, ou seja, do estatuto jurídico do embrião, é talvez um caso paradigmático em que esta falta de diálogo entre ciência e ética, especialmente em Portugal, permitiu a apropriação abusiva do tema pela Igreja Católica.
A legislação vigente em Portugal, com as estritas ressalvas que todos conhecemos a que mesmo assim a Igreja se opõe, reflecte não um debate ético – que nunca aconteceu em Portugal – mas apenas preconceitos religiosos. Isto é, a lei nacional consagra como criminoso e punível com pena de prisão aquilo que é um «pecado» gravissimo aos olhos da Igreja.
Contrariamente ao que afirma o cardeal patriarca, a penalização do aborto é assim uma questão religiosa e não é resultado de uma reflexão ética fundamental. Na realidade, a penalização do aborto é a materialização de valores que não têm lugar no Direito Penal, valores completamente incompatíveis com os axiomas que se defendem actualmente na comunidade do Direito.
Um Direito Penal assente numa pseudo ética religiosa apenas se verifica em teocracias. Num estado laico todo e qualquer ramo do Direito deve ser livre de concepções religiosas ou morais. Num estado moderno, logo necessariamente laico, cabe à ética decidir qual a resposta sobre o que é eticamente correcto; ao direito sobre o que seja racionalmente justo e à política sobre o que seja socialmente útil. Em Portugal, pelo menos no tema aborto, a ética, o direito e a política estão reféns da religião.
De facto, a ética deve ser exclusivamente filosófica, puramente racional e cientificamente informada. Uma ética que não se consiga separar da religião – ou da ideologia política – será sempre uma pseudo ética. Não será mais do que um conjunto de costumes, dogmas, crenças religiosas e/ou atitudes populares convertido em prescrições autoritárias que, se formalizadas no direito pela política, corresponde a uma perversão grave dos princípios que supostamente regem a nossa sociedade.
Como já referi, a filosofia correspondeu à libertação do pensamento humano da opressão da religião, da superstição e do «senso comum», criando as condições para o nascimento da ciência. Desde os seus primórdios, a filosofia abandonou as explicações religiosas até então vigentes e procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo. Não faz qualquer sentido que no século XXI a ética continue em Portugal refém da religião ou de qualquer forma de construção do conhecimento não assente na razão.
Muito menos faz sentido, com base numa pseudo-ética religiosa, subordinar o direito e a política de um país democrático e laico ao que é considerado «pecado» por uma qualquer religião. As convicções religiosas individuais, mesmo se maioritárias, devem permanecer no domínio privado de cada um e não podem ser impostas a toda a comunidade. Para além do mais, democracia não é sinónimo de ditadura da maioria!
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