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Palmira Silva

1 de Novembro, 2006 Palmira Silva

Referendo ao aborto: ontologia do embrião I

A legislação actual sobre o aborto, que assenta na protecção do bem jurídico «vida intra-uterina» – em que esta vida intra-uterina se refere apenas ao embrião ou feto e contra a qual é apenas possível atentar a título doloso e não, como em relação à vida humana, a título negligente – foi estabelecida como um compromisso, inaceitável num estado laico, entre as ululações da Igreja e seus representantes – que carpem ser um genoma equivalente a uma pessoa – e o que é implicitamente aceite por todos, menos os fanáticos cristãos: o embrião não é uma pessoa!

Só faz sentido criminalizar o aborto após atribuição de um estatuto jurídico ao embrião/feto equivalente ao de uma pessoa, não como protecção de uma vaga e cientificamente imprecisa «vida intra-uterina». Estatuto que deve resultar da discussão da sua natureza, ou seja, de uma discussão ética/ontológica e não deve ser contaminado por considerações religiosas/morais.

Se após essa discussão se concluir que o embrião é de facto uma pessoa então, em minha opinião, para ser coerente com esse estatuto, a legislação nacional deve ser alterada para tratar igualmente a vida e a tal vida intra-ulterina. Ou seja, não só o quadro penal deve ser alterado – sendo as penas para o aborto iguais às correspondentes para o homícido – como deve ser contemplado o atentado negligente contra a vida do que se chegou à conclusão ser uma pessoa.

E apenas deve ser permitido o abortamento de embriões/fetos em caso de risco de vida para a mulher ou embrião/feto! E, claro, deve ser proibido o «assassínio» de embriões produzidos in vitro, isto é, o estatuto do embrião tem de ser um estatuto intrínseco, ontológico, que reflicta o que consideramos ser a natureza do embrião e como tal deve ser independente da forma como foi produzido.

Caso contrário os argumentos a favor da penalização não são sérios, são argumentos assentes não na natureza do embrião mas em preconceitos referentes à forma como ele foi obtido, ou seja, ao sexo, ou em preconceitos de género!

Se, pelo contrário, se concluir que um embrião não é uma pessoa então não faz sentido criminalizar o aborto! Porque criminalizar o abortamento de algo que se reconhece não ser uma pessoa significa apenas que a nossa não é uma sociedade assente no respeito dos direitos do Homem mas em que se respeitam apenas os direitos do homem!

Isto é, uma sociedade em que a mulher não é considerada uma pessoa de plenos direitos, uma sociedade que continua refém de um paradigma católico mariano, em que se ulula contra «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». Em que se argumenta falaciosamente sobre «motivações egoístas» das mulheres, ou seja, se utilizam julgamentos de valor sobre as motivações de uma mulher que resolve abortar algo que se reconhece não ser uma pessoa para justificar a punição dos sub-humanos que, horror dos horrores, pensem em si como pessoas e não como «propriedade pública»!

Como refere Conceição Branco, num artigo que recomendo vivamente, «Não será certamente por acaso que, numa posição de condenação sobre o aborto, os argumentos [da Igreja Católica] afunilem no adultério, apontado como um pecado feminino, enquanto os homens ficam à margem, escapam ao estigma».

Para ser séria, racional, objectiva e em concordância com os valores que se protesta serem os nossos, a discussão sobre a despenalização do aborto deve ser despida de todos os preconceitos e falácias sortidos com que normalmente é colorida, assentando no que de facto está em causa: um embrião deve ou não ser considerado uma pessoa de plenos direitos? Qual o estatuto ontológico em que devemos assentar o estatuto jurídico a conferir ao embrião?

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30 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Opus Dei perde no Brasil

Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito à segunda volta presidente do Brasil com 61% dos votos.

Geraldo Alckmin, o tal que é filho do primeiro supranumerário do Brasil e ele próprio pelo menos com fortes ligações à Opus Dei – promove reuniões periódicas com membros da seita e tem um confessor da prelatura – teve menos votos que na primeira volta: apenas 39% dos votos.

A separação da Igreja e do Estado, uma conquista da democracia, fica assim a salvo das depredações inevitáveis que a eleição de um presidente ligado à mais fanática e intolerante seita da Igreja católica implicaria. Os mais sinceros parabéns aos nossos leitores do outro lado do Atlântico!

29 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: autonomia da mulher II

A referida prosa do actual Papa debitada enquanto Inquisidor-mor, é ainda uma elegia às teses agostinianas sobre os males do sexo, isto é, afirma que a «dimensão antropológica da sexualidade é inseparável da teológica» – o abominado sexo é uma consequência da «queda» – e como tal a humanidade deve «evitar as relações marcadas pela concupiscência», na realidade uma «tríplice concupiscência», a «concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida», pechas para o mal advindas «do pecado [original]».

Para a Igreja de Roma, o ideal de mulher deve ser uma mulher completamente anulada como pessoa, devotada à sua «capacidade para o outro», sendo completamente inaceitável por ateísta «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». A mulher, que se realiza apenas no casamento ou na Igreja, deve no primeiro caso subjugar-se totalmente ao marido e aos filhos, já que não tem valor intrínseco fora de ambos, na realidade tem menos valor que um qualquer óvulo fertilizado – nem em casos «de vida ou de morte, para a mãe» é admissível uma interrupção da gravidez!

De facto, são consideradas «modelos de perfeição cristã» a beata Isabella Canori Mora, que preferiu morrer às mãos de um marido abusivo a «violar a santidade do matrimónio», e a «santa Mãe de Família» Gianna Beretta Molla, que preferiu morrer a abortar.

Assim, a condenação histriónica do aborto (e da contracepção) pela Igreja de Roma e seus sequazes não tem nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente» de algo que confessam não saber bem o que seja. Vida que «na sua condição terrena», como já tive oportunidade de abordar, «não é um valor absoluto» para a Igreja! Excepto, claro, na forma unicelular – células estaminais e óvulos fertilizados- e embriónica!

A oposição católica ao aborto, embora baseada nas raízes do cristianismo, que justificam igualmente a oposição à contracepção – misoginia e ódio ao sexo, que desvia os crentes das «virtudes» cristãs – insere-se simplesmente na luta da Igreja pelo poder sobre a sociedade. Poder manifesto cá no burgo, por exemplo, no tempo de antena da Igreja e organizações subsidiárias em todas as estações de rádio e televisão, em que, insidiosamente, se tenta impor ao país os ditames do Vaticano em todos os aspectos da sociedade, da Economia aos comportamentos individuais!

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29 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: autonomia da mulher

A guerra contra a modernidade da Igreja Católica, isto é, a guerra pela manutenção do integrismo católico, iniciou-se no plano político, essencialmente combatendo os ideais «hereges» do iluminismo – que ameaçavam a supremacia da Igreja sobre todos os aspectos da vida -, nomeadamente combatendo a soberania do indivíduo, dos seus direitos e da sua liberdade, denunciados como atentados à lei «natural», isto é, à submissão do homem ao Vaticano, representante na Terra de Deus.

Assim o discurso da igreja no século XIX é marcado pela «intransigência católica» em relação às modernices políticas e ao reconhecimento dos direitos humanos, denunciados como «loucura e erro».

No terreno puramente político, a Igreja perdeu a batalha, pelo menos na Europa. E assim no século XX assesta as baterias na sexualidade, «guerra à sexualidade» que no século XXI começa a ser suplantada pela «guerra à ciência». A obsessão da Igreja sobre a questão do sexo é tanto maior quanto ela perdeu, radicalmente, a batalha no campo das autonomias políticas.

Não é assim de estranhar que, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, seja apenas em finais do século XIX, depois de Pio No No perder o poder político sobre Itália, que o aborto é declarado um pecado imperdoável. De igual forma, os meios contraceptivos «não naturais», usados desde sempre na História da Humanidade, são declarados «pecaminosos» e proibidos aos católicos somente no século XX.

A «guerra ao sexo» estende-se à igualdade dos sexos e aos direitos da mulher: no momento em que a autonomia da mulher for uma realidade, está ameaçado o reduto do poder da Igreja na sociedade. O combate aos direitos da mulher é disfarçado como sendo uma «ordem» da natureza: a Igreja não tem nada, ulula, contra as mulheres! É a própria ordem «natural» inscrita na biologia feminina que afirma a heteronomia, isto é, estipula os limites da autonomia e dos direitos da mulher.

Assim, tudo o que esbata os limites do «natural» em relação à mulher e reafirme a sua condição de ser humano de plenos direitos é combatido violentamente pela Igreja! Como se viu, por exemplo, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em que os delegados do Vaticano e os seus poucos aliados – os fundamentalistas islâmicos, Malta e alguns países latinoamericanos em que a Igreja detém de facto poder político – tentaram impedir que se alcançasse o consenso necessário à aprovação da Plataforma de Acção, nomeadamente no que diz respeito à universalidade dos direitos humanos, mais especificamente ao reconhecimento dos direitos humanos da mulher.

O ênfase no «natural»* e divinamente predestinado é encontrado ainda na carta aos bispos católicos de todo mundo, «sobre a colaboração do homem e da mulher no mundo e na Igreja» em que a auto-intitulada «Perita em humanidade», expertise conferida pela inenerrante «antropologia bíblica» – leia-se pecado original – denuncia como profundamente errada a «antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico». Ou seja, a emancipação e independência da mulher são uma aberração ateísta que não reconhece a ordem «natural» do mundo divinamente ordenada!

*Estranhamente apenas em relação aos direitos da mulher, antagónicos da ordem divina, o «natural» é invocado! Por exemplo, no caso Terry Schiavo, a interrupção da sustentação artificial da sua vida foi considerado um «atentado contra a vida», um «homicídio» levado a cabo por «carrascos» implacáveis! Ou seja, conforme convém, quer interferir quer não interferir na ordem natural das coisas é considerado um pecado imperdoável, vendido à sociedade como um assassínio!

(continua)
28 de Outubro, 2006 Palmira Silva

The meaning of life

Quando me preparava para continuar a série de posts sobre o aborto e o estatuto do embrião e como, tirando os que ainda não se libertaram de dois milénios de condicionamento social, são os fundamentalistas católicos os estridentes e ululantes «defensores intransigentes da vida», decidi consultar a Enciclopédia Católica para ver afinal o que são supostos defender estes paladinos de óvulos e espermatozóides, seguidores convictos de Agostinho de Hipona que verberava ser a abstinência – excepto para fins estritamente reprodutivos – a única forma de alcançar a graça divina.

Devo confessar que fiquei completamente baralhada! Pensar-se-ia que sendo a defesa da vida o estandarte actual da Igreja de Roma, que ulula contra um imaginado relativismo que resulta numa suposta «cultura de morte», ou seja, numa sexualidade saudável e sem culpas, vida seria algo muito bem definido pela Igreja de Roma.

Na realidade, a Igreja de Roma arvora-se em paladino intransigente de algo que… confessa, em 6 454 palavras (leram bem, seis mil quatrocentas e cinquenta e quatro) de uma dissertação absolutamente hilariante, não fazer a mínima ideia do que seja!

Mais concretamente, o parágrafo inicial diz tudo:

O enigma da vida [a definição do que é a vida] permanece um dos dois ou três problemas que enfrentam quer o cientista quer o filósofo e, não obstante o progresso no conhecimento que se verificou nos últimos 2 300 anos, não avançámos apreciavelmente em relação à posição de Aristóteles no que respeita às questões principais. Quais são as suas [da vida] manifestações características? Quais são as suas formas principais? Qual é a natureza intrínseca da actividade vital?

Ou seja, a Igreja de Roma admite não saber o que é a vida e não ter respostas para a natureza intrínseca da vida que não sejam as propostas por Aristóteles. E assim podemos ler uma dissertação prolixa que basicamente se reduz, depois de muita palha totalmente desconexa, a afirmar que os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital (que nos humanos é a tal anima que só a ICAR pode salvar).

Só há vida após a animação, a junção do dito princípio vital e do corpo biológico. Animação que a doutrina católica diz ocorrer na espécie humana quando a alma criada por Deus é infundida nos elementos materiais biológicos. Apenas após animação estes elementos físicos ficam aptos a exercerem as funções da vida humana, descrita como outra santíssima trindade, uma triunidade entre as vidas vegetativa, sensciente e intelectual. Isto é, de acordo com esta definição a vida vegetativa, que não tem consciência de si nem do meio ambiente, não é suficiente para descrever a vida humana!

Ou seja, a posição da Igreja Católica em relação ao aborto e à investigação em células estaminais é total e completamente discordante da sua doutrina expressa na Enciclopédia Católica! Afinal, contrariamente ao que ululam os dignitários católicos, a vida humana não se reduz a um genoma humano!

De acordo com a dita Enciclopédia o que caracteriza a vida humana é o tal princípio vital! E sob o título «Unidade do ser vivo» somos informados que «sendo o princípio vital a forma substancial [da vida] só pode existir um destes princípios animando o ser vivo».

Facilmente chegamos à conclusão que o tal princípio vital ou alma não está presente no zigoto, que teria de apresentar dois princípios vitais para explicar a existência de gémeos homozigóticos!

Então se o tal princípio vital não está presente no zigoto em que fase do desenvolvimento se dará a tal animação que define a existência de vida humana? Segundo a Enciclopédia consultamos a grande autoridade sobre a vida, Aristóteles, que defendia a animação tardia, apenas ao fim de 40 dias para os embriões masculinos e 80 dias para os femininos. Uma vez que até pelo menos às 8 semanas, altura em que as gónadas (indiferenciadas) do embrião XY começam a produzir testosterona, todos os embriões são femininos, parece pacífico que não há animação dos embriões dos quais vamos referendar a despenalização do seu abortamento!

Fiquei ainda com uma dúvida: será que a declaração em 1869 por Pio IX, o autor do Syllabus, do «dogma» actual da animação imediata, que a alma incorpora aquando da concepção – despoletando legislação que criminalizava o aborto (inexistente até à data), vigente ainda hoje em países em vias de desenvolvimento ou nos redutos mais fundamentalistas do catolicismo – foi uma premonição da infalibilidade papal decretada um ano depois no concílio Vaticano I ou não passou de mais um amuo papal, uma vingançazinha do santo Pio em relação à modernidade, que ousadia infame, se estava nas tintas para os ditames do Vaticano e lhe «usurpou» o poder temporal sobre meia Itália?

Porque a dita proclamação é contrária à doutrina da Igreja, tal como expressa na Enciclopédia Católica! Fico sempre mistificada com as inúmeras contradições católicas! Devem ser os tais mistérios insondáveis da fé… Mas não deixa de ser divertido confirmar que as ululantes Tétés e afins são defensoras intransigentes não se sabe bem de quê… tirando as teses de Agostinho de Hipona!

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27 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Back to the future?


Michael J. Fox, que sofre da doença de Parkinson, gravou este vídeo em que apela ao voto nos candidatos às eleições de Novembro próximo que apoiem a investigação em células estaminais. Para além de Michael, outras celebridades, como Sheryl Crow, que sobreviveu a um cancro, dão a cara em apoio desta área de investigação.

Michael J. Fox, diagnosticado com Parkinson em 1991, fundou a Michael J. Fox Foundation for Parkinson’s Research, uma fundação devotada a financiar investigação sobre a doença que, como muitas outras doenças neurodegenerativas, é actualmente incurável.

A investigação em células estaminais totipotentes – as células estaminais adultas, multipotentes ou seja que apenas se podem diferenciar dentro da sua linhagem celular, são inúteis neste tipo de doença – é a maior esperança para uma futura cura para doentes de Parkinson e de muitas outras doenças, não apenas neurodegenerativas, actualmente incuráveis.

Os opositores da investigação em células estaminais totipotentes – não apenas as embrionárias mas todas as células adultas manipuladas para se tornarem totipotentes – são aqueles que se auto denominam pró-vida e ululam contra o inadmissível «assassínio» de «vida por nascer», já que, como afirmou monsenhor Elio Sgreccia, que preside à Academia Pontifícia para a Vida, uma célula totipotente, independentemente da forma como foi obtida, que pode evoluir para um ser humano totalmente desenvolvido, deve ser considerada, tal como um embrião ou um zigoto, um ser humano de plenos direitos.

De facto, são os fundamentalistas cristãos, com a Igreja de Roma a liderar as hostes ululantes de fanáticos, os únicos oponentes (muito vocais e bem organizados, aliás como nas campanhas contra o aborto) da investigação em células estaminais totipotentes, que as recentes sondagens indicam merecer o apoio da maioria dos americanos.

Recordo que o defensor intransigente da vida (não nascida, claro) G. W. Bush usou recentemente pela primeira vez o veto presidencial para rejeitar legislação aprovada no Congresso norte-americano que expandia as restritas leis que governam o financiamento da investigação em células estaminais embrionárias. Restrições impostas pelo próprio paladino de óvulos, espermatozóides e células totipotentes em 2001 e que limitam a investigação nesta área a 71 linhas de células. Assim, a investigação em células estaminais é um dos temas «quentes» nas próximas eleições que os analistas políticos prevêm resultar no fim da hegemonia republicana no Congresso.

Tão quente e eventualmente tão decisivo que Rush Limbaugh, um dos mais conhecidos homens da rádio americana, um conservador tão pró-vida não nascida que mimoseia as mulheres pró-escolha com o epíteto feminazis, afirmou no seu programa de rádio que Michael J. Fox estava a fingir os tremores e restantes sintomas da doença de forma a atrair as simpatias (e os votos) dos espectadores.

A evidente desonestidade intelectual do fundamentalista cristão, tão evidente que mesmo a CNN fez uma peça sobre o tema, foi violentamente denunciada pelos peritos em Parkinson. Limbaugh, num inédito na sua carreira de maledicência contra os «infiéis» democratas e seus apoiantes, pediu (meia)desculpa pelas mentiras óbvias que debitou.

Mas Limbaugh afirmou que «Michael J. Fox estava a permitir a exploração da sua doença» em favor dos democratas e da investigação «sacrílega» e imoral em células totipotentes. Claro que para o teocrata mostrar simplesmente os efeitos desta doença e apelar a que se permita a investigação mais promissora para uma cura é inadmissível. Mentir deliberadamente, usar imagens falsas e manipuladas de nados-mortos ou fetos do 3º trimestre abortados por razões médicas como sendo o resultado trivial de um aborto «pró-escolha» é perfeitamente legítimo…

Sobre o acérrimo defensor da vida não-nascida (apenas, como Keith Olberman mais uma vez denuncia magistralmente) uma das críticas mais divertidas à sua omnipresente hipocrisia foi feita por Robin Williams a propósito de um frasco de Viagra encontrado na bagagem de Limbaugh quando este regressava de um país conhecido como um paraíso do turismo sexual

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26 de Outubro, 2006 Palmira Silva

As coutadas dos machos das religiões do livro

«Quem não treme horrorizado ao ver na história tantos suplícios atrozes e inócuos, criados e empregados com frieza por monstros que se intitulam sábios?» «O legislador deve, consequentemente, estabelecer fronteiras ao rigor das penalidades, quando o suplício não se transforma senão em espectáculo e parece ordenado mais para demonstração de força do que para a punição do crime.» Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, Dos Delitos e das Penas (1764).

O controverso mufti da Austrália, Taj el-Din al-Hilali, disse num dos seus sermões que as mulheres que não usam um hijab são como «carne descoberta». Continuando «Se puserem carne destapada na rua e os gatos a comerem, de quem é a culpa, dos gatos ou da carne destapada?»

O sheikh Hilali condenou igualmente as mulheres que mexem as ancas de forma sugestiva ao andar e as que se maquilham subentendendo que estas mulheres estão a «pedir» serem violadas. O clérigo aparentemente considera que os violadores são inocentes do seu crime, o problema são os juízes – australianos neste caso particular mas os juízes ocidentais em geral – que não percebem que os verdadeiros culpados nestas histórias de violação são as provocadoras mulheres:

«Depois apanham um juíz sem misericórdia que lhes dá 65 anos [de pena]» ululou o clérigo numa alusão a um grupo de muçulmanos de origem libanesa que cometeram uma série de violações em grupo há seis anos em Sidney e foram condenados a longas penas de prisão.

A comissária para a discriminação sexual, Pru Goward, disse que o sermão do mufti pode ser considerado uma incitação ao crime, já que os «jovens muçulmanos que violem mulheres podem citar isto em tribunal, podem citar este homem, o seu dirigente espiritual no tribunal» afirmando ainda que o clérido egípcio deveria ser deportado.

As palavras do devoto clérigo muçulmano fizeram-me recordar o que se passava cá no burgo quando os valores cristãos (ou culturais como pretende o cardeal patriarca de Lisboa) permeavam o nosso Código Penal.

Para além de os «crimes de honra» serem perfeitamente legais, nomeadamente era considerado completamente apropriado que um marido assassinasse a mulher adúltera e o seu amante se apanhados em flagrante delito,nos anos 60 um tribunal português classificava o comportamento criminoso de um marido como «moderado poder de correcção doméstica» enquanto outro tribunal português, mais recentemente, «culpabilizava» duas jovens vitimas de violação -que estavam a «pedi-las» -, sublinhando que elas nunca deveriam andar vestidas de forma «indecente» numa região considerada «coutada do macho latino».

Estas situações mostram de facto que uma ética que não se consiga separar da religião ou de «os grandes valores da cultura de um povo» na realidade não passa de um conjunto de prescrições autoritárias que correspondem a uma perversão grave dos princípios que supostamente regem a nossa sociedade. Conjunto de prescrições autoritárias que, sem surpresa alguma, nas misóginas religiões do livro se dirigem especialmente às mulheres.

Algo que não nos podemos esquecer quando formos convidados às urnas para decidir da despenalização do aborto. Ou seja, se os que apelam ao «Não» de facto consideram o aborto um assassínio – e nesse caso não se percebe porque razão ululam que não querem ver mulheres «decentes» na prisão e porque não exigem uma mudança no quadro penal para fazer equivaler um aborto a um assassínio – ou se querem apenas sujeitar as «imorais» pecadoras a perigos consideráveis para a respectiva saúde e a humilhações na praça pública.

Durante o fim de semana retomarei o tema do estatuto ético e jurídico do embrião – porque é sobre o direito incondicional à vida de um embrião que vamos ser auscultados – e espero mostrar porque não são convincentes os argumentos do «Não», na sua esmagadora maioria contaminados com julgamentos de valor sobre os motivos das mulheres que abortam, distinguindo entre abortos «morais» – que não devem ser punidos – e abortos «imorais».

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22 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito e Ética

Nos posts anteriores vimos essencialmente o que o Direito Penal não deve ser e as razões históricas porque continua arreigada a convicção de que os pecados/crimes devem ser punidos nos países que não foram permeados pela laicidade e a influência da religião, nomeadamente da Igreja Católica, continua a minar o pensamento colectivo.

Como já referi, num estado laico todo e qualquer ramo do Direito deve ser livre de concepções religiosas ou morais, ou seja, a lei não deve proibir algo apenas porque considerado «imoral», mesmo que pela maioria da população. É moralmente errado o adultério mas apenas nas teocracias mais abomináveis os adúlteros são punidos pelo seu pecado (para além dos documentos constantes do link anterior pode assinar esta petição para tentar evitar que sete mulheres iranianas sejam apedrejadas até à morte pelo «crime» de adultério)!

Assim, a argumentação da Igreja e seus apaniguados contra a despenalização do aborto assenta em princípios que violam os axiomas subjacentes ao Direito num estado democrático e laico! Apenas numa teocracia a lei transcreve os «valores da cultura de um povo», eufemismo que Policarpo utiliza para sustentar que os preconceitos religiosos devem contaminar o Direito Penal nacional.

Já desde o século XIX que se aceita o preconizado por John Stuart Mill segundo o qual a lei não deve criminalizar práticas que não prejudiquem terceiros. Assim, devem ser revogadas leis que criem «crimes sem vítimas», na sua maioria leis assentes em morais religiosas que criminalizam ou proibem pecados como a homossexualidade, o aborto, o divórcio, o adultério, a fornicação, etc..

Manter leis que criam «crimes sem vítimas» é uma forma inadmíssivel em democracia de obrigar todos a conformarem-se aos padrões morais de alguns, é impor via direito as convicções religiosas desses alguns, mesmo que em maioria. Assim, mesmo quem considera o aborto «imoral» mas considera que não é equivalente a um homicídio deve votar sim no referendo de despenalização. Caso contrário estará a impor a sua moral pessoal a toda a população mantendo um crime sem vítimas. Ou seja, está a violar todos os princípios em que assenta a nossa civilização!

Porque de facto o que está em jogo no referendo ao aborto não é nem a moralidade do mesmo ou, como pretendem os mais falaciosos que já começaram a sua tarefa «divina» de envenenamento da opinião pública, saber se os nossos impostos devem pagar os abortos alheios – o que, considerando os tempos de espera no nosso sistema de saúde pública e o prazo de dez semanas a referendar, não parece muito plausível.

O que está em jogo é decidir se têm direito incondicional à vida um zigoto e um embrião. Ou seja, se devemos conferir o estatuto jurídico de pessoa a um zigoto, embrião e, como a argumentação é exactamente a mesma, a «humanidade» igualada a um genoma, a uma célula estaminal totipotente.

Essa decisão dever-se-ia assim simplesmente basear no estatuto ético do embrião, isto é, se os cidadãos consideram que um embrião deve ter o mesmo estatuto de uma pessoa e consequentemente abortar é equivalente a assassinar alguém.

Em Portugal os debates sob o tema com que fomos mimoseados no passado são lições deploráveis sobre o que não deve ser um debate, com argumentos falaciosos de ambos os lados que nunca abordam o tema em que deveria assentar a discussão. É igualmente deplorável que sejam convidados para os debates não quem de direito, bioéticos e filósofos especializados em ética, mas, para além de políticos, exactamente quem nunca deveria ter assento – se de facto Portugal fosse um estado de direito, democrático e laico – num debate sobre o tema: representantes da Igreja Católica, tanto leigos como assalariados!
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21 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito II

A Renascença e o humanismo renascentista propiciaram a contestação do governo por direito divino e da barbárie que passava por Direito Penal. Machiavelli (final século XV princípio século XVI), o pioneiro na contestação do direito divino e o primeiro a propôr a separação igreja-estado, introduziu uma nova concepção de Política, separando o pensamento racional político da religião e o direito da moral religiosa.

Filósofos políticos como Mandeville, Voltaire, John Locke, Thomas Hobbes, Hume, Diderot, Helvetius ou Montesquieu continuaram a questionar a hegemonia da Igreja Católica na esfera política e jurídica e inspiraram Cesare Bonesana Marchese di Beccaria (1738-1794), um dos pais do utilitarismo moderno, a escrever o clássico Dei deliti e delle pene, onde pregava a certeza da punição como tendo maior eficiência que a gravidade dos castigos. Cesare foi acusado de heresia pela publicação deste livro e viu-se obrigado a dar um testemunho público dos seus princípios religiosos. O receio de novas perseguições levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.

De facto, o tratado «Dos Delitos e das Penas», a filosofia francesa aplicada à legislação penal, era certamente «herege» para a época, já que estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana, entre os pecados e os delitos; condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social; declara inútil a pena de morte e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a separação do poder judiciário e do poder legislativo. O seu sucesso foi imediato, sobretudo entre os filósofos franceses, e é o precursor do nosso direito de ultima ratio cuja finalidade primordial é a prevenção (e não a punição como muitos pensam).

Mas a influência nefasta da Igreja católica permaneceu (e permanece nalguns países) no Direito ocidental e a confusão entre crime e pecado e a ideia de que este deve ser punido de forma violenta para que o criminoso chegue ao arrependimento após sofrer torturas e isolamento persiste ainda.

Num país que já saiu há mais de 30 anos de uma ditadura em que, contrariamente ao que pretende a RTP na sua biografia de Salazar, não existia separação entre o Estado e da Igreja e em que o direito transcrevia a «moral» católica, sendo criminalizados os «pecados», seria de esperar que esta confusão entre crime e pecado e convicção de que o «pecador» deve pagar pelos seus pecados/crimes fossem algo do passado.

Mas as aberrantes declarações debitadas aquando da recente abertura oficial da nova (e anacrónica numa democracia) licenciatura de Direito Canónico da Universidade Católica Portuguesa mostram que os fundamentalistas católicos não foram permeados pela modernidade e acham-se no direito de subordinar toda a sociedade à ditadura do Vaticano.

Como já disse, democracia não é equivalente a ditadura da maioria, democracia pressupõe um estado de Direito, pluralismo, tolerância e respeito dos direitos de todos. É lamentável que o Cardeal Patriarca de Lisboa tenha tentado perverter o estado de Direito afirmando que as «leis devem respeitar os grandes valores da cultura de um povo». E que o reitor da Universidade Católica, Braga da Cruz, tenha confundido teocracia com democracia ao declarar que «No caso do aborto, mas também em toda a legislação atinente ao matrimónio e à sexualidade, é importante que a legislação respeite os valores da grande maioria da população portuguesa».

Qualquer taliban estaria plenamente de acordo com ambos!

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21 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: Direito

Teodoro di Tarso, autor do Poenitentiale Theodori, fresco em Sant’Abbaciro, Roma. Recomendo a leitura (em latim) do capítulo II, que dá pelo título De Fornicatione.

O Direito Penal é, muito provavelmente, a especialidade do Direito mais conhecida de toda a população já que é ele que dá conta dos crimes e das penas a serem aplicadas. É hoje em dia considerado como um Direito Público, ou seja, diz respeito a toda a comunidade e não a pessoas isoladamente.

Na Europa dos governantes por direito divino o apogeu e queda da hegemonia da Igreja Católica pode ser acompanhada na evolução do Direito Penal que foi durante séculos apenas o castigo imposto a quem violava a «lei divina», um castigo retributivo, «ao mal do crime, o mal da pena».

De facto, a Igreja considerava a pena como uma penitência para a remissão dos pecados, a um pecado mais grave correspondia uma penitência maior. Aliás, daí o termo ainda hoje alternativo a prisão, penitenciária, que designava os locais de reclusão para onde eram enviados os que transgrediam as «leis divinas» e não tinham posses para remir a penitência com indulgências.

A diferença entre estas penitenciárias e conventos e mosteiros era inexistente para muitos dos internados nestas instituições, a principal diferença residindo no facto de que nas penitenciárias os reclusos penitenciavam-se durante uma estadia temporária, cuja duração era determinada pela gravidade do pecado.

Erving Goffman, no seu livro de 1987 «Manicómios, Prisões e Conventos» analisa o que denomina de Instituições Totais e trata das características de cada uma dessas Instituições e dos internos que delas fazem parte. É interessante notar nesta obra as semelhanças encontradas pelo autor entre estas Instituições e sob que justificativas foram criadas e mantidas.

Nem todos os pecados podiam ser passíveis de remissão e assim eram previstas penas de morte para os pecados imperdoáveis, como a heresia. As execuções eram conduzidas na praça pública, utilizando a fogueira, forca, guilhotina e outros instrumentos, em que aqueles que hoje se arvoram em defensores intransigentes da vida e cruzados contra o «relativismo» – que não aceita as «verdades eternas e absolutas» de que a Igreja é detentora – transformavam a morte de hereges em espectáculos populares.

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(continua)