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26 de Dezembro, 2005 pfontela

Sensibilidade estética e curiosidade

Pessoalmente considero a fé religiosa monoteísta tal como ela é estruturada pelas grandes religiões actuais como uma completa charlatanice, propagada e mantida por um grupo de interesse: o clero. Mais ainda: enojam-me profundamente os actos de humilhação individual perante o «divino» que todos os anos somos testemunhas, seja pelas procissões ou outros eventos mais ou menos regulares.

A religião do livro que é dominante no Ocidente, o Cristianismo, sofre do que eu considero ser a patologia da fraqueza. Da virtude por associação à dor, ao sofrimento e à negação. A concepção do Homem como inferior parece ser intrínseca a ela, a sua concepção de deus só me parece possível rebaixando o Homem ou a um escravo ou a um ser que é perfeitamente patético e indigno seja do que for.

Apesar de tudo isto não me é possível negar ao crente o direito de se tornar na criatura patética dos seus sonhos (pesadelos?). O facto de respeitar a sua liberdade individual não torna as suas concepções alienígenas mais próximas da minha estética, nem por um segundo. O que sim me força é a rejeitar o papel de educador, de pedagogo e acima de tudo o de salvador (com tons totalitários como é regra). Deixemos o messianismo para outros.

A conclusão lógica de tudo isto é, ou deve ser, a não interferência. Que muito possivelmente, nos casos de maior curiosidade intelectual, é complementada por uma tolerância derivada da partilha de opiniões e elementos «culturais» – digo isto sem ironia alguma, pois apesar de ser um ateu empedernido, materialista e empirista tenho grande interesse e curiosidade pelos mitos e ideias que circulam, ou circularam, pela «oposição».

O que torna este diálogo impossível (que é essencialmente de natureza intelectual e de escasso interesse para muitos) é o fanatismo. Qualquer posição que defende a existência de um imperativo moral que justifique a acção opressiva não pode aceitar qualquer diálogo, pois a própria existência de uma oposição fere a sua sensibilidade e o seu suposto primado sobre a verdade. A religião exerce por excelência (mas não exclusivamente) esse papel pelas suas organizações que se encontram mais ou menos institucionalizadas conforme o grau de secularização – que é um pré-requisito de uma genuína liberdade civil.

A convivência pacífica não é ameaçada pela diversidade, desde que esta diversidade seja subentendida num contexto da existência de um espaço completamente privado, onde existe liberdade para agir como bem entendemos, e um espaço público que por natureza tem que ser neutro. E o que digo vale tanto para ateus como para teístas.

1 de Dezembro, 2005 pfontela

Bom senso europeu

A União Europeia emitiu um comunicado onde desautorizou completamente toda a política americana de prevenção à SIDA. Pela primeira vez a Europa afirma com todas as letras que os programas de abstinência promovidos pela administração de Bush não são eficazes e que devem ser rejeitados pelas nações que desejam proteger os seus cidadãos.

Neste momento a União Europeia considera como prioridades o uso do preservativo (absolutamente fulcral), educação sexual e cuidados de saúde reprodutiva. Considera-se ainda como extremamente preocupante a ressurgência de mensagens enganadoras e sem validade empírica no que toca à prevenção do VIH. Uma óbvia referência aos programas americanos. Convém referir que dois terços da ajuda americana neste campo são usados exclusivamente para a promoção da abstinência. Trata-se acima de tudo da promoção de um modelo religioso sobre a capa de ajuda humanitária.

Vale a pena citar as palavras da secretária europeia para o desenvolvimento internacional, Hillary Benn :

«… não acredito que as pessoas devam morrer porque têm sexo.»

E tudo vai bater nesse ponto, neste momento a política humanitária americana está a ser comandada por um dogma religioso (é a própria ONU a afirmá-lo) e está a causar estragos incríveis nas zonas mais afectadas pela doença ao cortar os fundos para os meios eficazes (leia-se – preservativo).

Felizmente que e União Europeia se dissociou claramente do programa de evangelização norte americano, que haja pelo menos uma voz forte e sensata na comunidade internacional.

15 de Novembro, 2005 pfontela

Da decadência

O DN já há algum tempo que nos vem habituando às pérolas desse verdadeiro profeta da anti-modernidade que é JCN, mas há pouco tempo tivemos a oportunidade de conhecer outro dos profetas (menores) da ICAR: Monsehor Luís Delgado.

Diz-nos Luís Delgado que até para os ateus a manifestação de fé que se deu em Lisboa no sábado foi impressionante, e realmente tem razao. Foi impressionante ver tanta gente movida pelo irracional e pelo cego. Pessoas que sem pensar no que fazem dão o seu apoio à hierarquia de Roma e âs suas acções e conspirações.

Fala-nos quase como se estivessemos a presenciar o renascimento católico da nação, com pessoas de todas as idades nas ruas a dar mostras de fé. É a conversão dos ímpios á veradeira fé, pelo tom do nosso profeta de serviço parece que o reino do senhor neste mundo deve estar para breve. A julgar pelo exemplo de Timor Leste deverá, provavelmente, ser acompanhado da institucionalização do catolicismo e todos os seus previlégios, reclamando como direito fundamental da liberdade religiosa a opressão dos demais.

Segue-se o que eu chamaria o momento da apoteose da retórica:

“Foi inédito, grandioso, elevado e regenerador, particularmente num momento do País e dos portugue-ses em que nada dá esperança, em que o futuro é uma incógni-ta e em que as dificuldades se avolumam”

Isto é religião no seu sentido popular mais puro, um narcótico contra as dores do mundo, algo que negue a realidade. A ilusão que apesar de se saber falsa permanece por falta de alternativa ou coragem. Ao querer elevar a sua fé (sim porque também afirma que a dele é especial) Luís Delgado mostra-nos o seu lado mais miserável e aproveitador.

O texto termina com esta frase seguida de mais umas quantos desejos relativos à perenidade da ICAR:

“Calem-se, por um momento, os que achavam o contrário, e que no seu pessimismo agnóstico e militante tentavam reduzir a Igreja a um bastião ultrapassado e sem futuro..”

Trata-se de puro delírio de quem sente a rédeas do presente a escaparem-lhe. O indivíduo torna-se autónomo em todas as esferas e a governaçao por decreto “divino” transforma-se em algo impraticável.

A decadência do catolicismo nao é de hoje nem pode ser negada por profetas amadores como Luís Delgado ou César das Neves. Só parecem existir dois cenários: a irrelevância e impotência pública ou a fragmentação. Estas são as verdadeiras e inevitáveis escolhas do catolicismo.

15 de Setembro, 2005 pfontela

O problema do mal

O problema do mal é talvez um dos maiores obstáculos a qualquer crença razoável num deus omnipotente e bom. Para o efeito deste artigo não é necessário definir o «mal» enquanto conceito, vamos assumir apenas os pontos em que todos podemos concordar: desastres (sejam de origem natural ou humana), injustiças (como a discriminação sem causa) entre outras coisas são algo que todos nós dispensávamos. Para o ateu trata-se de simples factos da vida aos quais ele reage de acordo com a filosofia que escolhe para guiar a sua vida. Para o teísta típico a situação aqui torna-se muito complicada.

Claro que ao longo de milénios muitas organizações religiosas tentaram arranjar justificações para tais «acidentes» mas realmente nenhuma das desculpas pegou. As religiões do livro ao abandonarem as perspectivas teleológicas pré-clássicas e clássicas (quer se trate do caso babilónico em que todos os males são vistos como insatisfação divina – sendo que a morte era apenas um prolongamento da vida, incluindo o sofrimento – ou do caso grego em que se remete o mal para o acaso, o destino e os caprichos da natureza divina e humana – a morte neste caso é uniforme sendo que a todos espera o negrume do Hades onde se encontrarão num eterno estado de espera num mundo de sombras e cinza onde não se sofre mas onde também não se existe prazer) criaram uma impossibilidade lógica – o deus que é bom mas deixa sofrer as criaturas que supostamente ama.

Muito sofisma e retórica têm sido tecidos pelo clero à volta desta questão. De facto ela encontra-se tão mal explicada intelectualmente que regra geral remete os crentes para explicações simplistas mas obviamente insuficientes (os desígnios misteriosos do senhor, o evento em questão faz parte de um plano cósmico mais vasto – a tentativa clara, e frustrada acrescente-se, de dar sentido à morte ou ao sofrimento). As palavras do enigma de Epicuro continuam tão válidas como no dia em que fora escritas:

Deus quer acabar com o mal mas não é capaz?
Então não é omnipotente
É capaz mas não o quer fazer?
Então é malévolo
É capaz e quer fazê-lo?
Então de onde surge o mal?
Não é capaz nem quer fazê-lo?
Então porquê chamar-lhe Deus?

O cristianismo explica o mal através de duas ideias falsas mas que à primeira vista parecem resolver o enigma. Primeiro advogam a suposta queda do Homem de um estado de graça devido ao pecado original. Não é universal entre os crentes (aqueles que conhecem a sua religião – uma minoria com toda a certeza) o que é que esse pecado original realmente envolveria. Existe a versão da usurpação por parte do homem do conhecimento que só a Deus pertence enquanto outros falam de um afastamento do divino (com claros laivos de anti-laicidade à mistura). E em segundo lugar criaram a figura do livre arbítrio em que a vontade própria da criatura é a fonte do mal.

Nenhuma destas tentativas de «racionalização» da questão resolvem o problema. A omnipotência e Omnisciência excluem qualquer hipótese de erro divino, se o Homem falha é porque Deus assim o quis. A liberdade humana por essa perspectiva nada mais é que uma ilusão, a carne é fraca e o Homem está destinado a falhar e cair nas condenações infernais sádicas que povoam as realidades e os infernos dos monoteísmos violentos (o sadismo presente nessas visões resulta da sublimação de desejos reprimidos por um código (i)moral opressivo, e como tal é bastante frequente que as visões artísticas e populares do inferno ao longo do tempo reflictam esses impulsos que anseiam por ser satisfeitos e aproveitam todas as oportunidades para se manifestarem – a isso junta-se é claro o desejo de ver todos os que não se auto-flagelam como «os escolhidos de Deus» serem castigados pela felicidade e prazer que gozam).

Até aos dias de hoje o problema do mal é o mais flagrante exemplo de impossibilidade do deus do bem, aquele que é pessoal e guia o crente, o deus dos incautos. O problema em si mesmo não tem solução. Para negar a constatação que daqui resulta: «não há justiça» o crente refugia-se na crença no deus que tem que existir porque ele quer, porque precisa de um sentido exterior (devido à sua incapacidade de projecção directa da sua vontade pessoal). Para muitos crentes deus existe porque deveria existir. O argumento, por razões óbvias, não tem muitos adeptos nos círculos mais sérios.

O crente tenta vender ao ateu o seu maravilhoso mundo encantado em que a ilusão se sobrepõe à realidade, realidade essa que, em termos de atracção, jamais poderá competir com as fantasias que o Homem constrói. Cabe a cada um decidir se prefere permanecer lógico e sério ou se quer deixar-se intoxicar pelo ópio da irracionalidade. A realidade é sempre preferível a qualquer sonho por muito agradável que seja.

28 de Agosto, 2005 pfontela

Filhos e enteados

Quando se deram os trágicos atentados em Londres eu estava lá a viver e pude testemunhar e participar na recusa em deixar o terror dominar a civilização e sinto orgulho por ter feito parte desse momento. Independentemente da reacção do cidadão comum surgiram logo pessoas que perceberam que deixar os terroristas colocar propagandistas no coração do nosso mundo não é grande ideia e Tony Blair afirmou mesmo que «as regras do jogo mudaram».

As propostas em termos de mudanças de lei devem ser sempre encaradas com muito cuidado para não se cair no erro de injustiças baseadas em generalizações ou isolar e alienar ainda mais os grupos afectados. Mas o que parece ser senso comum é que não podemos continuar a permitir que os pregadores de ódio espalhem o seu veneno impunemente. Existe um limite à liberdade de expressão e esse limite é claramente ultrapassado quando se apela à violência contra terceiros (a derradeira violação da liberdade individual).

Mas existe entre os países ocidentais uma estranha dualidade de critérios quanto à definição de terrorismo e tudo o que lhe é associado. Se é verdade que os imãs muçulmanos anti-ocidentais foram banidos e se persistirem no seu crime correm o risco de ser presos e acusados de traição (ou extraditados imediatamente) a verdade é que nada se fez em relação aos seus equivalentes cristãos (Phelps, Robertson …).

Será que por mudar o nome do livro que seguem isso lhes confere impunidade para fazer o que quiserem? Que critérios são esses que são tão rigorosos para uns e tão escandalosamente permissivos para outros? O que torna o ódio de um fanático cristão diferente do seu equivalente muçulmano?

Seja qual for o tipo de fanatismo ou ideologia que promova o ódio ele deve ser parado sem dar qualquer valor à sua origem ou aos seus seguidores. Só assim se pode impedir que situações horrendas como o terrorismo, a teocracia ou qualquer tipo de totalitarismo se tornem realidade.

23 de Agosto, 2005 pfontela

Os mercenários de deus

Os tempos mudam mas há atitudes que permanecem congeladas no tempo. Se no passado a conversão se fazia pela espada, com o apoio dos exércitos coloniais e do poder central, hoje as sensibilidades modernas não permitem (em geral) um uso tão flagrante da força. Em resposta a estas mudanças os pregadores também mudaram de tácticas.

Hoje em dia não se mandam missionários acompanhados por um destacamento militar para ajudar “os selvagens”. Hoje constroem-se equipas de apoio “humanitário” e parte-se para uma qualquer zona problemática do globo. Não importa se é um tsunami ou um terramoto, o fundamental é que haja desespero. Uma vez aí chegados aproveita-se da fragilidade das pessoas que perderam bens materiais, família e amigos e prega-se a divindade de Jesus, a Santíssima trindade e tudo o resto que é essencial para alguém que só quer reconstruir a sua vida em paz. Como abutres que são estes missionários seguem o rasto de morte e miséria e espalham a glória de deus.

Alguns destes servos do senhor, são tão zelosos do seu dever que não contentes com a completa falta de ética descrita atrás recorrem a meios ainda mais directos: a chantagem. Sem conversão não há apoio para ninguém.

A falta de conduta ética de certas organizações religiosas, regra geral cristãs, é chocante. O seu uso da catástrofe para promover o avanço da sua fé no exterior é algo de grotesco (quase tão aberrante como o uso que fazem da miséria material e indigência intelectual para se promoverem nos seus países de origem). A coberto da ajuda internacional humanitária movem um sinistro movimento de evangelização. O serviço a deus por vezes fala mais alto que qualquer valor ético.

20 de Agosto, 2005 pfontela

O futuro do Iraque

A imagem que começa a emergir das ruínas do Iraque começa a tornar-se mais clara a cada dia que passa. O documento legal central Iraquiano (a Constituição) vai quase de certeza ser de natureza religiosa. A teocracia está em vias de ser instaurada em tudo menos em nome.

O grande partido xiita exige como condição para a aprovação da nova constituição que se reconheça a lei islâmica como única fonte válida de legislação. As forças mais ou menos seculares e o bloco curdo opõem-se a tal medida mas, a verdade é que possivelmente não terão força suficiente para a bloquear.

Como se esta situação não fosse problemática quanto baste o líder do partido do Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque exige que o centro e sul da nação sejam reconhecidos enquanto regiões autónomas (dando poder completo aos fanáticos xiitas que as controlam) – regiões essas com vastas reservas petrolíferas. Desta forma mesmo que o seu assalto ao poder central falhasse os clérigos xiitas continuariam a ter uma base de poder enorme. Como uma cereja no topo do bolo encontra-se a última (por enquanto) reivindicação dos xiitas: Al-Najaf e karbala (duas cidades consideradas como santas – e que geram um considerável fluxo económico) teriam de possuir estatutos de independência – criando assim estados teoricamente semelhantes ao Vaticano mas que na prática se encontrariam nas mãos dos clérigos.

Mesmo os mais fanáticos sabem que não vão conseguir alcançar todos os objectivos a que se propõem, mas sabem também que muitas destas exigências podem ser usadas como moeda de troca quando for altura de negociar a constituição. A julgar pelas acções que estes grandes partidos xiitas estão a ter nas regiões que controlam plenamente o resultado da sua ampliação de poderes (a nível nacional ou regional) só pode ser má noticia.

Neste clima todos os interessados e analistas indicam que seja qual for a disposição final dos detalhes entre xiitas, sunitas e curdos o estado Iraquiano vai sem dúvida possuir uma forte influência legal do islão. O sonho de um Iraque onde a liberdade (e não só a estabilidade repressiva) existe e é para todos não passa de uma memória algo distante.

18 de Agosto, 2005 pfontela

Os (ab)usos da imunidade

Relativamente ao caso dos escândalos de pedofilia relacionados com membros da ICAR nos Estados Unidos parece ter havido um novo desenvolvimento que no mínimo torna ainda mais evidentes as hipocrisias e psicoses que regem as cúpulas católicas.

Daniel Shea (o advogado de 3 rapazes que acusam o então seminarista Juan Carlos Patino-Arango de ter abusado deles durante sessões de aconselhamento), que já tinha movido um processo em que o nome de Ratzinger (Bento XVI) aparece como réu por ter encoberto os abusos, ameaça contestar em tribunal a imunidade do papa enquanto chefe de Estado.

Os advogados de Ratzinger já estão em movimento e pediram ao presidente Bush que reconhecesse a imunidade do papa enquanto chefe de Estado.O Sr. Shea tenciona apresentar argumentos em tribunal que permitam revogar esse privilégio. A tese central para tal medida é lógica e de senso comum: o Vaticano (Santa Sé) não é um Estado mas sim a sede de uma religião.

O documento que implica Ratzinger no escândalo (que longe de estar restrito aos Estados Unidos já chegou ao Reino Unido e Irlanda e provavelmente estende-se por toda a Europa) é um carta dirigida aos bispos de todo o mundo onde o antigo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé afirma que os graves crimes, como o abuso de menores, seriam tratados pela sua congregação através de tribunais especiais onde os casos estariam sujeitos a segredo pontifício.

Parece tratar-se de um encobrimento em larga escala que implica as mais altas patentes da hierarquia católica. Uma verdadeira conspiração de silêncio. Sobre a qual os advogados e outros representantes do actual papa continuam silenciosos como um túmulo (túmulo esse que pelos vistos enterra a pouca credibilidade que restava à organização).

Apesar de ter um bom caso a verdade é que não é provável que os argumentos do Sr. Shea tenham qualquer efeito. O seu pedido de revogação da imunidade papal vai ser ignorado por questões políticas e Ratzinger nunca vai ter que responder pela parte que desempenhou nestes crimes. Mas apesar de tudo fica a imagem, para todos verem, de uma hierarquia que mais parece uma confraria do crime do que do amor.

22 de Junho, 2005 pfontela

Perseguições e mitos III

Continuo os dois artigos antecedentes, onde expus os mitos que predominavam na sociedade romana imperial sobre o cristianismo, sendo que alguns deles já foram analisados e desmontados. Espero com este artigo dar conclusão à série.

O último artigo não chegou a analisar as acusações de orgias incestuosas e como tal vamos começar por aí.

A explicação habitual para estes rumores é que os pagãos faziam confusão entre seita cristã e certos movimentos gnósticos. Mas as provas disso não são muito sólidas. Irenaeus, escrevendo depois do massacre de Lyons, afirma que os cristãos foram confundidos com os carpocratianos(1), que eram uma seita gnóstica que supostamente não reconheceria os conceitos de bem e mal e como tal seriam promíscuos. No entanto foi Clemente de Alexandria, em cerca de 200 DC, que primeiro associou o rumor de orgias ao movimentos dos carpocratianos(2). Eusébius, dois séculos mais tarde, repete exactamente os mesmo rumores citando exactamente as mesmas fontes. Independentemente da veracidade dos rumores à volta dos carpocratianos as acusações omnipresentes de orgias incestuosas que eram lançadas aos cristãos não podem ser explicadas de forma credível por uma confusão com uma qualquer seita obscura.

A explicação mais provável é novamente uma mistura de dois elementos: a realidade de um ritual religioso cristão misturado com um estereótipo já existente. O ritual em questão era a ágape, o festim do amor. Durante os dois primeiros séculos de cristianismo era prática comum um cidadão privado convidar cristãos baptizados para uma refeição comunal. A refeição era suposto ser uma celebração de fraternidade cristã e incluía a celebração da eucaristia. A orgia imaginária descrita por Minucius Felix era precisamente a caricatura deste ritual. A verdade é que a celebração da ágape era muitas vezes motivo para comer e beber em excesso (todo o processo era catalisado por visões da segunda vinda de Cristo que, como sempre, para os cristãos primitivos era algo que estaria para muito breve) mas não para ritos orgiásticos. Esses fazem parte do segundo elemento da explicação: o mito pagão da bacanália. Supostamente a bacanália seria um ritual religioso que foi importado da Grécia para a Etrúria e depois levado para Roma e aí o culto teria crescido em dimensão até incluir orgias nocturnas em larga escala. Em 186 AC o Senado chegou mesmo a aprovar legislação a proibir a bacanália. Veja-se o que Tito Livio diz sobre o tema:

«Existiam ritos iniciáticos…Ao elemento religioso foram adicionados os prazeres do vinho e do festim para que maior número de mentes pudesse ser atraído. Quando o vinho já tinha inflamado as suas mentes e a noite e a mistura entre machos e fêmeas, novos e velhos já tinha destruído qualquer sentimento de modéstia todos os tipos de corrupção começaram a ser praticados, já que cada um tinha ao seu dispor o prazer para o qual a sua natureza mais se inclinava… Se algum deles não estava inclinado para ser abusado ou se mostrava relutante em cometer um crime ele era sacrificado como uma vitima. Considerar que não existe mal… era a mais alta forma de devoção religiosa que existia entre eles.»(3)

Mas a bacanália não foi condenada apenas como uma orgia com traços homicidas. O cônsul romano encarregue de esclarecer o povo afirma ainda o seguinte:

«Eles ainda não revelaram todos os crimes dos quais foram parte…o mal cresce diariamente e expande-se para o exterior. Neste momento ele já é demasiado grande para poder ser considerado como um assunto puramente privado: o seu objectivo é o controlo do estado…Agora como indivíduos eles têm medo vós, reunidos aqui nesta assembleia: quando voltarem para as vossas casas e quintas eles irão reunir-se e vão tomar medidas que serão simultaneamente para a sua própria protecção e para a vossa destruição: e aí vocês, como indivíduos, terão que os temer enquanto grupo… nada é mais enganador em aparência do que uma falsa religião.»(4)

Em resumo: os participantes da bacanália eram considerados como conspiradores políticos e como tal o Senado tomou acção rápida e brutal para suprimir a bacanália. Independentemente da sua supressão o que isto prova é que ao assimilarem a ágape à bacanália os romanos pagãos estavam mais uma vez a considerar os cristãos como conspiradores sedentos de poder (sendo em tudo semelhantes às acusações de canibalismo).

Todas as acusações que vimos até agora (orgias incestuosas, canibalismo, infanticídio ritual e regular) apontam numa mesma direcção: desumanizar os cristãos até eles se transformarem na incarnação de tudo o que era considerado pelos romanos como anti-humano.

A explicação para tudo isto está na absoluta incompatibilidade do cristianismo primitivo com a religião de estado romana. Para os romanos a religião não era uma questão de devoção pessoal mas antes uma espécie de culto nacional em que os deuses eram os protectores de Roma e os detentores dos altos cargos da nação sempre foram identificados com os deuses. Com o advento do Império e a deificação do Imperador (em parte derivada da tradição romana de poder e em parte da tradição grega de monarcas divinizados) as diferenças tornaram-se ainda mais óbvias. O culto Imperial unia o mundo romano, o aniversário do imperador era um feriado nacional e os deuses nacionais transformaram-se na garantia da eternidade do Império. Ao negarem violentamente todo este passado e estas ligações os cristãos tornaram-se impopulares, isolados, temidos e odiados. Eles efectivamente não faziam parte do mundo greco-romano.

Eventualmente com a conversão de membros da aristocracia Imperial e de um grande número de plebeus o cristianismo ganhou aceitação no mundo. Tornou-se impossível acusar os grandes senhores e senhoras de conspiração contra o estado devido à sua conversão ao cristianismo. Ao mesmo tempo que o número de conversões aumentava exponencialmente a Igreja ganhava poder, os bispos tornaram-se jogadores na arena da política Imperial e não estando contentes com isso acabaram por levar a cabo a solução final para o paganismo: a erradicação.

A história da perseguição do cristianismo primitivo foi o prelúdio para o que se seguiu em séculos posteriores. Os mitos que alimentaram as perseguições aos pais da Igreja mutaram e foram usados como munição contra outros. A partir do momento que a Europa é cristianizada (com a excepção do norte e leste da Europa que permaneceram ferozmente pagãos até muito tarde) e o poder da Igreja começa a aumentar as acusações de heresia tornam-se comuns, nasce a figura sinistra da Inquisição, os templários são destruídos sob acusação de manterem pactos demoníacos e praticarem sodomia e, por fim, todo este mundo de mitos, medo e política culmina na insana cruzada contra as bruxas nos séculos XVI e XVII.

(1)- Irenaeus, Adversus Haereses, lib. I, cap. XXV
(2)- Clemente de Alexandria, Stromateis, lib. III, cap.II
(3)- Livio, Ab urbe condita, lib. XXXIX, cap. VIII
(4)- Livio, Ab urbe condita, lib. XXXIX, cap. XVI

17 de Maio, 2005 pfontela

Perseguições e mitos II

No último artigo espero ter conseguido deixar uma imagem clara das ideias que circulavam sobre o cristianismo na altura em que Império Romano ainda era pagão. Agora é a altura de analisar um pouco mais detalhadamente os mitos.

Comecemos pela cabeça de burro, que os cristãos era suposto adorarem. Este mito não foi inicialmente aplicado aos cristãos mas sim aos judeus de Alexandria. A comunidade grega e a comunidade judaica viviam lado a lado num estado de permanente tensão, se não mesmo conflito, e parece que este rumor começou algures no séc. I d.c. e a sua origem parece residir numa mera coincidência de linguagem, já que a palavra Jeová se assemelhava à palavra burro em egípcio (1). Pode à primeira vista parecer um elemento insignificante ou puramente decorativo na descrição do culto judaico mas não o é. O burro era, no mundo antigo, um dos animais mais desprezados que existiam e o facto de se identificar uma religião com este animal tinha a intenção de envergonhar os judeus e de os expor ao ridículo. O mito foi desenvolvido, de forma original, por Apion (2) (membro da comunidade grega de Alexandria e um anti-semita rábido), e segundo as várias “provas” por ele expostas um grego, de nome Zabidos, teria entrado disfarçado no templo para roubar a cabeça de burro. Esta invenção de Apion teve um efeito além do esperado já que ao longo dos séculos variantes da sua história foram repetidas inúmeras vezes, tornando-se progressivamente mais violentas (em algumas versões tardias o grego teria sido morto por descobrir o terrível segredo). A associação deste mito judaico ao cristianismo era um passo inevitável já que o cristianismo sempre foi considerado pelos romanos como uma forma de judaísmo, apresentando muitas das mesmas características que alienavam a cultura clássica (a crença num deus omnipresente e omnipotente que no entanto era invisível era algo que os romanos simplesmente não concebiam). Existe no entanto um aspecto curioso, este mito enquanto foi aplicado exclusivamente aos judeus teve uma área de influência sempre limitada à zona de Alexandria mas quando passou a abranger os cristãos espalhou-se rapidamente por todo o império.

Estando a origem da cabeça do burro explicada podemos passar às acusações de assassinato ritual e canibalismo. Os cristãos também não foram o primeiro grupo a ser acusado deste tipo de crimes, aliás para perceber o porquê da acusação convém olhar para os outros grupos acusados. A primeira vez que se encontra esta acusação na cultura romana ela está misturada com o mito da fundação da república. Conta-nos Plutarco que quando Tarquínio, o último rei de Roma, foi deposto os seus seguidores juraram que tudo fariam para assegurar uma restauração. E com esse fim em mente todos prestaram um estranho e terrível juramento em que o sangue de um homem assassinado terá sido derramado (em vez de prestarem a libação com vinho como era tradição) e as suas entranhas teriam sido tocadas por todos (3). Se este exemplo marcou o início da república é irónico que o outro exemplo mais emblemático marque os seus últimos anos. Na época da famosa conspiração de Catilina corria a lenda que o próprio catilina teria passado a cada um dos seus conspiradores um cálice com uma mistura de vinho e sangue e cada um ao beber teria proferido uma maldição, e este acto tê-los-ia vinculado a todos à conspiração(4). Alguns séculos mais tarde a lenda já tinha sofrido adições de outros elementos; Catilina e o seu grupo de conspiradores teriam assassinado um rapaz e devorado em conjunto as suas entranhas como parte de um ritual (5). Nenhuma destas acusações tem qualquer base real já que se tal fosse o caso Cícero, o maior opositor de Catilina no Senado, teria escrito algo a esse respeito.

Apesar de ser verdade que cultos que sacrificavam e devoravam seres humanos não são inéditos no mundo antigo (existia, por exemplo, o culto de Dionísio na Trácia em que é possível que crianças fossem devoradas como representantes do deus) as histórias que vimos até agora apontam noutra direcção. De facto em todos os casos o festim canibalesco aparece como uma forma de um grupo de conspiradores afirmar a sua solidariedade mútua e seu empenho à causa. Causa essa que invariavelmente consiste em derrubar o status quo, depor a ordem reinante e tomar o poder. Trata-se de facto de um estereótipo: a ideia de uma sociedade secreta que procura de forma implacável o poder. Este estereótipo e as suas variações provaram ser extremamente poderosos e resistentes, sendo que foram usados ao longo da idade média para a demonização dos hereges e, em conjugação com outros factores, culminaram na grande caça às bruxas dos sécs. XVI e XVII.

Ao vermos estas acusações, de canibalismo e assassínio ritual, lançadas contra os cristãos podemos inferir que os romanos tinham a percepção do cristianismo como um grupo sedento de poder que desejava a destruição da ordem estabelecida. Aqui temos que analisar dois pontos: o primeiro onde é que os pagãos foram arranjar um elemento de canibalismo para poder justificar o seu estereótipo e o segundo é a busca duma razão para esta visão do cristianismo como um grupo de conspiradores. O primeiro ponto é relativamente simples de explicar, os romanos viram na eucaristia uma prova de canibalismo, e até certo ponto estavam certos. Apesar de vários teólogos cristãos terem nos primeiros séculos tentado espiritualizar a eucaristia a verdade é que a maioria dos cristãos partilhava da visão que seria estabelecida como dogma pelo concilio de Trento séculos mais tarde: a eucaristia é literalmente o sangue e a carne de Jesus. O segundo ponto, a justificação para a visão dos cristãos como um grupo de conspiradores, também é relativamente fácil de encontrar, sendo que não se trata de um preconceito pagão totalmente injustificado. À parte do óbvio conflito entre a religião imperial (com o próprio imperador deificado) e uma religião que proclamava que o seu deus era o senhor do universo temos também o facto de os cristãos primitivos esperarem a redenção, já que viam o mundo como intrinsecamente malévolo, do qual os crentes seriam libertados pela segunda vinda de Jesus (de notar que a segunda vinda nos primeiros séculos do cristianismo paira no ar como se de algo eminente se tratasse) – a conclusão lógica destas ideias é que todo o culto imperial não passava de idolatria e Roma era a nova Babilónia, o reino do anticristo. Resumindo, a luta dos cristãos não era política mas sim escatológica. Toda esta atitude contribuiu para o afastamento das comunidades cristãs da vida cívica, chegando a extremos em que os romanos pagãos os viam como uma fé malévola e subversiva.

(continua em breve)

(1)- A. Jacoby, ‘Der angebliche Eselskult der Juden und Christen’.
(2)- Josephus, Contra Apionem – cap. II.
(3)- Plutarch’s Lives: Poplicola, IV.
(4)- Sallust, Catilina, XX.
(5)- Dio Cassius, Romaika (History of Rome), lib. XXXVII, 30.