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19 de Junho, 2006 pfontela

Declaração de Guerra

Há quem se ofenda com a forma como muitos autores deste espaço tratam a religião organizada, considerando que estamos aqui a destilar veneno por puro prazer. A realidade da situação é bastante mais complicada que isso. Posso estar à vontade para dizer que o meu ateísmo nada tem de emocional, não me tornei ateu porque senti uma grande injustiça no mundo ou porque tive uma vida difícil e ninguém atendeu as minhas orações; Tornei-me ateu pelo empirismo, pela impossibilidade de aceitar dogmas, sejam eles de que natureza forem. Só os factos e indícios importam.

Mas isso por si só não chega para entender a minha participação neste espaço, muitos dos meus posts têm um teor que mais que ateu é 100% anti-clerical. E isso justifica-se com poucos argumentos: se o empirismo é a base do meu ateísmo o conservadorismo, obscurantismo e, acima de tudo, o ódio negro que vejo a grandes religiões organizadas debitar sem qualquer pudor ou bom senso tornaram-me ferozmente anti-clerical, e como cresci em Portugal sou principalmente anti-católico. Não tenho que me envergonhar das posições que tomo! Como cidadão da República estou a cumprir o meu dever cívico ao lutar para que o ódio religioso se extinga e que a manipulação política do estado por parte de organizações religiosas chegue ao seu fim.

Reconheço a boa vontade daqueles que tentam chegar a uma posição intermédia e que pensam ainda ser possível chegar a um acordo com as formas mais violentas de crença e clericalismo, mas também sei ver a sua ingenuidade. Há príncipos que não se podem negociar já que ao fazê-lo estamos a comprometer tudo o que somos (ex: não podemos ceder a pressões religiosas para suprimir vozes críticas ou regressaremos ao jogo do gato e do rato com uma censura religiosa imposta por meia dúzia de fanáticos que gostam de brincar aos inquisidores).

Não negociarei a liberdade (minha ou dos outros). Não negociarei a genuína dignidade humana (aquela que deriva do uso da razão – e não a falsificação que Roma nos quer impingir). Não renegarei o meu legado iluminista! Nao haverá “paz” entre os dois lados enquanto:

– Organizações religiosas abusarem do seu estatuto legal e da sua plataforma pública para lançar a ataques à razão e atiçar ódios ancestrais.
– Os abusos religiosos (camuflados enquanto liberdades religiosas) continuarem impunes.
– Todos os campos da ciência e da técnica não forem completamente liberados de amarras religiosas.
– Todas fés não renunciarem a todos os projectos de natureza política.
– As religiões tentarem mascarar os seus ódios e vicios com falsas virtudes.
– A religião não for totalmente confinada à esfera pessoal, que é a sua única posição possível numa sociedade livre.

Isto é um conflicto entre duas formas de ver o mundo, em que a negociação está fora de questão. Para o indivíduo, enquanto ser livre, poder prosperar e atingir os seus objectivos é necessário que a divisão que separa a política, a ciência e a lei da religião seja a mais forte possível. Sobre este ponto todos os defensores da laicidade têm a obrigação de travar o seu último combate – se tal for necessário.

13 de Junho, 2006 pfontela

Ainda o teatro

Tenho recebido uma série de emails de católicos que parecem estar muito zangados comigo por eu não concordar com a sua tentativa de censura da peça «Me Cago en Dios». Devo dizer que quando o Carlos Esperança publicou o seu artigo há uns dias eu nem liguei muito à coisa, não me parecia ser algo especialmente interessante (do ponto de vista da minha sensibilidade estética) e nem pensei mais no assunto. Passado pouco tempo recebo um email indignado com a reacção de vários católicos que exigem que se retire qualquer apoio estatal á peça. As suas razões para isso é que como contribuintes isso lhes seria ofensivo.

Ora como eu lhes respondi mais tarde é realmente verdade que os católicos pagam impostos, mas também é verdade que os ateus também o fazem, os agnósticos também, os anti-clericais também e por aí adiante. Ora sendo esse o caso não me parece muito lógico que um grupo (que está em pé de igualdade legal com os outros) tenha o direito de ditar o que pode ser financiado pelo estado, tornando o aparelho do estado ora numa máquina de propaganda religiosa ora numa máquina de repressão – uma questão diferente, muito pertinente, é saber que as criações artísticas, independentemente da sua natureza, devem ser subsidiadas, mas a questão aqui e agora não é essa.

Acho também do mais vergonhoso possível que meia dúzia de cristãos ultra conservadores montem uma cruzada contra uma peça de teatro e insinuem que falem em nome de tudo quanto é cidadão que no censo de população pôs uma cruzinha no quadrado que indica “católico” (a chamada orientação espiritual…). Quando a maioria de tais pessoas está ligada ao catolicismo de forma puramente nominal, sem conhecer o mais básico conjunto de princípios da “sua” fé, sem prestar qualquer atenção às alarvidades sem ética que emanam do Vaticano e cuja soma de participação na organização Igreja Católica é a organização de um casamento para a família ver (são os chamados cristãos folclóricos).

Esta negação do mais básico princípio de igualdade perante as opiniões quanto à natureza dos conceitos deus e religião mostra que existe um subgrupo católico que não assimilou bem que os tempos mudaram um bocado, que o estado não os vai tratar como delicadas flores de estufa, atropelando os direitos de todos os outros cidadãos em nome da sensibilidade religiosa que se recusa a aceitar que não tem direito a uma protecção especial.

31 de Maio, 2006 pfontela

Selectividade e conspiração

Já aqui falámos da visita de Ratzinger à Polónia, possivelmente um dos últimos redutos do fanatismo católico em solo europeu e de uma opressão política e social que é sistematicamente ignorada pela maioria dos estados membros.

Mas é de acrescentar umas notas sobre o discurso do papa aquando da visita aos campos de concentração. Como político que é não se conteve e teve que fazer mais uns quantos comentários depreciativos sobre a modernidade (compreendo que um rei que se vê privado da maioria do seu poder se sinta ultrajado pela República…), ou seja, para quem ainda não percebeu: Ratzinger acha que o holocausto é uma boa arma política para combate político! Reflecte uma falta de decência que seria impensável para qualquer governante secular, para um líder religiosos parece que é louvável.

É perfeitamente previsível que uma organização que vê o número de seguidores drasticamente diminuído sinta que tem que atacar violentamente a causa das suas desgraças. O que já não é normal é que se use de forma hipócrita a memória das vítimas do holocausto para esses fins! Especialmente quando em todo o discurso não houve uma palavra de reconhecimento da culpa colectiva católica no anti-semitismo polaco (e não só) – um ódio ancestral. Foi um sentimento que sempre esteve presente na nação, não foi importado da Alemanha aquando da guerra. Apesar das suas longas raízes históricas Ratzinger preferiu falar dos mártires e da maldade da modernidade em vez de reconhecer a culpa da Igreja em todo este cenário cultural.

Mas voltando à modernidade, parece-me claro que a Igreja tem um terror ao mundo moderno, um mundo que além de já não lhe reconhecer autoridade quase já não lhe reconhece valor o que leva frequentemente ao isolamento da realidade e por sua vez à mentalidade da teoria da conspiração. Tal como o Jesuíta Barruel no século XVIII criou a conspiração maçónica/jacobina universal também os actuais porta vozes do Vaticano (como os jesuítas caíram um pouco em desgraça calculo que a opus dei seja no futuro o veiculo privilegiado para este processo) criam a sua própria mitologia da conspiração em que os sinistros ateus são movidos apenas por um ódio irracional, sem qualquer projecto ou objectivo.

29 de Maio, 2006 pfontela

ONGs religiosas

A questão das organizações religiosas sem fins lucrativos já anda a levantar dúvidas há vários anos. Desde as acusações de aproveitarem as desgraças alheias para pregar, passando pelo “simples” desvio de verbas e acabando com ajudas dependendo do credo (vulgo conversão a troco de comida) algumas dessas organizações já passaram por isso tudo – os evangélicos têm uma certa reputação de serem especialmente pródigos na última acusação, talvez sejam apenas mais óbvios nas suas intenções. Claro que eventualmente isto teria que afectar as contribuições que as pessoas fazem.

Mas além do próprio descrédito de organizações específicas as pessoas parecem estar mais hostis às próprias noções por detrás delas – a religião, nomeadamente o Cristianismo. E têm razões para serem cépticas. Num mundo cada vez mais pressionado pelo fundamentalismo as pessoas racionais sabem com quem as grandes organizações religiosas se estão a aliar (o caso de amor entre islão e catolicismo é o mais óbvio no fórum mundial que é a ONU) e sabem perfeitamente que não querem voltar a esses tempos. Também sabem que as suas esperanças devem ser depositadas no Homem e nas suas potencialidades e não no sobrenatural (ou as suas ramificações, mais ou menos, seculares) – hoje quem tem um problema olha para a ciência em vez de olhar para o altar, com resultados bastante melhores diga-se de passagem.

Esta falta de transparência quanto aos seus objectivos e às suas alianças faz os religiosos moderados recuar e os descrentes repudiar qualquer patrocínio a tais entidades. No nosso caso, como ateus, temos um problema extra, é que no fim qualquer participação que se tenha nestas organizações (por muito limitada que seja – e digo limitada já que em várias delas é necessário pertencer a certas religiões para ser membro) será completamente desvalorizada e posta ao serviço da máquina publicitária religiosa. Não é novidade que as seitas cristãs reclamem completo crédito por tais acções apesar de terem disposto de meios e pessoas que em nada se relacionam com a sua fé.

Para ganharem qualquer tipo de credibilidade estas ONGs religiosas têm que perder várias coisas:
– O seu exclusivismo;
– A sua indefinição de objectivos, é necessário perceber se são organizações de ajuda de emergência ou de evangelização;
– A dependência das suas organizações religiosas base.

O último ponto parece-me especialmente importante. Eu como ateu recuso-me terminantemente a contribuir para a campanha publicitária de organizações, como a Igreja Católica, que representam algumas das realidades e valores mais nefastos que já viram a luz do dia. Não serei cúmplice de organizações fundamentalistas ou que se aliam a pessoas dessa espécie.

30 de Abril, 2006 pfontela

Do Império Ocidental e do primado papal

Uma das mais velhas pretensões da Igreja Católica, e mais precisamente do papado, é a da universalidade do seu domínio sobre a fé cristã. Tal princípio não é apenas um ponto importante mas a base essencial das suas acções políticas ao longo de séculos. Mas obviamente o facto de ser importante ou fundamental não significa que seja inegável.

É aceite que a maior ameaça a esta posição veio do verdadeiro herdeiro do Império romano, o Imperador de Bizâncio. O Império Bizantino conseguia conjugar três conceitos importantes: o Helenismo, o Romanismo e o Cristianismo; todos juntos explicam a verdadeira posição do Oriente no mundo medieval imediatamente após a queda de Roma. O Imperador Oriental era considerado o autocrata a quem a divindade havia dado o poder absoluto para governar o mundo romano e cristão. Interna e externamente era o único monarca verdadeiramente autónomo.(1)

Esta autonomia tem duas vertentes e no seu lado interno significava que tudo o que se passava dentro do Império era assunto do Imperador, o que obviamente incluía o cristianismo – que nesta altura já tinha sido absorvido pela máquina administrativa do estado. Em última análise todas as questões eclesiásticas seriam resolvidas pessoalmente pelo Imperador. Externamente a autonomia significava que não poderia existir nenhum outro governante além do Imperador Bizantino que pudesse legitimamente pretender ser senhor do mundo (dominus mundi).

Ora quando no século V d.c. o papado começou a tornar evidente a sua rejeição da posição do Imperador enquanto vice-regente de Deus na Terra criou um primeiro cisma (muitos mais viriam até à separação final e total). Esta oposição do papado à interferência do Imperador em assuntos eclesiásticos equivalia pura e simplesmente a laesio divinae majestatis (crime de lesa majestade divina), o que em termos seculares seria julgado como alta traição. É bastante claro que o papado só pode tomar esta “brava” decisão depois da extrema decadência e queda do Império do Ocidente, já que antes dessa data não passava de um súbdito imperial. Com o abandono romano (e grego) da península italiana os laços de dever perderam força e o papado não encontrou ninguém que verdadeiramente se pudesse opor às suas pretensões (apesar de os bizantinos terem por várias vezes tentado recuperar algumas das suas províncias ocidentais foram esforços que no fim se revelaram inúteis). A queda da civilização romana ocidental tornou a Igreja corajosa. Mais que corajosa, ambiciosa.

Com o tempo os representantes da Igreja encontraram a disponibilidade e os argumentos que acabariam com qualquer laço de dependência, teórica ou real, para com Bizâncio. A principal acção neste campo foi a (re)criação de um Imperador ocidental. Tal posição não existia de forma natural, de facto não passa de uma criação papal – como poderia racionalmente existir um segundo monarca com plena autonomia se o único que poderia reclamar esse poder por tradição ainda se encontrava vivo? Os próprios requisitos para ascender ao cargo (tal como Carlos Magno em 800 d.c.) eram a lealdade para com Roma e aceitação implícita do primado romano face ao Oriente e aceitação explícita do primado político do papa no Ocidente (já que o cargo era outorgado pela autoridade religiosa é natural que, em última análise, o poder secular dependesse dela em todas as esferas).

Estes foram os primeiros passos da luta de independência papal face ao único e verdadeiro herdeiro do Império Romano: Bizâncio. Mais tarde os próprios reis germânicos que tinham abraçado a causa papal como justificação do seu poder dinástico no interior dos seus reinos e como desculpa para se expandirem (o caso mais gritante é expansão alemã para leste, esmagando os povos eslavos em nome da expansão da influência “espiritual” de Roma) encontraram-se presos nas amarras que criaram – as décadas de luta entre os Hohenstaufen e os papas são o caso mais claro; infelizmente para os líderes germânicos a sua luta por independência foi um rotundo fracasso e acabaram por ter que literalmente arrastar-se aos pés do papa e implorar por perdão.
Mas em política e teologia as coisas mudam e sem poder físico para a manutenção das pretensões estas não passam de birras de governantes despojados de toda e qualquer relevância. Quer falemos do papas quer dos Imperadores Orientais a dominância das suas posições só foi uma realidade enquanto conseguiram manter uma supremacia política e militar nas respectivas áreas de influência. O velho adágio que diz que a História é escrita pelos vencedores mostrou-se mais uma vez correcto.

(1) W. Ullmann – Mediaeval Political Thought
13 de Abril, 2006 pfontela

As virtudes do catolicismo liberal

Uma verdadeira cultura política independente e autónoma
Perceber o papel espiritual da Igreja
Tolerância pela liberdade de expressão, mesmo quando envolve crítica à religião
Uso de honestidade intelectual
Não usar a esfera religiosa para poder influenciar a política
Responsabilidade e seriedade dentro da actual situação global

O catolicismo liberal, tal como a ideia de catolicismo moderno, é um conceito sem sentido. A estrutura da igreja não está desenhada para seres humanos autónomos, a lógica que permeia a organização é a de obedecer ou calar. O próprio Ratzinger foi um perito durante os anos que esteve à frente da inquisição reformada em suprimir vozes dissidentes (proibindo a publicação de certos autores ou minando carreiras académicas).

Isto quer dizer que não existem católicos que pensem e sejam sérios no seu civismo? Não. O que quer dizer é que essas pessoas não são muito ortodoxas e com o rumo que as coisas tomam (o regresso ao passado) arriscam-se seriamente a não ter um lugar à mesa. O que espero é que os verdadeiros católicos progressistas (em oposição aos publicistas do “regime”) se apercebam que estão a servir de relações públicas para uma organização que não os representa e que promove activamente a antítese de todos os valores progressistas e liberais.

11 de Abril, 2006 pfontela

Os teocratas que não sabiam contabilidade

Uma das principais (senão a principal) organizações do lobby conservador na América está em graves apuros financeiros. Ao longo dos anos a “Christian Coalition” tem vindo a acumular dívidas significativas (que actualmente ultrapassam os 2 milhões de dólares) e a perder membros que sentem que com um governo conservador a organização não faz sentido ou que deixou de ter credibilidade devido aos muitos escândalos em que está envolvida.

O primeiro golpe foi dado quando a reputação dos dois fundadores (Ralph Reed e Pat Robertson) foi para o caixote, o primeiro porque tem ligações altamente suspeitosas com o corrupto mais famoso dos Estados Unidos, Jack Abramoff (entre outros comportamentos menos éticos ao longo da carreira…) e o segundo porque é um bacoco que diz asneiras a mais até para qualquer cristão ultra-conservador (literalmente destruiu a sua reputação dando entrevistas que fazem Torquemada parecer um rapazito simpático).

Para continuar a litania das desgraças existem acusações de nepotismo dirigidas à nova presidente, que curiosamente contratou a sua filha e o seu genro para trabalharem lá com direito a generosos salários… eu pensaria que a gratificação de servir o Senhor seria suficiente, mas aparentemente não é…

Isto por sua vez só veio ser agravado quando Tracy E. Ammons (o genro que era professor e que recebeu a promoção milionária) pediu um divórcio e resolveu pôr a boca no trombone. Ammons acusou claramente a organização de ter má fé nas suas relações comerciais, afirmando que era prática comum esperar até serem processados até saldar as dívidas.

A actual administração da Christian Coalition continua com muita fé [lol – é caso para rir] em que a organização se irá manter de pé mesmo depois de ter sido desmascarada como um poço de interesses sórdidos misturados q.b. com casos de demência religiosa (que bordam o patológico). Não faço previsões quanto ao futuro destes senhores mas acredito que até se safem de tudo isto já que enquanto existirem pessoas que acreditem neles cegamente, que se recusem a enfrentar os factos e se limitem a seguir em vez de pensar por si próprios (em resumo: que continuem a rever-se numa mentalidade de manada) haverá sempre um futuro dourado para demagogos, hipócritas e fanáticos de todas as espécies.

5 de Abril, 2006 pfontela

Crítica ao «tratado de ateologia»

Michel Onfray é provavelmente um dos escritores ateus que mais vende na Europa e a cada nova publicação tem direito a uma cobertura mediática completa. O seu último título não é excepção; o «tratado de ateologia» (disponível em francês e espanhol).

Primeiro é preciso começar por definir o que a obra é e não é. Não é um tratado filosófico porque Onfray não se dedica a desenvolver nenhum argumento de forma completa e coerente, limitando-se a referir de “raspão” as conclusões de outros autores. Não é um tratado histórico porque não existe uma linha lógica de investigação histórica que guie o livro, apenas referências (muitas…) às intermináveis incoerências de ter uma religião que se diz racional e os inenarráveis crimes que povoam a história do monoteísmo. Ou seja, para o leitor que procura uma discussão aprofundada dos temas este definitivamente não é livro recomendado, é demasiado disperso e superficial para preencher os requisitos.

Agora vamos falar do que o livro é. Para mim fica-me a ideia de uma obra digna de um publicista, ou seja, o seu principal objectivo é vincular uma determinada opinião e com esse objectivo usa-se uma linguagem agressiva mas sem grande profundidade. Quem tiver dois dedos de testa e não for ateu não será com certeza com esta obra que se tornará e mesmo ateus (por muito militantes que sejam) que partilhem de muitas das opiniões de Onfray provavelmente não gostarão da forma como ele as expõe, o seu estilo é presunçoso, arrogante mas inconclusivo.

Em resumo é uma obra para quem precisar de um catálogo de argumentos e de inconsistências religiosas mas não para quem quiser adquirir conhecimentos aprofundados sobre todos os temas.

Uma outra forma de analisar o livro é como um grito de profunda e genuína indignação contra um conjunto de fés que têm o seu passado escrito em sangue e que hoje escolhem vestir a pele do cordeiro, chegando ao cúmulo da hipocrisia de se apresentarem como soluções para os “males da modernidade” – problemas esses, que quando existem, são em grande parte derivados das suas próprias acções no passado e presente. Se escolhi partilhar primeiro a visão que realça as falhas do livro é porque pessoalmente o livro desiludiu-me. Esperava um trabalho muito mais profundo, especialmente no tema do desenvolvimento da ética ateísta, coisa que não ocorreu.

Por fim deixo aqui a estrutura do livro:
Parte 1: ateologia
– A odisseia dos espíritos incrédulos
– O ateísmo e saída do niilismo
– Em direcção a uma ateologia

Parte 2: Monoteísmos
– Tirania e servidão nos mundos subjacentes
– Autos de fé da inteligência
– Desejar o contrário do real

Parte 3: Cristianismo
– A construção de Jesus
– A contaminação Paulista
– O estado totalitário cristão

Parte 4: Teocracia
– Pequena teoria da selecção de citações
– Ao serviço da pulsão de morte
– Por um laicismo pós-cristão

11 de Março, 2006 pfontela

Da necessidade de não definir

Estava a ler o livro “O Ocidente Dividido” de Jurgen Habermas quando dei com este pedaço de texto na transcrição de uma entrevista que lhe fizeram em 2004:

«O adjectivo fundamentalista tem uma conotação pejorativa. Com ele designamos uma mentalidade que se empenha em impor politicamente as suas próprias convicções e razões, mesmo quando estas são tudo menos universalmente aceites. Isto é valido especialmente no caso dos dogmas religiosos.»

Até aqui nenhum choque, a definição parece-me correcta de todos os pontos vista e além disso é clara e concisa. Mas há mais a dizer sobre o tema, como por exemplo a relação entre ortodoxia e fundamentalismo:

«Claro, não devemos confundir o dogmatismo e a ortodoxia com o fundamentalismo. […] Uma ortodoxia só se torna fundamentalista quando os representantes e defensores da verdadeira fé ignoram a situação epistémica de uma sociedade pluralista no que diz respeito às cosmovisões e insistem (até com recurso à violência) na imposição política e no carácter universalmente vinculador da sua doutrina.»

É óbvio a qualquer observador que a moral católica está longe de ser universal ou consensual já que se mesmo da Igreja não conseguem obter um consenso quanto mais fora dela. Quanto ao pluralismo a situação é ainda mais clara: pluralismo é algo que a ICAR abomina já que enquanto representante da única verdade tudo o resto são erros e mentiras que têm que ser combatidas, aliás responsabilizam a diversidade de opiniões e culturas no Ocidente cosmopolita como um factor de decadência.

Ora com estes pontos assentes podemos facilmente concluir que de facto a ICAR se trata de uma organização fundamentalista, já que no seu discurso público continua não apenas a defender que são detentores da Verdade (como é de esperar de qualquer religião) mas vão mais longe ao exigir aos governantes seculares o regresso aos míticos códigos católicos e ao exortar os seus seguidores a impor leis que promulguem essa visão. Isto é fundamentalismo puro e duro, a única diferença entre a ICAR e os islamitas é que o Vaticano não rapta pessoas para fazer chantagem com governos – pelo menos não abertamente… ainda está por apurar a totalidade de responsabilidade da Igreja no caso Ambrosiano que acabou em várias mortes no mínimo suspeitas.

A única garantia que temos contra tais atitudes potencialmente totalitárias é a construção, manutenção e valorização de um espaço público secular. E esse espaço público tem que necessariamente incluir a vida política já que não podemos esperar ter margem de liberdade pessoal se os legisladores não se comprometem com o ideal de neutralidade confessional que a sua posição exige. Em causa não estão as escolhas pessoais dos políticos ou detentores de cargos públicos, porque eles, como todos os cidadãos, têm o direito de as ter mas sim o reconhecimento de que a sua crença (em algo absoluto) é relativa dentro do espaço público e está em pé de igualdade para coexistir com outras sem que deva ser criada qualquer tipo de coerção para a impôr – coerção regra geral implantada pela “porta do cavalo” através de leis e medidas governamentais que de neutras nada possuem.

Por estas razões estou plenamente convencido que o projecto de civilização que Roma propõe além de ser totalmente anacrónico (digno da era pré-moderna) é profundamente subversivo para o bom funcionamento do tecido social, cultural e político de qualquer nação (ou conjunto de nações) civilizada já que ataca a raiz daquilo que mais valorizamos: a liberdade de opinião e escolha que só um espaço público laicizado torna possível.

Nota: o texto em itálico, que é parte de uma entrevista muito maior, pode ser lido na integra em: J. Harbermas; “El Occidente Escindido, Pequeños escritos políticos” ou no original: “Der gespaltene Westen. Kleine Politische Schriften”

9 de Março, 2006 pfontela

O regresso aos bons costumes

Eu sei que ao comentar a última declaração de Ratzinger pode parecer um bocado que estou a bater no ceguinho, afinal não há nela um pingo de originalidade, não existe nada que qualquer ateu consciente não rejeitasse completamente. Mas mesmo assim vou comentar porque o dia em que pararmos de denunciar estes lobos com pele de cordeiro é o dia que deixa de existir uma voz de dissidência na sociedade e isso é o pior que pode acontecer, é a estagnação e, eventualmente, a morte.

Dizem que os fanatismos se alimentam uns dos outros e parece ser esse o caso nesta declaração em que o papa utiliza o medo ao islão para promover os seus próprios fins: a ressurreição da moribunda fé católica europeia. Segundo este arauto da luz só regressando às suas origens de valores absolutos (católicos) é que a Europa poderá sobreviver à “invasão” arábica.

Eu gostaria que de uma vez por todas o Vaticano saísse das sombras e dissesse claramente o que pretende, quais são os tão desejáveis valores absolutos que anseia. Serão os mesmo que defenderam no passado? O abuso sistemático e contínuo das mais básicas liberdades humanas? O conluio que fizeram com o poder monárquico para manter as duas instituições (igualmente irracionais e ilógicas) de pé? O poder de julgar qualquer indivíduo? Poder secular directo e imediato por parte dos seus sacerdotes? A asfixia cultural/intelectual de um continente inteiro? A instauração de um clima de medo opressivo que virou vizinho contra vizinho, amigo contra amigo, pai contra filho? O regresso aos maravilhosos esforços de conversão nas ex-colónias (envolvendo a destruição selvática de muitas sociedades locais que até hoje não recuperaram dos demónios que os padres implantaram no seu seio – para não mencionar as que foram totalmente aniquiladas)?

O que hoje se identifica como valores na Europa (tolerância, individualidade, liberdade, etc) pouco ou nada estão relacionados com a prática ou pregações da Santa Madre Igreja ao longo dos séculos. De facto só foram possíveis destruindo o antigo regime que os precedeu. O que o Vaticano propõe como solução para os males do mundo pode ser resumida da seguinte forma: muitos islâmicos advogam o radicalismo e por isso a única maneira de sobreviver é a civilização Europeia regredir ao seu nível de barbárie. E a Igreja Católica oferece-se como guia altruísta para esse percurso.

Esta é a linguagem do medo e da confusão, é o apelo ao simplismo, à negação em enfrentar uma realidade complexa sem soluções fáceis e dogmáticas que evitem as desagradáveis tarefas de ter que pensar e inovar. Esta repetição até à exaustão de uma suposta decadência moral Europeia não visa mais que assustar (como em tempos fizeram com outros medos) os cidadãos com os medos que afectam a sociedade actual. A experiência é o melhor guia e o passado da instituição e dos ideias fala por si, não devemos nunca mais tornar-nos na civilização de ovelhas dirigida pelo tirano romano.

O presente de Roma está envenenado e apenas reflecte a sua incapacidade de lidar com o mundo nos seus moldes actuais, tanto que a única solução para eles reside num regresso ao passado, mas para sua infelicidade o tempo não volta atrás e se aprendemos alguma coisa nestes séculos foi a desconfiar de todos os que ambicionam o poder absoluto e que para o atingir tentam subornar os Europeus com promessas de potência e de regresso aos bons velhos tempos.