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Mariana de Oliveira

27 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Deus e a ressocialização

Estou errada. Tudo o que aprendi sobre direito e processo penal é inútil. Os meus professores estão errados, os criminólogos estão errados… todo o sistema está errado! A ressocialização dos agentes da prática do crime não deve assentar num modelo que respeite os direitos dos reclusos e a dignidade humana. George W. Bush descobriu-o quando foi governador do Texas. O agora presidente dos Estados Unidos encarregou Chuck Colson de «redimir» os presos da cadeia de Carol Vance, os quais foram instruídos na fé cristã 24 horas ao dia, sete dias por semana, lê-se no Correio da Manhã, do dia 19 de Junho. Como não podia deixar de ser, face ao êxito desta campanha, foi criada uma empresa com fins lucrativos, The InnerChange, que tomou conta rapidamente dos estabelecimentos prisionais do Minnesota, Kansas e Iowa.

Jeb Bush, que teve um dos seus melhores momentos aquando das últimas eleições presidenciais, decidiu criar na Florida as duas primeiras prisões «religiosas»: uma para homens (Lawtey) e outra para mulheres (Hillsborough). Mais de 750 presos passaram pela experiência nos últimos seis meses e alguns definem a mudança «como passar do Inferno ao Céu».

Como a redenção tem sempre um preço, esta não foi barata: o estado da Florida desviou 20 milhões de dólares dos programas de reinserção social nas prisões para associações religiosas.

Jeb afirma que não pretende doutrinar ninguém. De facto, os condenados submetem-se livremente a cursos religiosos. Além disso, podem escolher entre mais de 30 credos. Por exemplo em Lawtey, há desde um imã, para os muçulmanos, até um guru rastafari. No entanto, mais de 90 por cento dos réus, opta por confissões cristãs, metade deles evangelistas e baptistas.

A Califórnia também decidiu aderir a esta nova forma de ressocialização e o homem escolhido para levar a cabo a tarefa de orientar as ovelhas tresmalhadas da sociedade é o pastor evangélico Rick Warren, com os seus cursos de 40 dias para converter os presos (Celebrate Recovery).

Do lado dos infiéis, está Barry Lynn, responsável do grupo Americanos pela Separação da Igreja e do Estado, que afirma algo de extraordinário (bem, pelo menos para algumas pessoas): Nem a Florida, nem a Califórnia, nem nenhum outro estado tem o direito de converter os presos ao cristianismo. As prisões baseadas na religião atentam contra os direitos constitucionais e não têm sustentação científica ou sociológica.

De acordo com um estudo da Universidade da Pensilvânia, apenas oito por cento dos reclusos que passaram por programas de fé voltam à prisão ao fim de dois anos, contra 20 por cento dos seculares. Os detractores das prisões religiosas sustentam, no entanto, que esse estudo está distorcido e não tem em conta factores como 40 por cento dos presos abandonarem os cursos antes de os completarem. De facto, de acordo com John Hancock, ajudante do presidente da câmara de Jacksonville (onde Lawtey está localizada), Costumávamos ter uma média de 28 presos nas celas de segurança por comportamento conflituoso e, desde que se iniciaram os cursos, não temos mais do que seis. E o melhor, conta, é que não os forçámos a nada, são eles que escolhem estudar o Corão ou o Talmud.

Uma – a meu ver preocupante – curiosidade: na página web do estabelecimento prisional de Lawtey podemos encontrar informações sobre os detidos, a sua fotografia e o cadastro criminal sem restrições de acesso. Esta estigmatização dos reclusos não é propriamente a melhor maneira de ter um sistema prisional mais justo e mais humano. Bem, digamos que, não só por tudo isto, mas também pelo que se passa em Guantanamo, no Iraque e no Afeganistão neste momento, os powers that be americanos não estão na melhor posição de se afirmarem como respeitadores dos direitos humanos dos reclusos.

27 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Wagner banido das Igrejas

Parece que tem surgido uma tendência, nos locais de adoração católicos, para banir a marcha nupcial, da ópera Lohengrin, de Wagner. Foi o que aconteceu com Clara Brito. Quando a noiva comunicou ao pároco a sua escolha musical, ele respondeu: Isso está fora de hipótese. Não se toca nas igrejas. O motivo, segundo o padre, é este: Wagner criou isso para acompanhar o contexto de uma orgia. Tal como não se toca música pimba nas igrejas, nem música de igreja nas festas, também isso não é apropriado para aqui. Não há nada como comparar um dos maiores compositores de música clássica ao Marante!

Ao Público, o ministro da igreja respondeu o mesmo: «A marcha nupcial de Wagner é uma ópera que foi criada para um contexto de orgia». Resta saber se o senhor pároco sabe o que é um contexto de orgia. Além disso, considera que a música tocada nas igrejas deve ser aquela que foi criada exactamente para esse fim, mas admite que «há músicas tocadas nas igrejas que não são as mais adequadas», e dá o exemplo da «Ave Maria», de Schubert. Segundo explica, esta também não foi criada para a igreja, «mas safa-se pela letra» e, por isso, não a proíbe. Vá lá, ao menos um compositor não faz parte da lista negra musical do padre.

Por seu lado, o cónego Ferreira dos Santos, presidente do Serviço Nacional de Música Sacra, conhece esta decisão tomada por alguns padres, mas não é tão radical. Por um lado, não lhe «parece adequado colocar na igreja música que não foi feita para a igreja», da mesma forma que não lhe «parece adequado tocar num espaço profano música de igreja». Mas por outro, pensa que «não haveria de ser preciso proibir».

Relativamente ao argumento de que a ópera foi criada para uma orgia não é partilhado pelo músico, que até se mostra surpreendido com essa ideia. Orgia é um termo forte, a não ser que as pessoas chamem orgia aos acontecimentos decorrentes da vida dos humanos, afirma.

Porquê esta proibição? De acordo com Ferreira dos Santos, as únicas orientações dadas pela Igreja acerca do assunto constam de um documento dos anos 80 que fomenta que nos templos haja concertos de música criada para a igreja, explica. Assim, o cónego considera que a proibição não é tola, que há bases, e que não é por birra que alguns padres a cumprem.

A posição do padre Carlos Azevedo, ex-pároco e vice-reitor da Universidade Católica, coincide com a de Ferreira dos Santos. Há pessoas que utilizam a igreja como mero espaço de encenação. Mas não vamos ensinar as pessoas à pressa, refere. A atitude também se justifica pelo facto de a execução da marcha anteceder o momento litúrgico. Na sua perspectiva, o ambiente litúrgico «deve definir-se não só pelas palavras, mas também pela música».

Historicamente, a marcha nupcial surgiu por imitação. Em 1858, quando a princesa Victoria, filha da rainha Victoria, casou com o príncipe Frederico Guilherme da Prússia, a marcha de Mendelshon foi executada no início da cerimónia e a marcha de Lohengrin, de Wagner, no final. Daí, a tradição passou para a sociedade em geral.

27 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Casamento: Evolução do direito português III

O sistema matrimonial só se alterou com a Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, assinada a 7 de Maio de 1940. As disposições concordatárias relativas ao casamento (arts. XXII-XXV) foram executadas e regulamentadas pelo Governo no Decreto-lei n.º 30 615, de 25 de Julho de 1940.

Através desta nova legislação, veio a admitir-se de novo o sistema de casamento civil facultativo na segunda modalidade, mas em versão diferente da que era consagrada no Código de 1867. Como diz Guilherme de Oliveira, o sistema concordatário representou uma transacção: Estado e Igreja tinham interesses diferentes e houve cedências de ambas as partes. Assim, o Estado reconheceu efeitos civis aos casamentos católicos, em determinados termos (art. XXII da Concordata), não permitiu o divórcio aos casamentos católicos (art. XXIV) e reservou ao foro eclesiástico a apreciação da validade ou nulidade desses casamentos (art. XXV). Por outro lado, o estado aplicou o seu sistema de impedimentos ao casamento católico, regulou o processo preliminar e o registo e permitiu aos seus tribunais decretar a separação de pessoas e bens relativamente aos casamentos católicos.

O Código Civil de 1966 manteve a legislação concordatária quase sem alterações.

Apesar do compromisso presente no acordo entre o Estado e a ICAR, a indissolubilidade por divórcio dos casamentos católicos – expressa no art. XXIV da Concordata e inserida no art. 1790º do Código Civil – foi contestada por largos sectores da opinião pública, que se tornou mais patente depois da queda da ditadura.

24 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Casamento: Evolução do direito português II

O art. 2º do Decreto nº 1, de 25 de Dezembro de 1910, considerava o casamento como contrato puramente civil. Também as causas de nulidade ou anulação do casamento competiam exclusivamente ao foro civil (art. 65º). Era o sistema de casamento civil obrigatório. Por forma a evitar que os nubentes se limitassem à cerimónia religiosa, ficando em situação concubinária perante a lei civil, o art. 312º do Código de Registo Civil de 1911 estabelecia a precedência obrigatória do casamento civil sobre qualquer casamento religioso.

Durante trinta anos foi este o sistema que vigorou até à Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa, assinada a 7 de Maio de 1940.

22 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Padres de Aveiro recebem remuneração base

Num comunicado, D. António Marcelino, bispo de Aveiro, diz que a remuneração base de todos os padres passará a ser, a partir do próximo mês de Julho e incluindo já este mês, de 550 Euros e o subsídio de férias será ainda de 500 Euros e ao 13º mês serão atribuídos 525 Euros. Se o padre tiver mais de uma paróquia ou outros serviços pastorais remunerados e permanentes (professores e os capelães), seguir-se-á o que está determinado, ou seja, que o excedente, deduzidas as despesas de transporte não remunerado por outra entidade, reverta, em partes iguais, para o próprio padre e para o Fundo Diocesano de Compensação.

Considerando que o salário mínimo nacional é de 365,6 Euros, a salvação de almas até nem é um trabalho mal pago.

22 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Casamento: Evolução do direito português I

O sistema do Código Civil de 1867 era confuso e contraditório. Os arts. 1057º e 1072º pareciam consagrar o casamento civil apenas para os não católicos (sistema de casamento civil subsidiário), mas como não podia haver inquérito prévio acerca da religião dos contraentes (art. 1081º) e o casamento civil não podia ser anulado por motivo da religião (art. 1090º), reconhecia-se, afinal, que o Código admitia o sistema de casamento civil facultativo na segunda modalidade. As leis canónicas eram recebidas no país (arts. 1069º e 1086º) e o casamento católico só podia ser considerado nulo no juízo eclesiástico e nos casos previstos nas leis da Igreja (arts. 1086º e 1087º). Assim, o sistema do Código de Seabra tinha os mesmos inconvenientes que tem a segunda modalidade do sistema de casamento civil facultativo e que resultam de o casamento civil e o casamento católico serem admitidos como dois institutos diferentes, regidos por duas ordens jurídicas distintas, sendo diverso o seu regime, por exemplo, quanto à capacidade, consentimento, vícios ou nulidade do acto.

Apesar de tudo, o Código atenuou algumas destas desvantagens. Primeiro, com a ideia de aproximação dos dois sistemas de impedimentos, aplicou também ao casamento católico os impedimentos impedientes do casamento civil (art. 1058), responsabilizando o ministro da Igreja que celebrasse casamento mesmo quando existissem tais impedimentos (art. 1071º). Segundo, com o objectivo de unificar o registo dos casamentos, o legislador ordenou aos párocos que enviassem ao respectivo oficial do registo civil a acta do assento paroquial, para que fosse registada (art. 2476º).

Este foi o sistema que vigorou até à República.

14 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

América continua sob deus

O Supremo Tribunal de Justiça americano decidiu hoje a questão da referência a Deus na Pledge of Allegiance (veja os artigos do Diário de uns Ateus do dia 30 de Março e do dia 08 de Abril.Podemos pensar que os Estados Unidos, terra da oportunidade e da Liberdade, são o mais brilhante farol da democracia ocidental (creio que foi George Bush que o disse, o que não augura nada de bom) e que, apesar de todos os erros cometidos desde o início (a escravatura, a segregação, o Vietname, o Laos e, recentemente, o Iraque), ainda há uma réstia de bom senso, pelo menos, nas instâncias judiciais superiores. Se pensarmos assim, estamos completamente errados.

O Supreme Court entendeu que a pretensão do ateu californiano que deu início a esta batalha jurídica é improcedente. Isto significa que todo o texto continuará a ser recitado na íntegra, diariamente, pelos estudantes americanos… cristãos ou não. Os cinco juizes disseram que Michael Newdow não tinha qualquer legitimidade para iniciar a acção. Newdow, o pai da menina, cuja custódia ainda não está atribuída, não podia falar por ela, disse o tribunal. O juiz relator, John Paul Stevens, escreveu o seguinte: When hard questions of domestic relations are sure to affect the outcome, a prudent course is for the federal court to stay its hand rather than reach out to resolve a weighty question of federal constitutional law.

Outros magistrados disseram também que a referência ao juramento não viola a Primeira Emenda, que prevê a independência do Estado face à religião.

Rehnquist, juiz, afirmou ainda: To give the parent of such a child a sort of ‘heckler’s veto’ over a patriotic ceremony willingly participated in by other students, simply because the Pledge of Allegiance contains the descriptive phrase ‘under God,’ is an unwarranted extension of the establishment clause, an extension which would have the unfortunate effect of prohibiting a commendable patriotic observance.

Por seu turno a Freedom From Religion Foundation felicitou Michael Newdow por ter alertado consciências para a questão da origem secular do Pledge of Allegiance e que a decisão judicial se baseou apenas em pormenores técnicos. Assim, o caminho continua aberto para novas acções judiciais.

2 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

O Governo Espanhol não cede

Na passada quinta-feira, a Conferência Episcopal Espanhola zurziu arduamente o Governo socialista espanhol por os ministros da Justiça e da Saúde terem anunciado reformas em matérias sobre as quais a hierarquia da Igreja Católica tem uma posição diametralmente oposta: reprodução assistida, o aborto e a legislação sobre uniões de facto e casamentos de homossexuais.

A estas críticas respondeu Maria Teresa Fernandez de la Vega, vice-presidente e porta-voz do Governo, dizendo que a Igreja Católica não pode querer impor as suas normas à sociedade. O Estado espanhol não é confessional, e tem normas e valores morais consagrados na Constituição.

A ministra da saúde, Elena Salgado, por seu turno, afirmou que a despenalização do aborto e a supressão de impedimentos à fecundação “in vitro” e à utilização controlada de embriões na investigação biomédica respondem à lógica dos tempos e a necessidades que os cidadãos aceitam com naturalidade. Assim, o documento dos bispos vai contra os desejos da sociedade.

Finalmente, há alguém nesta Península Ibérica que é capaz de tomar uma posição clara e coerente com os valores constitucionais de um Estado moderno e civilizado, nomeadamente com a laicidade e o consequente afastamento da(s) Igreja(s) dos assuntos públicos.

Como resposta à reacção do executivo de Zapatero, a Conferência Episcopal anunciou que a ICAR apoiará mobilizações contra os projectos legislativos do Governo. Enfim, mais uma tentativa de impor a toda uma sociedade plural e multicultural os valores de um único grupo de pessoas.

Infelizmente, estas atitudes de oposição aos interesses da hierarquia católica só se vêem do outro lado da fronteira. Aqui, neste rectângulo à beira-mar plantado, o nosso governo continua a beijar as mãos dos bispos na tentativa de conquistar um lugar no céu.

1 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira

Anjos na América

Começou ontem, n’ A Dois, uma mini série que dá pelo nome de Anjos na América, adaptada da peça de Tony Kushner, estreada na Broadway há onze anos, e que é um retrato dos Estados Unidos dos anos 80.

A peça é sobre a América de há 20 anos, sobre Reagan e a sua administração, sobre uma nova doença que então tinha aparecido – a SIDA -, os mormons, o amor, a depressão e a família. Para além disto, o autor descreveu-a como uma fantasia gay sobre temas nacionais.

Por trás de todo o escândalo social e religioso que trouxe a Sida, está um desejo de saber como lidar com a questão da vida e da morte num mundo que não quer saber o valor de uma vida humana. Kushner também nos abre os olhos para a forma como os líderes políticos da altura, nomeadamente Reagan, lidaram com o que se tornou num dos flagelos da humanidade.

Entre as angústias individuais que cada personagem combate, encontramos “limiares de revelação” onde elas podem descobrir algo sobre si próprias, algo que provém dessa mesma luta e são essas revelações que as podem libertar.

Anjos na América foca também o papel da religião na intimidade de uma pessoa, como factor que condiciona as relações sociais e as relações pessoais, podendo levar à solidão e ao desespero.

O realizador é Mike Nichols que comanda um leque de actores invejável: Merryl Streep, Al Pacino e Emma Thompson.

A série pode ser vista às segundas-feiras, às 22.30.

30 de Maio, 2004 Mariana de Oliveira

Fátima vista por outros olhos

Não é política habitual a citação de artigos escritos em outros blogs. No entanto, creio que, nesta situação, impõe-se a referência a este excelente texto do blog Confissões de um Atrasado Mental, que o João Vasco teve a boa ideia de partilhar na nossa lista de discussão.

Eu gosto de Fátima

Podia ser uma declaração de amor platónico pela martirizada (e sexy, sejamos sinceros, a mulher só com a voz faria Sua Santidade o Papa ter uma erecção) ex ou actual ou futura presidente (possivelmente as três coisas ao mesmo tempo) da câmara municipal de Felgueiras. Mas não é. Fica para outro dia.

Falo da outra Fátima. Da que tem uma capelinha das aparições em vez de um saco azul e um apartamento com vista sobre Copacabana. E não é pelo pitoresco da coisa nem por convicção religiosa que manifesto a minha afeição. Considero que Fátima desempenha, e tem desempenhado ao longo das décadas, um papel profiláctico na sociedade portuguesa e que esse papel se tem mantido inalterado com a passagem dos anos e com todas as mudanças que o país tem atravessado.

A profilaxia de que falo faz ou fez-se sentir de várias formas. Comecemos pelo princípio. Tudo começou quando três jovens pastores de nome Lúcia, Francisco e Jacinta foram surpreendidos no desempenho da sua actividade pastoril por uma aparição de Nossa Senhora.

A aparição apresentou-se, disse ao que vinha e a partir daí a história é sobejamente conhecida. Não pretendo discutir a veracidade da aparição. Não sendo propriamente uma pessoa de fé, acredito no entanto que existem fenómenos que não podem ser explicados pela ciência e que três crianças analfabetas de um meio pobre e atrasado vejam uma mulher que permaneceu virgem depois de ter concebido e dado à luz um carpinteiro robusto a flutuar sobre uma moita envolta em luzes, estando morta há mil anos, é precisamente o tipo de coisa em que não me custa nada acreditar.

Mas e se a aparição não tivesse existido? Francisco e Lúcia cresceriam para se tornar gente rude do campo como os seus pais e avós. Casariam, teriam filhos, morreriam de velhos. Os seus nomes seriam lembrados apenas pelos familiares. Hoje, e apesar de terem morrido de doença em idade tão tenra, são beatos venerados por católicos fervorosos em todo o mundo. Com um pouco de sorte e vontade milagreira, chegarão a santos em breve.

Quanto a Lúcia, a mais activa no diálogo com a santa, trata-se obviamente de uma mulher de ambição. Se não tivesse visto a virgem mais improvável da história da humanidade a equilibrar-se sobre uma azinheira, teria seguido o caminho dos seus primos. Teria casado, teria sido mãe. Ao longo da sua vida, é provável que tivesse ouvido falar de D. Sebastião, o mítico rei que voltará a Portugal envolto em nevoeiro (ainda não foi hoje, amigos, esperem mais uma semana ou assim). Em vez de ver santas, a sua imaginação prodigiosa fá-la-ia acreditar ser ela a reencarnação do rei desejado, enviada à Terra para salvar o país da perigosa república ateia que o governava. Reuniria seguidores. Os seguidores armar-se-iam. Derrubariam o governo. O movimento espalhar-se-ia a Espanha e, em seguida, a todos os países do mundo católico e até ao mundo herético que descobriria a verdadeira fé pela força se preciso fosse.

Em alguns anos, o planeta inteiro seria governado por uma ditadura cruel, férrea e beata em que a reza do terço três vezes ao dia seria mais importante do que as refeições, em que a missa seria uma obrigação diária, sendo as faltas punidas com flagelação na praça pública, em que a Bíblia, o catecismo, os missais e obras piedosas sobre a vida de santos seriam os únicos livros permitidos, em que quem não aceitasse submeter-se acabaria queimado na fogueira (nem tudo seria original, portanto). E, à cabeça de tudo, sentada num trono dourado com almofadinhas de veludo para acomodar o seu amplo e piedoso traseiro, Lúcia contemplaria o império de fé e caridade cristã que tinha construído.

Estamos melhor assim, não estamos?

E foi tudo evitado pelas aparições.

Rebuscado?

Pouco realista?

Talvez. Mas não precisamos de ir tão longe para falar do tal papel profiláctico. Limitemo-nos à realidade contemporânea.

Todos os anos, milhares de pessoas de todo o mundo vão a Fátima, movidas pela fé em Nossa Senhora e no milagre e fazem-no praticamente desde o início, desde o ano de 1917. Desde essa altura, milhões de portugueses e gente de fora terão ido a Fátima. Uma boa parte destes devotos faz promessas e paga-as das maneiras mais diversas. Há quem queime um peso várias vezes superior ao próprio em cera (sob a forma de velas de vários tamanhos ou de partes do corpo), há quem se desloque a pé do outro extremo do país, chegando ao destino com os pés num tal estado que o próprio Cristo flagelado e crucificado (mesmo o Cristo de Mel Gibson) diria ?Bolas… isso está mau, hã?? Há outros que se arrastam de bruços pelo chão ou de joelhos, ou fazendo o pino ou apoiados na extremidade do nariz.

O que cada qual faz com o corpo só ao próprio dirá respeito mas uma coisa é indiscutível. As pessoas que fazem isto são gente perigosa. Compreendo que muitas o fazem por desespero e porque já não têm mais nada a que recorrer para curar doenças ou resolver situações pessoais desagradáveis. Também sei que a maior parte é gente sem grande capacidade cerebral, como os devotos cegos de qualquer religião, e que não sabem mais do que aquilo.

Mas isso não invalida o que antes disse. Seja por culpa própria ou alheia, são gente perigosa. Quem se arrasta de gatas de Viana do Castelo a Fátima também é capaz de pegar numa espingarda, ir para um mercado e desatar aos tiros. Quem gasta uma fortuna para mandar fazer uma réplica do próprio corpo em cera e em tamanho natural, também não terá qualquer tipo de problema em abrir os cordões à bolsa para financiar a investigação e desenvolvimento de uma bomba nuclear de capacidade destrutiva superior à de todas as existentes.

Sendo assim, viva Fátima e o seu santuário altaneiro! Enquanto estiverem ocupados a aleijar-se a eles próprios, não estão a aleijar ou a contribuir para aleijar terceiros que não têm nada a ver com os problemas deles e também terão os seus tão ou mais graves.

E depois há os padres. Segue-se um momento de dissertação anti-clerical pouco fundamentada por isso, quem tiver alguma coisa contra é melhor parar de ler por aqui.

Em Fátima, existe uma maior concentração de sacerdotes do que em qualquer outra parte do país, o que constitui um perigo incontornável (excluo as freiras porque são relativamente inofensivas fechadas nos seus conventos ou a dar catequese no meio da floresta tropical e só pensam em evangelizar o próximo e em técnicas masturbatórias originais).

Em qualquer sítio com uma tal concentração de padres católicos, a inquisição pode acontecer a qualquer altura. É a lei da natureza e tão infalível como dizer que se formos enfiando crocodilos no mesmo charco e não os alimentarmos, eventualmente, estes vão começar a devorar-se uns aos outros. Os padres não se devoram uns aos outros. Pelo menos, apenas alguns o fazem e acredito que sejam mais meigos do que os crocodilos mas é dar-lhes tempo e poder e, mais década, menos década, vamos ter autos de fé, tribunais do santo ofício, confissões arrancadas à força de ferros em brasa e práticas de igual colorido.

Mas, mesmo assim, é preferível que ardam uns quantos peregrinos que se atreveram a entrar na basílica expondo os cotovelos de forma pecaminosa ou que digam ?Oh diabo, está calor? numa tarde quente de Agosto do que haver mais paladinos da fé libertos das obrigações relacionadas com a administração do santuário e com a contagem do dinheiro resultante da venda de santinhos e imagens de Cristo a três dimensões para reforçar as fileiras da cruzada contra o preservativo e o aborto porque o vírus da SIDA (e das outras doenças menos mediáticas) também é uma criatura de Deus e porque o Criador gosta de ver o mundo que criou bem povoado por indigentes esfomeados que lhe lembram os bons velhos tempos em que meia dúzia de almas privilegiadas se sentavam em cadeirões confortáveis enquanto o resto esgravatava no lixo por uns pedaços de imundície menos repelentes e mais comestíveis, dizendo que sim a tudo e nunca questionando nada.

Bem haja, Lúcia. Bem haja Francisco e Jacinta lá no jardim de infância do paraíso.

Termino com uma sugestão. Não sei se é original ou não mas também não estou a tentar parecer perspicaz ou engraçadinho. Só digo isto porque acho que é uma boa ideia e gostava muito de a ver concretizada.

Existe no santuário de Fátima, percorrendo a praça principal, uma faixa de pedra polida que ali foi instalada para facilitar o caminho aos peregrinos de joelhos e de bruços e a quem alguém (creio que Manuel João vieira) chamou ?joelhódromo.?

É verdade que Fátima recebe muitos visitantes mas não o é menos que a maior parte são inevitavelmente católicos praticantes ou quase. Para que os ateus, os heréticos, os CNP (católicos não-praticantes) e os crentes de outras religiões comecem a acorrer a Fátima e a beneficiar também eles daquele ar místico que tão bem faz aos humores, é necessário que haja motivos de atracção.

Os devotos têm o santuário, a área comercial, o local das aparições, a casa dos pastorinhos, o museu de cera. Por que não instalar uma ou mais faixas de pedra polida ao lado da que existe e organizarem-se corridas? Até se podiam fazer apostas, o que resultaria em mais receitas para o santuário continuar a sua obra de… de… bom… de fé, suponho.