27 de Junho, 2004 Mariana de Oliveira
Deus e a ressocialização
Estou errada. Tudo o que aprendi sobre direito e processo penal é inútil. Os meus professores estão errados, os criminólogos estão errados… todo o sistema está errado! A ressocialização dos agentes da prática do crime não deve assentar num modelo que respeite os direitos dos reclusos e a dignidade humana. George W. Bush descobriu-o quando foi governador do Texas. O agora presidente dos Estados Unidos encarregou Chuck Colson de «redimir» os presos da cadeia de Carol Vance, os quais foram instruídos na fé cristã 24 horas ao dia, sete dias por semana, lê-se no Correio da Manhã, do dia 19 de Junho. Como não podia deixar de ser, face ao êxito desta campanha, foi criada uma empresa com fins lucrativos, The InnerChange, que tomou conta rapidamente dos estabelecimentos prisionais do Minnesota, Kansas e Iowa.
Jeb Bush, que teve um dos seus melhores momentos aquando das últimas eleições presidenciais, decidiu criar na Florida as duas primeiras prisões «religiosas»: uma para homens (Lawtey) e outra para mulheres (Hillsborough). Mais de 750 presos passaram pela experiência nos últimos seis meses e alguns definem a mudança «como passar do Inferno ao Céu».
Como a redenção tem sempre um preço, esta não foi barata: o estado da Florida desviou 20 milhões de dólares dos programas de reinserção social nas prisões para associações religiosas.
Jeb afirma que não pretende doutrinar ninguém. De facto, os condenados submetem-se livremente a cursos religiosos. Além disso, podem escolher entre mais de 30 credos. Por exemplo em Lawtey, há desde um imã, para os muçulmanos, até um guru rastafari. No entanto, mais de 90 por cento dos réus, opta por confissões cristãs, metade deles evangelistas e baptistas.
A Califórnia também decidiu aderir a esta nova forma de ressocialização e o homem escolhido para levar a cabo a tarefa de orientar as ovelhas tresmalhadas da sociedade é o pastor evangélico Rick Warren, com os seus cursos de 40 dias para converter os presos (Celebrate Recovery).
Do lado dos infiéis, está Barry Lynn, responsável do grupo Americanos pela Separação da Igreja e do Estado, que afirma algo de extraordinário (bem, pelo menos para algumas pessoas): Nem a Florida, nem a Califórnia, nem nenhum outro estado tem o direito de converter os presos ao cristianismo. As prisões baseadas na religião atentam contra os direitos constitucionais e não têm sustentação científica ou sociológica.
De acordo com um estudo da Universidade da Pensilvânia, apenas oito por cento dos reclusos que passaram por programas de fé voltam à prisão ao fim de dois anos, contra 20 por cento dos seculares. Os detractores das prisões religiosas sustentam, no entanto, que esse estudo está distorcido e não tem em conta factores como 40 por cento dos presos abandonarem os cursos antes de os completarem. De facto, de acordo com John Hancock, ajudante do presidente da câmara de Jacksonville (onde Lawtey está localizada), Costumávamos ter uma média de 28 presos nas celas de segurança por comportamento conflituoso e, desde que se iniciaram os cursos, não temos mais do que seis. E o melhor, conta, é que não os forçámos a nada, são eles que escolhem estudar o Corão ou o Talmud.
Uma – a meu ver preocupante – curiosidade: na página web do estabelecimento prisional de Lawtey podemos encontrar informações sobre os detidos, a sua fotografia e o cadastro criminal sem restrições de acesso. Esta estigmatização dos reclusos não é propriamente a melhor maneira de ter um sistema prisional mais justo e mais humano. Bem, digamos que, não só por tudo isto, mas também pelo que se passa em Guantanamo, no Iraque e no Afeganistão neste momento, os powers that be americanos não estão na melhor posição de se afirmarem como respeitadores dos direitos humanos dos reclusos.