Loading

Ludwig Krippahl

9 de Outubro, 2011 Ludwig Krippahl

A pescada, o rabo e a boca.

Ontem decorreram as II Jornadas Fé e Ciência, sobre “Deus, Acaso e Determinismo” e o problema de «reconciliar o papel central que o acaso tem no relato científico do mundo com o relato teológico da relação de Deus com o mundo» (1). A propósito, o Alfredo Dinis escreveu que «Torna-se necessária uma nova compreensão de como o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida tal como os conhecemos.»(2)

Uma ideia central do cristianismo é que um ser omnipotente e inteligente planeou isto tudo. Esta premissa atravessa toda a concepção cristã do mundo e de como o podemos perceber. Na epistemologia, presumem que qualquer evidência de organização e funcionalidade é indicativa desse propósito e, portanto, dessa inteligência divina, dando-nos a conhecer esse Deus. O existencialismo cristão rejeita que a nossa existência possa fazer sentido se não fizer parte de um plano, traçado algures no início dos tempos, que nos cumpre agora seguir. E a ontologia cristã defende que o universo só pode existir graças a Deus porque tudo o que surge tem necessariamente de ter uma causa, de onde depois extrapolam várias conclusões ainda menos substanciadas.


Ontológico

Via Facebook, obrigado à Palmira Silva

A constatação de que há acontecimentos sem causa e de que o futuro não pode ser completamente determinado pelo passado obriga a rejeitar este fundamento determinista, o que é um problema para a hipótese de que tudo isto faz parte do plano inteligente de um ser omnipotente. Em vez de considerar rever essa hipótese, o Alfredo, e os teólogos em geral, propõem mantê-la a todo o custo, criando hipóteses auxiliares quanto baste para defender que «o acaso não só não é um obstáculo à fé num Deus omnipotente e criador, como é indispensável a um Deus omnipotente que cria o universo e a vida». A isto, um filósofo na linha de Lakatos chamaria um programa de investigação degenerativo, e um não-filósofo chamaria tapar o Sol com a peneira.

O Nuno Gaspar, entre outros, vai certamente apontar que isto não tem qualquer importância para a fé das pessoas. Muitos que orientam os seus valores por uma ideia do divino estão-se nas tintas para o que a mecânica quântica diz. Concordo, e partilho dessa atitude. Por exemplo, a ideia de justiça é importante para mim e, mesmo que as descobertas da ciência possam alterar ligeiramente esse conceito, nunca vou sentir que o tenha de rejeitar só por força dos factos. Mas isto é assim porque a justiça é um ideal e não um elemento da realidade. Quem considera que o seu deus é um ideal, sem assumir que é uma entidade real, também não precisa de se preocupar em testar ou rejeitar essa ideia só por causa dos factos. No entanto, a posição da teologia é diferente. Não considera o divino como uma expressão conceptual de valores (como caridade, virtude ou justiça, por exemplo), mas sim como uma hipótese acerca dos factos. O Alfredo defende que existe mesmo uma pessoa eterna e omnipotente que criou o universo com um propósito e de acordo com o um plano. Isto não é um ideal acerca de como as coisas deviam ser, mas uma alegação acerca de como realmente são.

Alegadamente, a teologia procura respostas para as perguntas últimas acerca do propósito e significado do universo. Uma parte importante desta demanda seria descobrir que o universo está cheio de acontecimentos sem causa e que é fundamentalmente indeterminista. No entanto, este aspecto tão fundamental escapou por completo a vinte e tal séculos de argumentação teológica. A sua descoberta deveu-se ao método da ciência moderna, em dois ou três séculos, juntamente com uma imensidão de outros detalhes e revelações profundas acerca da natureza da matéria, do espaço-tempo e até da consciência humana. Claramente, há uma grande diferença entre procurar a verdade e correr atrás a inventar desculpas.

Eu proponho ao Alfredo e restantes teólogos que a procura por respostas exige a disposição para rejeitar qualquer hipótese em favor de alternativas mais promissoras. Enquanto os teólogos se agarrarem às mesmas hipóteses acerca do seu hipotético deus não poderão fazer mais do que argumentar em círculos, tentando em vão resolver “problemas” que são unicamente fruto de partir das premissas erradas. Em vez de tentar “compreender” como é que o hipotético criador causa acontecimentos sem causa, seria mais produtivo considerar a hipótese de não haver tal criador sequer. Afinal, se admitimos que algo pode acontecer sem ser causado ou determinado por algo que o preceda, deixa de ser necessário postular um deus para explicar como o universo surgiu. E a história dos últimos séculos revela claramente que o avanço no conhecimento é muito mais rápido e fiável quando se abandona esse postulado.

1- Alfredo Dinis, II Jornadas Fé e Ciência: Deus, Acaso e Determinismo
2- Alfredo Dinis, Deus, acaso e determinismo
Também no Que Treta!

25 de Setembro, 2011 Ludwig Krippahl

Humpty & Dumpty.

O Jairo Filipe atribuiu-me este argumento de palha, que depois se entreteve a refutar:

«1. Só aceito algo como verdadeiro se tiver provas disso.
2. Não é possível provar uma negativa, por isso o ónus é de quem afirma que Deus existe.
3. Não existem provas da existência de Deus.
Logo sou ateu!»
(1)

Entretanto, o Orlando Braga alegou que «Estas premissas foram escritas em um blogue ateísta conduzido por professores universitários portugueses» apesar de admitir «Eu não frequento nem leio nada do tal blogue ateísta»(2), divagando de seguida por metafísicas que nada têm que ver com o que eu argumento. Esta atitude de deturpar, ou de nem sequer ler, os argumentos que pretendem refutar não merece muito respeito. Mas como as pessoas para quem eu escrevo não são Jairos nem Orlandos, aqui fica um esclarecimento, caso interesse a alguém.

A primeira premissa engana porque o termo “provas” conota algo de definitivo. As provas do crime, provas matemáticas e assim por diante. O critério mais importante para mim não é esse (3). Como o próprio Jairo cita, sem perceber, «Acredito em proposições que passem as provas». Ou seja, não que estejam provadas mas que sejam postas à prova. Enquanto passarem os testes merecem alguma credibilidade. E isto não é uma premissa. É consequência de premissas mais consensuais: se uma proposição não pode ser posta à prova, nem podemos saber se é verdadeira nem a podemos distinguir de infinitas alternativas inconsistentes e impossíveis de testar. Por exemplo, a proposição de que existe exactamente um deus indetectável é inconsistente com a proposição de que existem dois, ou três, etc, e nenhuma delas pode ser posta à prova. Eu rejeito como falsa qualquer proposição que não possa ser testada porque ser verdadeira ou falsa não fará diferença e porque há infinitas alternativas impossíveis de distinguir, sendo praticamente nula a probabilidade de escolher a certa.

A segunda premissa é um disparate. Qualquer proposição pode ser enunciada de forma positiva ou negativa. Por exemplo, “Deus não existe” é logicamente equivalente a “Tudo o que existe é diferente de Deus”. Novamente, o Jairo cita-me sem perceber o que transcreve: «uma proposição da forma “X existe” tende a ser menos plausível, à falta de evidências para a existência de X, do que a sua negação», não por “não se provar uma negativa” mas porque afirmar que algo existe é afirmar que um objecto real tem um conjunto de propriedades. Por exemplo, afirmar “existe uma montanha feita de ouro” é dizer que, entre os objectos que fazem parte da realidade, pelo menos um tem as propriedades de ser montanha e ser de ouro. Por isso, uma proposição do tipo “X existe” é, na verdade, uma conjunção de proposições acerca das propriedades desse objecto X. E quanto mais propriedades se alega, sem fundamento, menos plausível se torna a sua conjunção. É extremamente improvável que, sem evidências sólidas para cada alegação, seja verdade uma conjunção de proposições como “é omnisciente, e omnipotente, e benevolente, e encarnou em Jesus, e nasceu de uma virgem, e morreu pelos nossos pecados” e assim por diante. Aceitar a alegação de que o deus de uma religião existe implica acreditar que os adeptos dessa religião conseguem acertar em todas as propriedades que enunciam. Dado o número de alegações que proferem e a falta de evidências que as suportem, o mais provável é que tenham engatado alguma coisa (4).

Finalmente, «Não existem provas da existência de Deus». Nas teologias mais abstractas é tese comum que a hipótese de Deus existir não pode ser posta à prova. Se assim fosse, então não poderia haver quaisquer indícios da existência desse deus e, pelas razões que expus acima, justificava-se descartar essa hipótese. No entanto, esta tese não é correcta. A hipótese de existir um ser omnisciente, omnipotente e perfeitamente bom, por exemplo, implica restrições ao que se espera observar, restrições essas que servem para testar a hipótese. A teologia cristã até reconhece este problema dos dados mostrarem haver muita maldade e sofrimento quando a hipótese do universo ser governado por uma bondade perfeita prevê precisamente o contrário. Os teólogos chamam-lhe “problema do mal”, uma designação incorrecta porque, quando os dados e a hipótese são inconsistentes, o problema será provavelmente da hipótese. Assim, o mais correcto seria chamar-lhe o problema da hipótese de Deus não ser consistente com o que vemos todos os dias à nossa volta. O que dá uma boa razão para procurar hipóteses alternativas que encaixem melhor no que sabemos.

O Jairo refuta o argumento que ele inventou apontando inconsistências entre disparates que tirou do chapéu, enquanto o Orlando, nem se incomodando em ler o que eu escrevi, divaga sobre a metafísica que não tem nada que ver com o assunto. O que me dá a desculpa para esclarecer mais um ponto. É comum alegarem que este raciocínio não se aplica porque o deus é metafísico, transcendente, não é do domínio empírico, não é causa entre causas ou ser entre seres e desculpas afins. Mas nada disso é relevante. A abordagem que proponho é válida para quaisquer hipóteses acerca dos factos, independentemente dessas classificações. Se a hipótese não pode ser posta à prova, então tem de ficar no caixote com a infinidade de outras hipóteses que estão na mesma situação. E se pode ser testada, então só merece crédito na medida em que passar nos testes e nunca se for inconsistente com os dados. Não encontrei ainda qualquer religião cujas hipóteses centrais merecessem tal crédito, e é por isso que sou ateu.

1- Jairo Filipe, Neo-Ateísmo, a Treta. Parte II
2- Orlando Braga, Caros ateístas: a negação de uma metafísica é sempre uma metafísica!
3- Como já escrevi há uns anos, em Provado cientificamente.
4- Quanto ao ónus da prova, esse já foi treta da semana há uns tempos.

Em simultâneo no Que Treta!.

23 de Setembro, 2011 Ludwig Krippahl

Converter ou conversar.

É prática comum das religiões, comum e assumida, tentar converter as pessoas. Seja a espalhar a boa nova, ganhar fiéis, prometer paraísos ou salvar almas, fazem virtude de moldar as crenças alheias. E muitos adeptos das religiões dizem que cientistas, ateus, cépticos e professores fazem o mesmo. Basicamente, que toda a gente tenta converter os outros. Mas isto confunde duas atitudes diferentes, quer nos objectivos quer nos mecanismos a que recorrem.

Quando explico porque julgo não existirem deuses tento dar razões consensuais de onde se possa chegar a essa conclusão. O objectivo disto é tornar clara a minha posição, e o seu fundamento, para que cada um avalie se tem mérito ou não. Se alguém se tornar ateu ao ler o que escrevo será porque mudou a sua própria opinião, e não porque eu o converti. Os religiosos dirão que também fazem isto, que também apresentam razões e argumentos racionais. Têm razão. Nem todos o fazem, mas admito que alguns tentam. A diferença está no que fazem para além disto. Por exemplo, na educação das crianças.

Se os meus filhos me perguntam o que eu penso das religiões, sou sincero e apresento os argumentos que julgo mais sólidos. No entanto, quando eles dizem que também são ateus como o pai, digo-lhes que aos dez anos ainda é cedo para decidirem isso, que têm ainda muito que aprender e pensar sobre o assunto antes de perceberem bem o problema e essa solução. Quando se espantaram por eu ler a Bíblia expliquei-lhes que, independentemente do aspecto religioso, é uma obra culturalmente importante. E quando começaram a fazer perguntas sobre estes assuntos comprei uns livros sobre religiões e mitologia e fui-lhes mostrando de tudo um pouco, dos deuses gregos ao islão e do cristianismo ao criacionismo dos nativos norte-americanos. Admito ser provável que, com esta abordagem, acabem ateus como o pai. Mas isso é porque nenhuma religião tem um fundamento tão sólido como o do ateísmo, e não por eu vedar aos meus filhos o acesso a opiniões contrárias à minha. O mais importante é que tenham a capacidade de encontrar a informação de que precisam e de decidirem por eles próprios.

A educação dos filhos de religiosos tende a ser diferente. Logo depois de nascer dão-lhes a religião dos pais. Crianças que nem sequer sabem falar e já são católicas, judias ou muçulmanas. Nas escolas, desde a disciplina de religião e moral até à educação sexual, o que mais preocupa as religiões é evitar que as crianças aprendam “o que não devem”, como se a ignorância selectiva fosse o mesmo que a educação. E até na universidade. Há dias, a Universidade Católica decidiu, à última hora, não contratar um professor de filosofia que já sido tinha seleccionado, notificado da selecção e a quem até já tinham atribuído o serviço docente. Apesar de ser católico, parece que tinha ideias prejudiciais para os alunos (1). Por mim, e penso que muitos ateus concordariam, a educação religiosa devia ser igual para todos e focar os factos consensuais acerca das religiões: os cristãos acreditam nisto, os muçulmanos naquilo, os budistas naqueloutro, e os ateus vivem bem sem essas coisas. Cada um depois que decidisse por si, ao longo da vida. Mas nenhuma religião aceitaria isto porque, em vez de educar as crianças, o que querem é afunilar-lhes o caminho para o curral predestinado.

A argumentação religiosa também vai muito além de razões consensuais, alegações fundamentadas e inferências válidas. Ou seja, sai do âmbito da persuasão racional. Quando um padre católico afirma saber que eu vou ter uma vida eterna depois da morte e que o criador do universo encarnou em Jesus para me salvar está a invocar uma falsa autoridade porque, em rigor, não tem como saber isto. Especula, crê, mas não sabe. Quando um cristão afirma que só acreditando em Jesus posso ser eternamente feliz mas se rejeitar o cristianismo sofrerei para sempre está a apelar a consequências (dúbias) para suportar alegações de factos. Isto são falácias, visando persuadir pelo engano, medo ou desejo em vez de pela razão.

Há uma grande diferença entre converter e conversar. Um diálogo racional pretende tornar o raciocínio tão claro quanto possível para que se possa avaliar o seu mérito e decidir, pela força das razões, se a conclusão é aceitável ou se alternativa com mais fundamento. O meio para atingir esse fim é procurando razões consensuais e abrindo caminho com inferências válidas. O objectivo da conversão é diferente. A conclusão está dada à partida, e o objectivo é operar no outro as mudanças necessárias para que adopte essa opinião. E para isso vale tudo. Pode-se começar a catequese logo na infância, para decidir pelo convertido antes que ele o possa fazer por si. Depois, filtra-se o acesso à informação para que não descubra hipóteses alternativas e incute-se o dever de acreditar mesmo contra os factos: a fé. No meio disto vai-se apelando falaciosamente para autoridades ou consequências fictícias de modo a dificultar a análise racional e deixar a parte mais emotiva cimentar a opinião.

Nas discussões em blogs, ateus e religiosos fazem fundamentalmente o mesmo. Melhor ou pior, tentam argumentar racionalmente pelas suas conclusões. Nesse contexto as alegações de infalibilidade, as ameaças ou promessas para uma vida futura e afins têm pouca relevância. Mas quando consideramos o que se passa na nossa sociedade, em geral, há uma grande diferença entre o que o ateísmo faz para expor e defender a sua posição e o que fazem as religiões para angariar e manter fiéis.

1- Porfírio Silva, Uma história pouco católica.

Também no Que Treta!

12 de Setembro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: ele é o quê?

Explica o Anselmo Borges que a religião «em sentido estrito […] refere-se ao pólo subjectivo, isto é, ao movimento de transcendimento e entrega confiada a uma realidade sagrada, que é o pólo objectivo – o Sagrado ou Mistério. O religioso diferencia-se, pois, do profano, já que indica o modo concreto e peculiar de assumir a existência na perspectiva do Sagrado.»(1) Ultrapassando a terminologia desnecessariamente rebuscada, até aceito a ideia. O crente religioso é aquele que assume haver algo de sagrado. Tudo bem.

Mas, logo a seguir, «Todas as religiões têm em comum o facto de estarem referidas a um âmbito de realidade que é o Sagrado, e são um sistema organizado de mediações – crenças, práticas, símbolos, lugares… – nas quais o Homem religioso exprime o seu reconhecimento, adoração, entrega à Transcendência enquanto fonte de sentido e salvação.» Ora aí está. Afinal, a religião não é o movimento de entrega da pessoa, àquilo que considera sagrado, mas sim «um sistema organizado de mediações». Isto é diferente e muito mais problemático. Eis porquê:

«A religião enquadra-se na experiência radical de dependência, implicando um núcleo com esses dois pólos: um pólo objectivo, constituído pela presença de uma realidade superior de que se depende, e um pólo subjectivo, que consiste na atitude de reconhecimento dessa realidade por parte do ser humano.»

O problema é que esse pólo objectivo, «aquele âmbito de realidade que se traduz por termos como “o invisível”, “a ultimidade”, “a verdadeira fonte do valor e sentido últimos”, “a realidade autêntica”», não está directamente acessível ao crente. Porque, se estivesse, não era preciso mediação nenhuma. E nem é evidente que esse “pólo objectivo” seja realidade. Toda a informação que o crente recebe acerca dessa “ultimidade invisível” provém de “sistemas organizados de mediação” como aquele ao qual o Anselmo Borges pertence. E cada um desses “sistemas organizados de mediação” descreve a “realidade autêntica” de forma diferente e inconsistente com as descrições dos outros.

O resultado é que a “experiência radical de dependência” do crente não é do tal “pólo objectivo” mas apenas dos “sistemas organizados de mediação” que, independentemente de existir ou não alguma “ultimidade” e “verdadeira fonte do valor e sentido últimos”, acabam por ser uma ferramenta jeitosa para tomar conta da vida de quem decida depender deles radicalmente.

Além da forma do texto, o conteúdo também ilustra a fraqueza e inconsistência desta apologia religiosa. Apresenta a religião como uma relação pessoal com o sagrado e, ao mesmo tempo, como sendo a organização que medeia essa relação, tentando o feito impossível de justificar a autoridade eclesiástica sobre as crenças das pessoas com o direito de cada um ter a crença que quiser.

O objectivo também é inconsistente. «[P]ara a sua compreensão adequada, a realidade mesma aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê». No entanto, essa presença é «o Sagrado ou Mistério», que é precisamente o oposto da compreensão.

E o processo também é inconsistente. «O homem religioso faz a experiência do Sagrado ou Mistério enquanto Presença originante e doadora de toda a realidade», mas esse aspecto da realidade é proposto como estando além da «imediatidade empírica». Ou seja, fora daquilo que pode ser parte da experiência.

Há pessoas que acreditam que os deuses são mesmo pessoas, têm manias, fazem coisas e são alguém a quem se pode pedir favores ou com quem se pode trocar promessas por milagres. Os teólogos “sofisticados” torcem o nariz a isto mas, ao menos, essas superstições até fazem sentido. As premissas são falsas, mas o raciocínio não se contorce por tantas contradições. A teologia “sofisticada” nem consistência tem, e os teólogos até apregoam as contradições, «ao mesmo tempo absolutamente transcendente e radicalmente imanente», como se fossem uma coisa boa. Não são. São apenas sinal de que já disparataram por completo.

1- Anselmo Borges, DN, Que se entende por religião?

Em simultâneo no Que Treta!

9 de Setembro, 2011 Ludwig Krippahl

Parcimónia.

É possível que o Elvis esteja vivo, que as pirâmides tenham sido construídas por extraterrestres e que ocorram curas milagrosas. Não há qualquer contradição lógica que permita rejeitar categoricamente estas hipóteses. No entanto, não basta ser possível para se concluir que é verdade. Também é possível que o Elvis não esteja vivo, que as pirâmides não tenham sido construídas por extraterrestres e que ninguém se cure por milagre, pelo que aceitar uma alegação como verdadeira apenas por ser possível obriga a aceitar uma imensidão de hipóteses inconsistentes entre si.

Um primeiro passo é considerar as evidências, mas mesmo isso não resolve imediatamente o problema. Temos a certidão de óbito do Elvis, relatos históricos da construção das pirâmides e explicações médicas para muitas curas, mas é sempre possível conciliar qualquer hipótese com qualquer conjunto de dados invocando hipóteses auxiliares. Por exemplo, que a certidão de óbito foi falsificada por conspiradores, que os relatos da construção das pirâmides são parte do plano dos extraterrestres para esconder a sua presença e que tudo o que a medicina não sabe explicar é necessariamente milagre.

Portanto, mesmo dispondo de dados concretos, ainda é necessário critérios que permitam avaliar a verdade de uma alegação sem ficar soterrado numa derrocada de hipóteses inconsistentes. Além de factores como a fiabilidade dos dados, da fonte da alegação e das suas motivações, há um critério fundamental para lidar com o excesso de hipóteses possíveis. A parcimónia. Ou seja, preferir aquelas hipóteses que se adequam aos dados com o mínimo de hipóteses auxiliares sem fundamento independente.

É importante perceber que a parcimónia não é simplesmente a preferência pela hipótese mais simples. O objectivo deste critério é evitar a explosão de hipóteses que se pode compatibilizar com os dados por mera especulação, como teorias da conspiração, mistérios e afins. Por isso, o que importa é considerar a alegação enquadrada na rede de hipóteses auxiliares de que precisa. Por exemplo, alguém diz ter visto pardais em Lisboa. Aceitar esta alegação implica aceitar a hipótese auxiliar de haver pardais em Lisboa. Por outro lado, rejeitar esta alegação implica aceitar a hipótese auxiliar de que essa pessoa está enganada ou a mentir. Na ausência de indícios de que essa pessoa seja mentirosa ou incompetente para identificar pardais (e.g. ser invisual ou não saber o que são pardais), a primeira alternativa é preferível porque temos suporte independente para a hipótese de haver pardais em Lisboa. Em contraste, se a alegação fosse de ter visto um brontossauro, o principio da parcimónia recomendaria rejeitá-la como falsa porque há mais suporte independente para a hipótese da pessoa estar enganada ou a enganar do que para a hipótese de haver brontossauros em Lisboa. Considerando as alegações no contexto das hipóteses auxiliares que exigem é fácil ver, nestes casos, qual a alternativa mais parcimoniosa.

Isto vem a propósito de duas discussões paralelas num post recente. A Miriam Levi tem defendido, se bem percebo, a possibilidade de culturas antigas, como a dos maias ou a dos chineses de há dois mil anos, terem muito mais conhecimento do que aquilo que nós julgamos que tinham, ou até ter muito conhecimento que nós já não temos. «Por exemplo, os chineses sentem a pulsação no pulso (nos dois), são capazes de diagnosticar de forma bastante precisa. Infelizmente preferimos gastar muito dinheiro em testes químicos, invasivos ou ressonâncias atómicas que podem queimar ou favorecer o aparecimento de tumores…»(1). O problema é que a possibilidade dessas coisas funcionarem não basta para concluir que funcionam. Sem evidências concretas de que sentir o pulso pode substituir a ressonância magnética ou a TAC, a hipótese mais plausível, pelo critério da parcimónia, é que isto é só conversa.

A outra foi uma pergunta, crítica e desabafo do Carlos Soares, escrevendo de mim que «Critica a bíblia e o cristianismo, que são bastiões da [ciência], do método científico, da rejeição da superstição e da idolatria… Como é possível? Que é que tem contra os cristãos?»(1). Não tenho nada contra os cristãos, mas o critério da parcimónia leva-me a rejeitar o que esta religião alega. A alegação de que o universo foi criado por alguém inteligente implica haver um processo que permita tal criação e implica ser inteligente criar um universo destes, com milhares de milhões de anos e uma imensidão vazia totalmente hostil à vida excepto em pontinhos como este planeta. A alternativa, de tudo isto ser fruto de processos naturais sem inteligência, implica que tem de haver tais processos e, se bem que não seja mais simples por si, essas hipóteses auxiliares estão bem fundamentadas pela ciência moderna. Não sabemos tudo o que ocorreu desde o início do universo até à evolução da nossa espécie, mas sabemos muito acerca da maior parte do percurso. E se considerarmos as alegações adicionais que cada religião acrescenta, acerca do número de pessoas na substância divina, dos livros sagrados, das encarnações e preceitos morais, o que temos é precisamente a tal derrocada de hipóteses infundadas da qual só a parcimónia nos safa.

É possível que os cristãos tenham razão. É possível que as medicinas especulativas sejam melhores do que a medicina experimental. E é possível que o Elvis esteja vivo. Mas ser possível não basta e, pelo que sabemos, o mais certo é nenhuma destas ser verdade.

1- Comentários em Hepatoscopia

Em simultâneo no Que Treta!

4 de Setembro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: hepatoscopia.

A imagem abaixo mostra dois diagramas de fígado de carneiro. Os babilónios desenvolveram a prática de prever o futuro pelo fígado dos animais. Os etruscos chamaram haruspices a estes rituais, o que ficou auspices em Latim. Os babilónios catalogaram detalhadamente que pedacitos de fígado correspondiam a que divindades ou acontecimentos e ensinavam-no como parte da formação dos seus sacerdotes. Era uma tecnologia usada ao mais alto nível, até vedada ao povo comum, de tão poderosa que a julgavam ser.


Fígado

Diagramas de fígado de carneiro. À esquerda, da Babilónia, em barro (Archeolog) e à direita, uma variante etrusca, em bronze (Wikipedia).

No entanto, apesar do detalhe que nos chegou por diagramas como estes e relatos desta prática, ninguém se preocupou em explicar como é que descobriram isto. Nem babilónios, nem etruscos, nem romanos. O que é pena, porque o fundamental deste suposto conhecimento é precisamente a forma como os primeiros praticantes da arte teriam encontrado o pedaço de fígado correcto para cada deus. Como qualquer livro, história ou relato, estes diagramas só seriam conhecimento se houvesse uma relação evidente entre o seu conteúdo e os aspectos da realidade que pretendem descrever. Sem isto, não passam de uma curiosidade histórica.

Este problema não afecta apenas o fígado. Passa-se o mesmo com a astrologia, com o tarot, com as medicinas alternativas e toda a superstição em geral. Escreve-se resmas de papel descrevendo as energias positivas, os efeitos das constelações e o que cada carta prevê, mas ler isto é como ler o futuro no fígado do carneiro.

E é o que se passa com as religiões e as teologias. Alguns religiosos dirão que não, que a religião é acerca do sentido, do transcendente e coisas que não têm nada que ver com isto. Mas há dois problemas com este argumento.

O primeiro é que, historicamente, estas artes divinatórias eram religião. Eram os sacerdotes que praticavam astrologia, que previam o futuro nas entranhas dos animais e que sacrificavam animais e prisioneiros para apaziguar os deuses. A praticamente tudo o que chamamos superstição já houve quem chamasse religião. Em muitos casos, ainda há. E não há forma objectiva de distinguir entre as práticas que se reconhece religiosas e as que consideramos superstição. Como ouvi uma vez um antropólogo dizer a superstição é a religião dos outros.

Mas o segundo problema é o mais fundamental. Todas as religiões têm o equivalente aos diagramas dos fígados. Os livros sagrados, os dogmas, as alegações acerca do que é que cada deus quer, de quem era virgem, quem ressuscitou, quem recebeu ordens de um anjo, e assim por diante. E têm o equivalente aos videntes que interpretavam os fígados. Os sacerdotes, os teólogos, os peritos naquilo que, no fundo, não pode ser conhecimento por ser apenas alegações às quais falta evidências de corresponderem ao que pretendem representar.

É por isso que é tão importante perguntar como é que sabem o que dizem saber. Se perguntarem a um físico como sabe a idade das estrelas, ou a um bioquímico como sabe a estrutura do ADN, eles explicam com o detalhe que quiserem. Mais detalhe do que quiserem, provavelmente. O conhecimento é essa ligação entre as descrições e aquilo que estas descrevem, um encadeado de dados e inferências que se pode apreender e compreender. Sem mistérios insondáveis, sem saltos de fé, sem fontes autoritárias, poderes especiais ou revelações divinas.

Para conhecimento não basta apenas uma lista de alegações acerca da realidade. Para se saber é preciso também conseguir fundamentar essas alegações. Não pela fé mas, tal como a realidade, com algo que resista à dúvida. O resto é inventar deuses no fígado do carneiro.

Em simultâneo no Que Treta!

27 de Agosto, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: com isso não se brinca!

Já ouvi dizer muitas vezes que há coisas das quais não se pode troçar, supostamente por serem sérias. A nação, a religião, o clube de futebol, a verruga no nariz, o que calhar. No seu post desta semana, o João César das Neves critica o Jon Stewart, o anfitrião do excelente Daily Show, precisamente pelo «perigo da atitude» de brincar com coisas sérias. Esclarece que «Podem tratar-se coisas sérias fingindo brincar», mas são se for para rir com gosto, porque «é tão perigoso brincar com coisas sérias.» (1). Parece-me que o João tem alguma dificuldade com o humor.

Dois amigos andam à caça quando um, subitamente, desfalece. O outro telefona para o 112.
– Está? É o meu amigo… agarrou-se ao peito, caiu no chão e não está a respirar. Acho que está morto!
– Tenha calma. Primeiro, temos de ter a certeza…
Ouve-se um tiro.
– Pronto. E agora, o que faço?*

Para apreciar o humor é preciso ter capacidade para mudar de perspectiva, percebendo as coisas de uma forma contrária à pré-concebida e, igualmente importante, ter prazer em fazê-lo. A maior parte das pessoas consegue, em teoria, imaginar o que seria ver as coisas de outra forma. Mas, para muita gente, há situações em que fazê-lo é quase doloroso. São essas pessoas que dizem que não se brinca com coisas sérias, as tais em que lhes custa contemplar uma mudança de ideias.

É por isso que o João César das Neves diz que podemos criticar fingindo brincar mas, com “coisas sérias”, o gozo tem de ser fingido. Nesses casos, dói tentar pensar de outra forma, mudar de perspectiva ou largar os preconceitos, pelo que só se pode dar um esgar sofrido e não um sorriso com gosto. Daí a dificuldade que pessoas como o João César das Neves têm em aceitar o humor nessas situações. E, suspeito, é também por isto que há tão poucos cómicos de sucesso que são crentes religiosos. A religião é, por excelência, uma “coisa séria”, onde se treina desde criança a temer a possibilidade de mudar de ideias.

O defeito desta relutância é que a capacidade de ver as coisas de outra perspectiva é uma ferramenta fundamental para resolver problemas, porque permite procurar alternativas, corrigir erros, tomar boas decisões e avaliar correctamente as situações. Principalmente quando o problema é sério. Quem se mantém disposto a rir mesmo com coisas sérias não só demonstra esta capacidade como também a disposição para se servir dela. E isto é bom, dá-nos jeito a todos e devemos praticá-lo com frequência para nunca perder o hábito. Não é por acaso que os xenófobos, nacionalistas, hooligans e fanáticos têm, geralmente, um sentido de humor bastante pobre.

Por exemplo:

Eu sou fã do Dawkins, acho que os problemas que ele aborda são sérios e, para mim, o cepticismo é uma coisa importante. Também não me parece que a motivação dele para escrever seja esta que o sketch dá a entender. Mas não só me dá gozo ver, por uns momentos, as coisas desta perspectiva – mesmo sabendo que não é verdade – como acho útil ser capaz de considerar esta possibilidade. Não se aplica aqui, mas talvez se aplique noutros casos.

O humor é brincadeira, mas é também um teste importante da nossa capacidade de nos colocarmos fora dos nossos preconceitos, hábitos e tabus. Se gozar com uma coisa nos custa, se não conseguimos rir por nos parecer “coisa séria”, então não estamos preparados para lidar com o assunto de forma objectiva e imparcial. Só para concluir, deixo mais este. Tentem adivinhar o tipo de pessoa que não achará graça a isto.

* Segundo os inquéritos do Richard Wiseman, esta é a piada mais engraçada do mundo, originalmente do Goon Show. Infelizmente, não encontrei uma expressão em português tão ambígua como o “let´s make sure he’s dead” original.

1- DN, O poder de Jon Stewart

Em simultâneo no Que Treta!

26 de Agosto, 2011 Ludwig Krippahl

E o método, pá?

Hoje em dia é desconfortável uma religião admitir conflitos com a ciência. Por isso, muitos religiosos se esforçam para disfarçar a incompatibilidade entre as duas abordagens. O Miguel Panão, por exemplo, citando John Haught, aponta que o problema é «a crença num âmbito explanatório ilimitado da ciência»(1), enquanto o Alfredo Dinis alega não haver conflito porque «a ciência não consegue demonstrar que Deus não existe, a fé também não consegue provar o contrário»(2). Nada disto é relevante. O que o Alfredo aponta é trivialmente verdadeiro para uma infinidade de coisas, como os mafaguinhos, o Pai Natal e um bule em órbita entre a Terra e Marte. E se bem que não se saiba se é possível explicar tudo, sabe-se que, para explicarmos alguma coisa, precisamos de um argumento sólido de onde a possamos inferir. Precisamos de premissas que possamos confirmar independentemente e de um raciocínio válido que nos conduza ao que queremos explicar. E isso a fé não dá.

A teoria da evolução é uma boa explicação. As premissas são fáceis de confirmar: os organismos herdam características dos seus antepassados, reproduzem-se e o sucesso reprodutivo depende, em parte, das características herdadas. E disto podemos inferir os mecanismos que vão moldando a distribuição de características nas populações ao longo das gerações. Para casos mais concretos podemos detalhar as premissas por observação e chegar a conclusões muito específicas. Em contraste, a hipótese de que Deus criou tudo não explica nada. Fica pendurada, sem fundamento, e dela nada se pode concluir. Não explica porque é que as mitocôndrias têm ADN, porque é que a retina dos vertebrados está ao contrário da dos invertebrados ou porque é que as bactérias adquirem resistência aos antibióticos. Não explica nada, nem se justifica crer que é verdade. No entanto, é nisso que os religiosos crêem.

E o fundamental na ciência nem sequer é o conjunto de explicações que se adopta num dado instante. É o método para as avaliar, sempre a título provisório, pelos dados disponíveis. Nisto, o conflito com a religião é óbvio. Segundo o Anselmo Borges, «Deus não é objecto de ciência […] Deus é objecto de fé e há razões para acreditar como há razões para não acreditar.»(3) Isto assume implicitamente que Deus existe, que não é mera fantasia ou termo sem sentido, e considera apenas a fé e a crença. Mas se as pessoas acreditam ou não é lá com elas, e a fé é o que cada um quiser. A questão objectiva é se a hipótese de Deus existir é factualmente correcta e, para chegar a uma conclusão fundamentada acerca disto, é preciso seguir o tal método: formular a hipótese de forma a poder ser testada, confrontá-la com alternativas e com os dados e, com base nas evidências disponíveis, aceitá-la como verdadeira, provisoriamente, apenas se o seu desempenho for nitidamente superior ao das restantes. Concluir que um deus existe porque se tem fé é atirar a ciência pela janela.

O Bernardo Mota vai dar um curso sobre “Ciência e Fé”(4), que aproveito para divulgar, para pedir que ele depois disponibilize a gravação das aulas e para sugerir que aborde o problema como ele é. O Bernardo também defende que não há conflito entre ciência e religião e gosta de apresentar o exemplo de Galileu na tentativa de ilustrar isto. Galileu disse que nem tudo orbitava a Terra, pela observação das luas de Júpiter. Se isto se podia considerar evidência conclusiva é discutível, e é aceitável, cientificamente, que houvesse alguma relutância em aceitar de imediato o heliocentrismo só por causa disto. Mas o que fizeram foi prender Galileu e ameaçá-lo para o obrigar a negar o que as evidências lhe diziam. Cientificamente, mesmo que Galileu fosse parvo e não tivesse razão nenhuma, mesmo assim isto não se faz. Se os doutores da Igreja lhe tivessem feito perguntas tramadas, publicado refutações ou até feito comentários sarcásticos, eu concordava com o Bernardo. Mas não vejo maior conflito com o método da ciência do que mandar prender quem defende hipóteses com as quais se discorda.

O que os apologistas do está tudo bem sistematicamente esquecem é que a ciência não é um pacote de hipóteses que possam isolar das suas fés alegando não haver lá nada acerca do seu deus preferido. A ciência é o melhor método que conhecemos para encontrar a verdade, porque exige hipóteses explícitas com consequências claras, exige o confronto de hipóteses alternativas e corrige os erros quando dados novos o permitem. Afirmar que um deus existe porque se tem fé e porque é impossível provar que não existe é contrário e este método, porque está bem estabelecido, cientificamente, que a fé não é um indicador fiável da verdade de hipóteses factuais e que ser impossível de refutar, quaisquer que sejam os dados, apenas mostra que a hipótese foi mal formulada.

Gostava que o Bernardo, no seu curso, e os apologistas do tal “diálogo”, encarassem o problema verdadeiro em vez de inventar espantalhos. Gostava que explicassem como é que o seu método de concluir coisas pela fé e pelo “não se prova o contrário” pode ser compatível com o método a que chamamos ciência. É claro que também gostava de ganhar o Euromilhões, benesse com a qual não conto e que, mesmo sem jogar, ainda me parece a mais provável das duas.

1- Miguel Panão, Método científico contradiz Cristianismo?, mas ver comentários acerca da tradução da expressão original.
2- I Online, Ciência e religião. Afinal o diálogo é possível
3- DN (2009), Darwin e a religião
4- Bernardo Motta, Curso “Ciência e Fé”

Em simultâneo no Que Treta!

24 de Agosto, 2011 Ludwig Krippahl

Cinco pontos para Gryffindor!

A Penitenciaria Apostólica, em resposta à «súplica de Sua Eminência Reverendíssima Antonio María Rouco Varela, Cardeal Arcebispo de Madrid […], foi dotada de faculdades especiais para conceder, mediante o presente Decreto, o dom da Indulgência, segundo a mente do próprio Pontífice, como segue: Concede-se a Indulgência plenária aos fiéis que devotamente participarem em qualquer função sacra ou exercício piedoso a realizar-se em Madrid durante a “XXVI Jornada Mundial da Juventude”»(1)

Na economia católica da culpa, o pecado, quando devidamente arrependido e confessado a um sacerdote credenciado, é perdoado. Fica o pecador, por este meio, livre do sofrimento eterno a que se sujeitaria por ter pensado em malandrices com a mulher do vizinho, ou coisa do género. No entanto, fica ainda obrigado ao pagamento de uma multa em dias no purgatório. Sabe-se lá porquê. É daqueles mistérios que, por mero acaso, se revelam muito convenientes para os religiosos profissionais que gerem estas coisas.

É aí que entram as indulgências, que podem ser obtidas de várias maneiras, como usando bijutaria abençoada, jejuando, recitando orações e outras ladaínhas ou pela «visita ao Santíssimo Sacramento durante pelo menos 30 minutos»(2). Antigamente também se podia comprar indulgências mas, agora, em ocasiões festivas, a Penitenciaria Apostólica, via dom concedido pelo Papa, dá-as de borla. A utilidade da indulgência é descontar ao tempo que a alma do pecador teria de ficar em espera no purgatório. Será algo como telefonar à pessoa amiga que trabalha na secretaria para dar o jeitinho de pôr o nosso processo à frente.

Duas coisas intrigantes nisto são, como sempre, o mecanismo e as evidências. Não é claro como isto funciona. Obviamente, ninguém pode levar o voucher para o purgatório ou redimir o código de oferta no site de São Pedro. Deve haver algum processo mágico tal que, assim que a Penitenciaria proclama “menos três dias para fulano de tal!” automaticamente o contador é actualizado no purgatório. Também é intrigante como é que a Penitenciaria sabe que isto funciona. Ao que parece, ninguém voltou de lá para lhes garantir que sim senhor, as indulgencias plenárias funcionam mesmo em pleno, e até as parciais dão um jeitão. A falta de confirmação cabal deixa em aberto a desagradável possibilidade de, depois deste trabalho todo, chegarem as pessoas ao purgatório e o encarregado dizer não senhor, ficam aqui os dias todos porque os pedidos de indulgência só são considerados se entregues no formulário A23, em triplicado, e dentro dos prazos vigentes.

Pode parecer exagero andar a implicar com estas coisas que, admito, são mais ridículas do que prejudiciais. Mas incomoda-me, de tão absurdo que é, que estes Bispos, homens já com idade para ter juízo, supostamente inteligentes e certamente cultos, se reúnam com o ar sério de quem trabalha para decretar descontos nos dias de purgatório aos jovens que foram a Madrid. Nem sei o que será pior, se a possibilidade de o fazerem por aldrabice ou se a possibilidade de acreditarem mesmo num disparate destes.

1- Vaticano, PENITENCIARIA APOSTÓLICA, MADRID, DECRETO. Obrigado ao Bruce pelo link e concomitante gargalhada.
2- Wikipedia, Indulgência. Vejam também aqui várias promoções e outros descontos de oportunidade.

Em simultâneo no Que Treta!

21 de Agosto, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: decida-se…

Segundo discursou Joseph Ratzinger recentemente em Espanha, «sabemos bem que fomos criados livres, à imagem de Deus, precisamente para ser protagonistas da busca da verdade e do bem, responsáveis pelas nossas ações e não meros executores cegos, colaboradores criativos com a tarefa de cultivar e embelezar a obra da criação. Deus quer um interlocutor responsável, alguém que possa dialogar com Ele e amá-Lo.»(1) Tirando o problema de, na verdade, não saberem isto – apenas acreditam, mas não há justificação objectiva para considerá-lo conhecimento – o conselho implícito parece-me bom. Temos de ser responsáveis, buscar a verdade e ter capacidade para dialogar. Infelizmente, Ratzinger trata também de contradizer estes conselhos.

Dialogar exige procurar razões em comum de onde se possa encetar um raciocínio partilhado. Se um afirma que a Terra é plana e o outro defende que é esférica, não pode ser esse o ponto de partida para uma conclusão. Terão de concordar primeiro acerca do que conta como evidências e se essas evidências existem de forma a suportar alguma das hipóteses. Fotografias tiradas de órbita ou a sombra que a Terra projecta na Lua durante um eclipse lunar, por exemplo. Só assim se pode ter um diálogo racional que ajude a resolver a divergência. No entanto, os católicos fazem como Ratzinger e presumem que «fomos criados livres, à imagem de Deus» é o ponto de partida. Recusam-se a apresentar evidências que possam suportar essa alegação e ainda afirmam que estas coisas são verdades impossíveis de testar, excluindo logo à partida a possibilidade de partilhar razões com quem não acredite nisto, o que impossibilita o diálogo. Se os católicos são bons a dialogar com o seu deus é apenas por se tratar de um monólogo.

Ratzinger critica também os «muitos que, julgando-se deuses, pensam que não têm necessidade de outras raízes nem de outros alicerces para além de si mesmo. Desejariam decidir, por si sós, o que é verdade ou não». Suspeito que a crítica se dirija a ateus como eu, o que é irónico visto não sermos nós quem se arroga infalível, em certas matérias, por alegada orientação divina. E isto contradiz directamente a sua exortação à procura da verdade. Só quem deseja decidir por si se algo é verdade ou não é que pode procurar a verdade. Quem, pelo contrário, delegar essa tarefa a terceiros, limitar-se-á a enfiar barretes.

Quer também Ratzinger que os jovens, e todos nós, sejamos «responsáveis pelas nossas ações e não meros executores cegos», o que é de louvar. Mas depois aponta o dedo a quem quer «decidir, por si […] o que é bom ou mau, justo ou injusto», e que, ao contrário das palavras que «instruem, sob alguns aspectos, a mente; as palavras de Jesus, ao invés, têm de chegar ao coração, radicar-se nele e modelar a vida inteira». Considerando que as alegadas palavras de Jesus chegam por via de “testemunhado” e “interpretação” da parte de profissionais como o Ratzinger, o que ele está a recomendar é que sejamos eticamente responsáveis mas sem decidirmos o que é justo ou injusto e aceitando o que ele nos diz sem pensar muito no assunto. Isto é claramente contraditório.

Um artigo recente na Spiegel relata uma correlação significativa entre o secularismo e a ética, com os descrentes sendo mais tolerantes e tendo mais tendência a opor a discriminação, a guerra e a pena de morte do que os crentes no mesmo nível de educação e estrato social. O título do artigo pergunta se o secularismo torna as pessoas mais éticas (2), mas penso que, em grande parte, será o contrário. O que o Ratzinger propõe é uma contradição porque ninguém pode ser responsável nas suas decisões se delega a terceiros algo tão fundamental como distinguir o justo do injusto e o bom do mau. Bombistas suicidas e outros fanáticos fazem-no, convictos de cumprir a vontade do seu deus, mas quem se sente constrangido por considerações éticas não aceita facilmente a conversa dos alegados representantes divinos. E uma vez assumida a responsabilidade por estas decisões, a religião perde o seu papel fundamental, restando apenas o hábito e o medo de desiludir pais e avós. Para muitos isso não é suficiente para continuar adepto.

Segundo o Papa, e muitos bispos, o problema principal da Igreja é o ateísmo. Mas nas críticas ao ateísmo acaba por deixar a descoberto o verdadeiro problema do catolicismo. Dizem buscar a verdade mas abdicam da capacidade de determinar o que é verdadeiro e o que é falso. Dizem assumir responsabilidade ética mas delegam a responsabilidade de decidir o que é bom e o que é mau. E dizem querer dialogar mas não reconhecem a necessidade de justificar as suas premissas de forma que os outros as possam aceitar. O maior inimigo da Igreja católica não é o secularismo. É o catolicismo.

1- Canção Nova, Discurso do Papa na Festa de Acolhida dos jovens na JMJ 2011. Obrigado ao Ilídio Barros pelo link.
2- Spiegel Online, Does Secularism Make People More Ethical?. Já não me lembro onde vi isto primeiro, mas recentemente foi via o João Vasco no DA.

Em simultâneo no Que Treta!