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Ludwig Krippahl

26 de Fevereiro, 2012 Ludwig Krippahl

Razões, razão e ter razão.

A propósito da recorrente discussão acerca da fé e da razão, e se uma exclui a outra, pediram-me que escrevesse sobre o que eu entendo serem razões, razão e ter razão (1). Ora aqui vai.

As razões são os pontos de partida dos argumentos. Podem não vir no princípio da conversa, mas estão no início do raciocínio. Por exemplo, em “é melhor levar o guarda-chuva porque vai chover”, “vai chover” é o ponto de partida, de onde se infere a conclusão. E, para fundamentarem o argumento, as razões têm de apontar para a conclusão. Marte estar em Capricórnio não é uma boa razão para levar o guarda-chuva porque, tanto quanto saiba, uma coisa não tem nada que ver com a outra. As razões têm também de invocar algo que se imponha à nossa opinião e não seja mero fruto de uma decisão arbitrária. A chuva, por exemplo. Mas dizer que levo o guarda-chuva porque decidi levá-lo é começar o argumento a meio. Falta dizer o que me levou decidir assim. Exigir que as razões não sejam arbitrárias, que moldem as nossas escolhas em vez de se moldarem a estas, é necessário para distinguir entre razões e meras desculpas.

Além disto, se queremos partilhar raciocínios e persuadir de forma racional, as razões que apresentamos também têm de ser relevantes para os outros. Se eu despejar um balde de água no sofá justificando que o fiz porque me apeteceu, nem vou parecer racional nem convencer ninguém do mérito do acto. Apesar desse impulso estar no início do raciocínio, por não haver nada racional que o preceda, não é uma uma razão que outros aceitem. Mas se a razão for que o sofá estava a arder o argumento já será mais persuasivo. Essa já é uma razão para despejar água no sofá.

Noutro sentido, a razão é a capacidade de procurar e avaliar razões, de conduzir o raciocínio para onde estas indicam e, assim, de formar opiniões com um fundamento que se possa partilhar. É a característica do animal racional que, pelo menos quando a usamos, torna a nossa espécie exímia a colaborar para obter conhecimento, a encontrar consensos e a resolver divergências de forma produtiva e sem violência. Se a razão já é importante para cada um, individualmente, para a nossa coexistência é indispensável.

Quanto à fé, se eu disser que Deus não existe porque acredito, ou porque tenho fé, que não exista tal coisa, o argumento não será racional porque esta razão não cumpre os requisitos que as razões devem cumprir: a minha crença não pode ser o ponto inicial do argumento, porque tem de haver algo que me tenha levado a acreditar nisto em vez de acreditar no contrário; o que eu acredito não determina se Deus existe ou não; e acreditar que Deus não existe não é um ponto de partida aceitável para quem não seja ateu como eu.

Se bem que eu não argumente a inexistência de Deus com base na minha descrença, nem tenha encontrado outro ateu que o fizesse, na posição contrária este erro é tão comum que é praticamente a norma. Muita gente justifica afirmar que o seu deus existe pela fé que tem nessa existência, pela sua crença, pelas crenças dos outros, tradições ou textos que considera sagrados. Nada disso serve, porque nada disso permite concluir que este ou aquele deus realmente existe, nada disso é ponto de partida num raciocínio, omitindo as razões para formar tais crenças, e nada disso será aceite por quem não partilhar delas. É por isso que os cristãos não são persuadidos pelos argumentos dos muçulmanos, nem vice-versa. Um argumento assente na fé, crença, tradição ou num testemunho escolhido arbitrariamente não dá qualquer base para consenso. Não permite determinar quem tem razão.

Em contraste, o ateísmo pode ser defendido racionalmente porque, em geral, as hipóteses que nos apresentam acerca das características dos deuses são contrárias às evidências que todos reconhecemos. Por exemplo, um deus que criou o universo em seis dias há poucos milhares de anos ou um deus que é omnipotente, infinitamente benévolo e nos ama a todos. E mesmo quando o que propõem não pode ser confrontado com o que se observa, o número de propostas mutuamente exclusivas, a impossibilidade de as testar e a falta de indícios de que os alegados peritos de cada religião saibam realmente o que dizem saber, justifica a atitude céptica de rejeitar cada uma dessas alegações até que tenha suporte adequado.

Usando a razão, um crente pode facilmente perceber esta incompatibilidade. A razão serve para avaliar hipóteses procurando as razões que as justificariam. Assim, pode ser usada para encontrar o que é que se exigiria para acreditar em cada alegação de cada religião. Por exemplo, que evidências poderiam persuadir de que Alá é o único deus e Maomé o seu profeta, ou a aceitar a doutrina da reencarnação, a infalibilidade do Papa ou a autoridade religiosa do Edir Macedo. Fazendo este exercício com imparcialidade qualquer crente, seja de que religião for, constatará que só se pode manter fiel à sua religião se exigir desta muito menos do que exigiria de qualquer outra. Se fosse consistente no seu grau de exigência para este tipo de alegações, acabaria ateu por ter de rejeitar todas como igualmente infundadas. Só pela fé é que se pode seguir uma religião em detrimento das outras, mas a fé não é razão.

1- Para quem quiser encomendar posts: Posts por encomenda.

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12 de Fevereiro, 2012 Ludwig Krippahl

Treta da semana: a burocracia do sobrenatural.

Há duas semanas, o Patriarcado de Lisboa publicou a norma pastoral para os Sacramentais e as Exéquias cristãs. Isto porque a «unidade fecunda entre a lex agendi e a lex credendi» por vezes «fica comprometida pelos que, a pretexto da eficácia pastoral, desprezam as normas que regulamentam as celebrações da Igreja»(1). Por muito que seja o ganho na “eficácia pastoral”, defende o documento, não se deve desprezar os regulamentos por se pôr em causa a “eficácia sacramental”. Esta norma interessou-me não só por regular exorcismos e orações de cura, temas importantes no diálogo com quem alega que catolicismo não é superstição, mas também por isto da eficácia. Fiquei com curiosidade de saber como mediram a eficácia pastoral e sacramental para determinar que o aumento de uma diminui a outra. Infelizmente, da eficácia apenas dizem provir do «mistério pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo» e não esclarecem como apuraram a sua magnitude e origem. No entanto, as partes sobre as orações e os exorcismos compensaram o tempo investido na leitura do documento.

Na página 4, aprendi que «a realização das celebrações litúrgicas com o fim de obter de Deus a cura [exige] a licença explicita do Bispo diocesano e requer, para a realização de orações não litúrgicas com o mesmo fim, a vigilância do mesmo Bispo». O catolicismo é muito atreito a mistérios, e é sem dúvida misterioso como um deus todo poderoso, criador do universo e que nos ama a todos, só aceita liturgias a pedir a cura se vierem com o carimbo do senhor Bispo. Um mistério tão misterioso como este, a par de outros como o Mistério da Fé, o Mistério da Salvação e o Mistério da Ressurreição, merece com certeza um nome. Eu proponho Mistério do Tacho.

Mas a parte melhor é a que regulamenta a prática de expulsar o demo, mafarrico ou, como é referido no texto, o “Maligno”, que, salientam, «Não se trata de uma ficção da inteligência para racionalizar o Mal […]. O Maligno é criatura que por desobediência e inveja, não só perdeu a sua bondade como fez entrar no mundo o mal e a morte.» Não explicam o que teria levado Deus a criar um ser tão pérfido e, pior ainda, a dar-lhe tanto poder. É outro Mistério. O Mistério do oops, desculpem lá, nem sei onde tinha a cabeça nesse dia.

Adverte a norma que «A pessoa que se diz atormentada pelo demónio pode estar a sofrer apenas de alguma doença, especialmente psíquica, ou a ser iludida pela própria imaginação. […] Mas também há que estar atento, para se não deixar iludir pelas artes e fraudes que o diabo utiliza para enganar o homem, de modo a persuadir o possesso a não se submeter ao exorcismo, sugerindo-lhe que a sua enfermidade é apenas natural ou do foro médico». Para ajudar o exorcista na difícil tarefa de distinguir entre maluqueira, parvoíce, disparate ou Possessão Demoníaca®, a norma enumera uma série de critérios. Isto parece-me um erro grave. Deve o sacerdote certificar-se de que os males não são atribuídos pela vítima a má sorte ou maldição, que não se agravaram na sequência de consultas a «feiticeiros ou pretensos exorcistas», que os afectados não sofreram traumas e que não se sintam tentados a abandonar a prática religiosa. Caso se verifique alguma destas condições, o ministro da Igreja deve prestar auxílio espiritual «mas de modo algum [recorrer] ao exorcismo». Ora, sendo Satanás exímio nestas coisas, facilmente aproveitará este buraco procedimental acossando pessoas supersticiosas ou traumatizadas, ou tentando as vítimas com mais umas horas de sono nas manhãs de Domingo. Assim, facilmente se safa de ter de abanar a cama, projectar vómito, torcer o pescoço ou o que raio faz quando confrontado por um exorcista. Eu propunha que o sacerdote simplesmente perguntasse a Deus se o aflito sofre um ataque do Maligno, se tem pancada ou se porventura é afligido por outra entidade sobrenatural. O gato das botas ou o Saci-pererê, por exemplo. Se é para inventar, ao menos não compliquem.

E também o combate contra o Maligno está sujeito à burocracia eclesiástica. Em cada freguesia onde exorcise, o exorcista precisa do papelinho próprio. «Segundo o cân. 1172- §1 ninguém pode legitimamente exorcizar os possessos, a não ser com licença especial e expressa do Ordinário do lugar [… e sempre] sob a orientação do Bispo diocesano uma vez que é a ele que pertence, no âmbito da sua Diocese, o ordenamento da sagrada Liturgia». Ou, como diria Eric Cartman, “Respect my authoritah!”

Por coincidência (ou providência divina, quem sabe), depois de ter começado a escrever isto descobri no Companhia dos Filósofos um post do Pedro Ferreira da Silva onde se lê «Jesus quis curar o leproso. Tal como ele, procuremos pedir a Jesus que nos cure.»(2) Sim, mas só com o papelinho do Bispo. Sem papelinho, não há cura. E se quiserem mandar demónios para os porcos tem de ser em triplicado e com o selo branco da paróquia. Senão ninguém se entende.

1- Documento disponível em Normas Pastorais para a celebração dos Sacramentais e Exéquias Cristãs, via o Patriarcado de Lisboa, a agência Ecclesia e o Ricardo Alves no Facebook.

2- Pedro Ferreira da Silva «Se quiseres, podes curar-me»

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30 de Dezembro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: direitos, graças a Deus.

No blog do Expresso, o Henrique Raposo escreveu esta semana que «o Direito Natural precisa de uma base religiosa, precisa de uma comunicação com a transcendência divina. [Porque] sem uma noção de transcendência, sem algo que nos liberte da prisão do aqui-e-agora, o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Desta premissa conclui que «os tais “direitos inalienáveis” (a base ética e constitucional das nossas vidinhas) têm uma raiz bíblica» pelo que há «necessidade de Deus (e de Cristo)»(1). Que grande confusão.

A inferência da “noção de transcendência” para “raíz bíblica” e, daí, para o Deus cristão e Cristo, apesar de costumeira neste tipo de argumentação, é obviamente inválida. Há muitas “noções de transcendência” que nada têm que ver com a Bíblia e, mesmo entre as que têm, muitos milhões de pessoas seguem aquelas que não incluem Cristo. Mesmo que os direitos naturais precisassem de uma transcendência divina, nada permitiria concluir que esta seria Cristo ou um deus como os cristãos imaginam.

Também não é preciso um deus desses para justificar direitos naturais. A ideia de que há um conjunto de direitos e deveres inerentes ao ser humano, independentes das leis que os humanos criam, é uma parte fundamental de muitas filosofias éticas que não dependem de um deus pessoal como o dos cristãos, desde as mais antigas, como o estoicismo grego e o dharma hindu, até ao libertarianismo moderno. O Henrique argumenta que é preciso essa transcendência cristã porque senão «o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Mas só ignorando dois mil anos de cristianismo é que se pode julgar que a crença em Cristo impede o atropelo desses direitos que consideramos inalienáveis.

Além disso, as teorias éticas mais influentes hoje em dia – utilitarismos e contractualismos – não se baseiam em direitos naturais. Nestas, os tais direitos que as leis devem respeitar são derivados de factores como a capacidade de sentir ou aquilo que agentes livres e racionais concordariam em estabelecer. A ética moderna não precisa de assumir direitos naturais. O que é uma vantagem porque, como premissa, sempre foram muito frágeis e facilmente descartados por quem estava no poder.

Se o Henrique tiver o cuidado de ler a Bíblia e a Constituição da Republica Portuguesa verá certamente que a relação entre as duas é muito mais de contraste do que de semelhança. O Novo Testamento tem pouco acerca de direitos, deveres, leis ou política. Como fundamento ético, “ama o próximo” tanto dá para lhe lavar os pés como para o queimar vivo para lhe garantir o Céu. Os Autos de Fé eram praticados no mais pio espírito de amor e compaixão. E as partes do Antigo Testamento que lidam com leis e deveres parecem um manual de ditadorismo escrito por facínoras ignorantes. Provavelmente porque são isso mesmo.

Nos primeiros dois artigos, a nossa Constituição declara que Portugal se baseia na «dignidade da pessoa humana e na vontade popular» e que «é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas». Há de me dizer o Henrique quando é que o cristianismo, ou qualquer outra religião de peso, declarou basear-se na soberania popular, no pluralismo e na democracia. Depois temos o princípio da igualdade, que manda a lei tratar todos de forma independente de «ascendência, sexo, raça, língua, […] religião, […] condição social ou orientação sexual.» Gostava que o Henrique mostrasse onde é que isso está na Bíblia, ou na prática das igrejas cristãs destes vinte séculos. Ou, por exemplo, «Em caso algum haverá pena de morte. […] A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos»(2). Faz-me pensar se o Henrique alguma vez leu a Bíblia, nem que fosse de relance. Ou a história da Europa cristã. Ou sequer reparou no símbolo do cristianismo. Se os direitos humanos que hoje reconhecemos nos tivessem vindo dos tempos bíblicos, Jesus nem sequer teria sido preso, quanto mais torturado e morto na cruz.

É verdade que a nossa cultura é cristã, entre muitas outras coisas. Aqui em Portugal já se vendeu escravos, já se proibiu mulheres de votar, já se prendeu muita gente só por discordar de quem estava no poder e já se torturou pessoas por terem a religião errada. A “nossa” cultura é uma mistura de actos e tradições de muita gente, com coisas boas e coisas más. A nossa noção de direitos humanos universais, acima de qualquer legislação ou governo, vem no seguimento de toda esta história. Isso é inegável. Mas é um disparate dizer que surgiu por causa do cristianismo. Mais correcto será dizer que surgiu apesar do cristianismo, e de muitas outras tradições também contrárias à igualdade, à liberdade e à democracia.

1- Henrique Raposo, A necessidade de Deus (e de Cristo)
2- Parlamento, Constituição da República Portuguesa

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20 de Dezembro, 2011 Ludwig Krippahl

“Conto de Natal”

No de Dickens, Ebenezer Scrooge transforma-se radicalmente. Aprende quanto pode fazer por si e pelos outros e, com isso, torna-se numa pessoa melhor. O João César das Neves não é um Charles Dickens, obviamente, mas também não era preciso fazer o oposto. Num texto apressado, conta como um tal André lida com a crise: «Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto! […] Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias ‘Paí Nosso’, que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência.»(1) A mensagem parece ser que, ao contrário do que se passou com Scrooge, o melhor para nós é aceitar tudo como é: «esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus [e] desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas […] ‘Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus’ (Rm 8, 28)».

Além de promover a bovinidade, a historieta salienta algumas inconsistências do fatalismo cristão. O André não se preocupa porque o seu “Pai” está encarregue de tudo, mas também não estranha que o “Pai” trate os filhos de forma tão injusta. É difícil imaginar que um pai fique indiferente ao filho que passa fome numa cubata na Somália enquanto outro vive luxuosamente num chalé suíço. Pior, esse tal André diz-se descansado da vida porque «se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco». Chiça. Felizmente sou ateu e não acredito ser filho de um pai desses. Senão é que andava aterrorizado.

Isto de aceitar a injustiça com passividade e enaltecer o sofrimento absurdo já é treta antiga. Vê-se na história de Jó, na desculpa de que Jesus se sacrificou para nos “redimir”, na adoração dos mártires e no adoçar dos males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir. Como se o principal problema da pobreza fosse não ter uma sopa quente no Natal. Como somos intuitivamente sensíveis à injustiça, é preciso este barrete. Quem se diz infalível, vive num palácio e veste roupa bordada a ouro tem de louvar a humildade e a pobreza. Ponham a vida nas mãos deste deus, dizem, e dêem graças pelas migalhas que vos calham. Sobretudo, portem-se bem.

Mas nós somos pessoas, não somos ovelhas, e esta crise não é obra dos deuses. Não é o nosso destino nem um teste para ganhar uma nuvem mais fofa no céu. É um problema humano, de actos e de atitudes. É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos. E nota-se nos detalhes. Quem enaltece os mártires com histórias da carochinha não se martiriza a si próprio; quem elogia a pobreza não vive na miséria; e quem exorta a que cada um aceite, sorridente, a sua condição goza geralmente de condições melhores do que as dos outros. É a estes que convém a crença generalizada do destino como obra divina em vez de tarefa humana. Caso contrário, teriam de se assumir responsáveis por terem ficado com a maior parte daquilo que é de todos.

A crença pessoal num deus, na vida depois da morte ou afins é um direito de cada um e não faz grandes estragos. Mas, à volta disso, há sempre quem invente religiões para controlar os outros, disfarçar injustiças e ir mantendo tudo como lhes convém. Promessas de paraíso além-morte, o pai celestial que criou o universo mas precisa que se gaste dinheiro em igrejas imponentes e luxos para os seus representantes, e a ideia de que os miseráveis têm muita sorte por sofrer, são tudo embustes. O ateísmo tem a grande vantagem de nos inocular contra tais aldrabices, e encorajar-nos a enfrentar os fantasmas dos natais futuros como algo que temos o dever de tornar tão bom quanto pudermos. Se o André da historieta não se preocupa, isso não é sinal de fé. É sinal de irresponsabilidade.

1- João César das Neves, Conto de Natal

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9 de Dezembro, 2011 Ludwig Krippahl

Compatibilidade, agora com aspas.

No De Rerum Natura, o Carlos Fiolhais publicou há dias um texto sobre ciência e religião. É pena que não tenha abordado este tema com o rigor com que normalmente escreve. A ciência, começa, «trata do conhecimento do mundo natural» enquanto a religião «trata da relação do homem com o “transcendente”, com o qual ele toma conhecimento através da “revelação” ou “graça”.» (1) Pôs as aspas, mas não tocou no problema de sabermos se existem tais coisas como as religiões assumem, cada uma à sua maneira e sem consenso. Além disso, as religiões também dizem conhecer o mundo natural. Quase todas as religiões têm alguma versão de criacionismo, relatando como e porquê o universo foi criado, e alegações acerca do nascimento de Jesus, milagres ou a assunção de Maria não são estritamente sobre o “transcendente”. Têm implicações acerca do mundo natural também. E, em rigor, também não podemos dizer que «Na nossa cultura, [o transcendente] é o Deus da Igreja Católica.» O máximo que se pode dizer é que muita gente acredita que seja, mas daí a ser verdade ainda falta um bom bocado.

Depois, aponta que a ciência e a religião têm, em comum, «a procura de um sentido», o que também é pouco rigoroso. A ciência é uma procura por modelos que correspondam aos aspectos da realidade que visam modelar. É verdade que podemos encontrar sentido nisso, tal como podemos encontrar sentido na pintura, na literatura, no desporto, na família ou em qualquer aspecto da nossa vida. Até numa religião. Mas as religiões, que são muitas, não são necessariamente uma procura. Algumas, como o hinduísmo, deixam em aberto as questões fundamentais e toleram abordagens diversas. Outras, como o catolicismo ou o cristianismo evangélico, são mais dogmáticas e, por livros sagrados, inspiração divina ou líderes infalíveis, declaram que o essencial já está encontrado. E ai de quem procurar alternativas.

O Carlos Fiolhais aponta que «a observação e a experimentação permitem decidir se uma dada hipótese a respeito do mundo está errada. O reconhecimento do erro logo que haja evidência suficiente para ele tem assegurado à ciência uma notável capacidade de progressão ao longo dos tempos». Mas, depois, alega que «a religião não assenta no mesmo tipo de racionalidade, nem na observação e na experimentação, mas sim na fé, a crença que é obtida pela “graça” ou “revelação”» e que «existem diversas religiões, com diferentes verdades, cuja unificação é na prática impossível». Não me parece que recusar admitir a possibilidade de erro e o hábito de chamar “verdades diferentes” a alegações contraditórias mereça o rótulo de “racionalidade”, seja de que tipo for. O panteísmo hindu afirma que todos somos Brahman, enquanto o monoteísmo (triteísmo?) católico diz sermos criação do Pai-Filho-e-Espirito-Santo mas separados deste(s). Parece-me que o mais racional é chamar a isto crenças e admitir que não há razão objectiva para as considerar verdadeiras. Se chamamos a ambas “verdades” ficamos a precisar de uma palavra nova para designar a verdade a sério.

Depois, o Carlos Fiolhais parece confundir correlação com causalidade quando afirma que «Importa sublinhar que a ciência moderna surgiu no contexto do pensamento cristão e católico. Não se deu no quadro cultural do judaísmo ou do islamismo, nem no quadro de outras religiões». Antes da maturação da ciência nos dar alternativas persuasivas, todo o mundo estava dominado pelo pensamento religioso. O instante exacto em que a ciência começou é arbitrário. Há com certeza bons candidatos entre os arquitectos egípcios, filósofos gregos, engenheiros romanos e matemáticos árabes. Mas, onde quer que se ponha o “surgir” da ciência moderna, calhará sempre “no contexto” de uma religião qualquer. Ter calhado no cristianismo não nos diz se isso foi uma vantagem, desvantagem ou irrelevante. À partida, isto é tão importante como os primeiros cientistas serem todos homens, viverem em climas moderados ou saberem latim.

Finalmente, o «facto de que se pode ser crente e ao mesmo tempo cientista» e a alegação de que basta «abandonar a ideia de que a Bíblia é um livro de ciência» para que a ciência seja compatível com “a religião”. Isto não serve. A incompatibilidade não está na pessoa. Está no método. A ciência progride pela correcção de erros e, por isso, não pode aceitar como verdadeira uma proposição que não se possa testar ou à qual falte evidências que o justifiquem. Não me parece que o Carlos Fiolhais considere compatível com a ciência a alegação de que, pela “revelação” e fé, eu possa saber verdades transcendentes sobre os duendes invisíveis que habitam os núcleos dos átomos ou as fadas da quinta dimensão. A possibilidade um cientista acreditar nestas coisas – ou no criacionismo, ou nas pulseiras com hologramas – também não prova que estas crenças sejam compatíveis com a ciência.

Estes argumentos pela compatibilidade entre religiões e ciência mostram bem como estas são incompatíveis. Porque, invariavelmente, para argumentar isto é preciso abdicar do rigor e da exigência de fundamento que caracterizam a ciência.

1- Carlos Fiolhais, EM BUSCA DE SENTIDO: CIÊNCIA E RELIGIÃO

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26 de Novembro, 2011 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 13. A imagem de Deus.

Na sua série sobre os «Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo», o Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental [do ateísmo] é […] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos». Este uso do termo “equívoco” faz-me lembrar as sábias palavras de Inigo Montoya. O Alfredo insiste também na falsa dicotomia de que o ateísmo «ou tece críticas inteligentes […] à religião, e nesse caso só pode ser benéfico para ela; ou as suas críticas não são nem inteligentes, nem objectivas [e] não beliscam a religião.»(1) Omite a possibilidade mais importante, a do ateísmo desmascarar como infundada a confiança com que cada crente caracteriza o seu deus.

Neste episódio, o Alfredo Dinis aproveita novamente a ambiguidade da expressão “leitura literal” para induzir o equívoco de que os ateus estão «ao lado dos fundamentalistas cristãos que fazem uma leitura literal [da Bíblia]»(1). Consideremos o exemplo menos polémico do “Édipo Rei”, de Sófocles. Se por “leitura literal” se diz considerar todo o texto literalmente verdadeiro, então é óbvio que ninguém faz uma “leitura literal” desta peça dramática. É uma obra de ficção, baseada em lendas da época. Mas também não seria correcto ignorar o que lá está escrito e interpretar a obra como retratando a partilha de responsabilidade entre pais e filhos e a emancipação da mulher, fingindo que a morte de Laio e o incesto com Jocasta são apenas metáforas para o amor filial e a liberdade sexual. Ou qualquer outra coisa que se quisesse impor à leitura do texto. A intenção de Sófocles era que se lesse essa história como a tragédia que lá está descrita, e não como uma metáfora hippie sobre paz e amor.

É isto que os ateus fazem com a bíblia. O ateu não faz a “leitura literal” dos fundamentalistas. Eu não julgo que Deus tenha mesmo transformado a mulher de Lot num pilar de sal. Mas essa história não é uma metáfora para os perigos de comer sal em excesso, ou qualquer outra interpretação que agora possam dar-lhe para que Deus pareça mais bonzinho. É evidente que o autor queria transmitir literalmente o que escreveu: se desobedecem a Deus, por muito insignificante que seja a falta, ele lixa-vos com F grande. Principalmente às mulheres.

Segundo o Alfredo, «Dawkins e os demais autores do novo ateísmo ignoram que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Claro que não. Todos sabem que a Bíblia é uma selecção de histórias de muitos autores, com muitas ideias e prioridades diferentes. Se fosse tudo do mesmo, seria de esperar que Deus ou fosse o Kal-El ou o General Zod. Só essa diversidade explica que ora seja um ora seja o outro, conforme calha. Ao contrário do que o Alfredo defende, a divergência entre ateus como eu e crentes como ele não vem de julgarmos que a Bíblia é literalmente verdade nem de sermos ignorantes quanto à sua origem.

É precisamente pela diversidade cultural e ideológica dos seus autores que discordo do Alfredo quando afirma «que se deve ter em mente o sentido do conjunto dos textos bíblicos». Assumir um sentido conjunto para as histórias da Bíblia é que implica o erro de ignorar «que os diversos textos bíblicos foram redigidos em épocas, circunstâncias e culturas diferentes». Além disso, discordo também que «contextualização histórica e cultural» seja interpretar textos antigos de acordo com o que agora se considera aceitável numa religião, relegando para “metáfora” (de quê, nunca é claro) tudo o que pareça moralmente reprovável ou factualmente implausível, e retendo apenas o que for aceitável por critérios modernos. A «contextualização histórica e cultural» é precisamente o contrário. É ler Sófocles como Sófocles pretendia, e dar aos textos da Bíblia o significado que os seus respectivos autores lhes queriam dar.

Mas a divergência mais fundamental é outra, e resulta também de um equívoco. Escreve o Alfredo que «A imagem de Deus que os novos ateus recolhem da Bíblia baseia-se em passagens do Antigo Testamento nas quais Jahvé é descrito com traços vingativos e cruéis [… mas …] há que considerar que a imagem de Deus que se encontra na Bíblia é um conjunto de imagens sucessivas cujo pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo.» Os ateus não “recolhem uma imagem de Deus”. Os ateus sabem que há muitas “imagens” de Deus. Os muçulmanos têm umas, os evangélicos outras, os budistas outras e até católicos como os meus avós têm uma “imagem” de Deus diferente da imagem que o Alfredo tem. Se assim não fosse eu não teria sido logo baptizado com medo que parasse no inferno por falta de bênção. O problema principal é não haver fundamento para qualquer destas “imagens” de Deus.

O Alfredo diz que o «pleno significado se atinge somente em Jesus Cristo», mas o peso das evidências não favorece essa hipótese sobre as do muçulmano, judeu ou budista. Mais importante ainda, se considerarmos o contexto em que surgiram as tradições religiosas e a diversidade das “imagens” de Deus, o mais plausível é que sejam apenas fruto da imaginação humana. Esta é uma hipótese crucial porque, se as religiões forem obras de ficção – como tudo indica serem – deixa de se justificar a teologia, o sacerdócio e o poder eclesiástico. A prestidigitação argumentativa acerca da definição de Deus, das interpretações da Bíblia e dos alegados equívocos dos ateus apenas serve para disfarçar a incapacidade de responderem à pergunta mais básica: como é que sabem que essa religião é verdadeira? Sem resposta para isto não há razão para dar crédito a qualquer “imagem” de Deus.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

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6 de Novembro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: a Cultura Racional.

«A Cultura Racional é a cultura do desenvolvimento do raciocínio. A cultura natural da Natureza . É o conhecimento da origem do ser humano. De onde ele veio, como veio, porque veio e o retorno a sua origem, mostrando como o homem voltará ao seu estado natural de ser Racional puro, limpo e perfeito. Tudo isto através das mensagens do RACIONAL SUPERIOR, um ser extraterreno, publicadas nos Livros “UNIVERSO EM DESENCANTO”.»(1) No site, a imagem com os pingos de água e a explicação em maiúsculas dão também uma boa ideia do que trata a Cultura Racional.

Há vários aspectos interessantes nisto, além do efeito soporífero das palestras do fundador do movimento, Manuel Jacinto Coelho, ideais para quem sofra de insónias.

Manuel Jacinto Coelho nasceu em 1903 e faleceu em 1991(2). No entanto, segundo testemunham os seus seguidores, quem alcança a Imunização Racional «continua a viver normalmente neste mundo físico, porém deixa de estar subordinado a ele e às vicissitudes da vida orgânica.»(3) Ou seja, pela Cultura Racional, seguindo os ensinamentos daquele que nos foi enviado pelo Racional Superior, podemos ter a esperança de vencer a morte tal como ele a venceu. Não a morte física, deste plano material, mas a morte num sentido metafísico e transcendente.

A Cultura Racional tem também um vasto corpo de conhecimento. A série Universo em Desencanto tem 1000 volumes, «3 livros do Obra Inicial […] 21 livros da Obra Básica […] 21 livros da Réplica […] 21 livros da Tréplica [e] 934 livros do Histórico ou Fascículos»(4). E todo este conhecimento foi revelado ao Manuel pelo Racional Superior, que habita no Mundo Racional, por meio da Energia Racional. Não se trata de teorias falíveis criadas por seres humanos limitados ao mundo empírico.

Finalmente, a ciência natural não pode provar que isto seja falso. Não há, nem pode haver, qualquer descoberta científica que refute as alegações do Manuel Jacinto Coelho ou o testemunho dos seus seguidores.

No entanto, apesar do testemunho de esperança de que podemos vencer a morte, do vasto corpo de conhecimento que alega ter, da sua fonte alegadamente infalível e transcendente, da impossibilidade de se refutar a doutrina da Cultura Racional e de estar até na Wikipedia, parece-me que a maioria das pessoas que ler este post vai concluir que isto é uma treta. E com razão. Nem é preciso acreditar, ler os 1000 livros que o Manuel escreveu, estudar aprofundadamente esta doutrina ou procurar provas materiais que a refutem.

O cepticismo justifica-se porque inventar tretas acerca do transcendente, do significado profundo, do destino último de tudo e do que acontece depois da morte não só é trivial como sempre foi um passatempo popular. Da história antiga à Internet, nunca faltaram tretas. Por isso, o mais sensato não é dar crédito a uma tese só porque parece atraente, ou sequer dar-lhe o benefício do agnosticismo só porque não se pode provar o contrário. Cada alegação é apenas mais uma num mar imenso de disparates, pelo que só se justifica considerar como minimamente plausíveis aquelas, poucas, que se destacam das restantes por algum fundamento objectivo. Não quando um diz que sim, outro acredita ou vem num livro, mas apenas se as forçam até o cepticismo a admitir que essa hipótese possa ser menos treta do que as outras. É esse crivo que leva a maioria a rejeitar doutrinas como a da Cultura Racional. É um bom primeiro passo. Falta agora dar o passo seguinte e perceber que o crivo não serve apenas para as crenças dos outros.

1- www.mundoracional.com.br. Obrigado pelo email com esta revelação.
2- Wikipedia, Manuel Jacinto Coelho
3- Wikipedia, Imunização Racional
4- Wikipedia, Universo em Desencanto

Em simultâneo no Que Treta!

3 de Novembro, 2011 Ludwig Krippahl

Compatíveis… pois…

John Haught, teólogo católico, é um dos defensores da tese de que a fé (católica) é compatível com a ciência. Jerry Coyne, biólogo ateu, é um dos defensores da tese contrária, de que ciência e religião não são compatíveis. No dia 12 de Outubro falaram ambos num simpósio sobre este tema, a compatibilidade entre ciência e religião.

John Haught fez o que os teólogos costumam fazer. Alegou haver várias interpretações metafóricas de crenças religiosas que não são incompatíveis com aquilo que a ciência propõe serem os factos. Que existe algo divino e transcendente, que há um sentido último, sempre misterioso, que o podemos sentir pela fé mas nunca compreender pela ciência e coisas assim. Mas evitou sempre a questão essencial. É irrelevante que seja possível fazer afirmações gratuitas que, não dizendo nada em concreto, também não contradizem a ciência. Ou o que quer que seja. O problema é que a ciência não é compatível com a decisão de ter fé em tais coisas.

O Jerry Coyne perdeu algum tempo a falar dos malefícios do cristianismo, o que não é muito relevante para a questão de ser ou não compatível com a ciência, mas focou o principal. A ciência é um processo que usa a dúvida para evitar encravar nos erros. Principalmente no auto-engano. Se questionarmos qualquer alegação, procurarmos hipóteses alternativas e só cedermos a nossa confiança, com relutância e provisoriamente, àquelas hipóteses que a isso nos obrigarem pelo peso das evidências, sempre vamos corrigindo os erros. Não podemos evitar errar, mas pelo menos temos a possibilidade de notar quando erramos e a disposição para o admitir e escolher alternativas. E isto é incompatível com a fé. A fé é a confiança dedicada e persistente na crença de que as coisas são como se julga. A ciência é a dúvida rigorosa e sistemática que vai moldando as crenças àquilo que as coisas são.

O vídeo das duas intervenções está disponível no site do simpósio (1). Mas foi por pouco. Numa atitude pouco compatível com o debate aberto que é essencial em ciência, e mais próxima da prepotência que as religiões manifestam sempre que podem, John Haught inicialmente impediu a divulgação do vídeo (2), alegando que «a discussão em Kentucky raramente se elevou ao nível de um encontro académico»(3). Apesar de ser apenas um incidente pontual, esta atitude de Haught é mais um exemplo da incompatibilidade entre querer saber e ter fé que já se sabe. É verdade que há cientistas religiosos. É verdade que se pode apresentar algumas crenças religiosa de forma tão vaga e abstracta que nada as possa contradizer. Mas a disposição para ajustar as ideias às evidências é incompatível com a dedicação incondicional a uma crença.

Em simultâneo no Que Treta!

1- 2011 Bale-Boone Symposium Videos, Science and Religion: Are They Compatible?
2- Why Evolution is True, Theologian John Haught refuses to release video of our debate
3- Why Evolution is True, Under pressure from blogosphere, Haught explains and relents

2 de Novembro, 2011 Ludwig Krippahl

Ciência, metafísica e filosofia.

Uma coisa que me dizem muitas vezes é que não posso exigir “provas científicas” para alegações que, apesar de serem acerca de factos, se rotulam de metafísicas ou filosóficas. A ideia parece ser de que há jogos diferentes e, por simples troca de etiquetas, o que é claramente falso num passa a verdade indubitável no outro. Cientificamente, a hóstia fica na mesma. Metafisicamente, dá-se um milagre. Treta.

A filosofia procura a compreensão pelo raciocínio metódico e pelo diálogo racional e crítico. A ciência também, e aquilo que hoje chamamos ciência chamou-se, durante séculos, filosofia natural. Agora prevalece a ideia de que a ciência lida com o que é empírico e a filosofia lida apenas com o resto, como a ética e a metafísica. Mas esta ideia é errada. É certo que filosofia abarca muita coisa, dos silogismos de Aristóteles aos dramas de Sartre, da ironia de Kierkegaard à lógica matemática de Russell. Mas muito na filosofia – como a filosofia da mente, da linguagem e da ciência, só para dar alguns exemplos – depende de dados experimentais, exactamente como a ciência. Não há uma fronteira clara a partir da qual uma investigação filosófica passa a ser científica. Esta distinção deve mais a decisões subjectivas de nomenclatura do que a diferenças objectivas entre as abordagens.

A alegada diferença entre ciência e metafísica é outra ficção. Conveniente, mas fictícia à mesma. Consideremos, por exemplo, os postulados de Koch. Se um micróbio está presente nos organismos doentes e ausente nos saudáveis, se depois de purificado e inoculado num hospedeiro saudável este passa a manifestar a doença, e se depois pode ser isolado desse hospedeiro doente, então considera-se cientificamente estabelecido que esse micróbio causa essa doença. À primeira vista, é uma questão empírica e científica sem nada de metafísico.

Mas a relação de causalidade é metafísica. Empiricamente, a única coisa que se pode estabelecer é uma correlação. Sabemos que o micróbio está lá, depois o animal adoece, depois isolamos o micróbio, e assim por diante. Se a ciência, como apregoam, se limitasse ao empírico, nunca poderíamos dizer que o micróbio causa a doença. Apenas se poderia afirmar que, nos casos conhecidos, a doença se correlaciona com a presença do micróbio. Esta seria uma afirmação muito mais limitada. Por exemplo, nesse caso a ciência nunca poderia dizer o que me teria acontecido se não tivesse tomado a BCG e me tivessem inoculado com o bacilo da tuberculose aos 5 anos. Empiricamente, é impossível determinar o que teria acontecido quando não aconteceu. Não faz parte do conjunto de casos conhecidos onde se possa medir correlações. Mas a ciência responde que esse bacilo causa tuberculose e que, por isso, se eu não tivesse tomado a vacina e me tivessem inoculado com o bacilo eu certamente teria apanhado tuberculose. A causalidade, a explicação, o relato de como as coisas acontecem, tudo isso é científico e é metafísico. Se a ciência fosse estritamente empírica estaria limitada a listas de observações do género “este aparelho indicou aquele valor”. E talvez nem isso.

O que não quer dizer que estes aspectos metafísicos do relato científico não sejam testáveis. Não são directamente testáveis, porque a explicação e a causalidade, por si, não são nada que se possa observar. Mas são indirectamente testáveis porque explicações e relações entre causa e efeito implicam restrições àquilo que se espera observar. E a metafísica inclui o estudo de conceitos como o tempo e o espaço, que a ciência tem elucidado, e foi de um cepticismo metafísico que surgiu a epistemologia, o estudo de como podemos saber o que julgamos saber, e a filosofia da ciência, que é também uma ciência da ciência, visto que ninguém consegue fazer filosofia da ciência que valha qualquer coisa sem testar hipóteses contra o que observa os cientistas a fazer.

Invocar a desculpa fácil de que certa alegação não carece do fundamento que deveria ter por ser metafísica ou filosófica assume serem desconexos estes aspectos da nossa compreensão que estão interligados. Explicações, causalidade, relatos acerca do que a realidade é para além do que observamos, ou são um misto de filosófico, metafísico e científico ou não servem para nada. E, ao contrário do que muitos parecem crer, os rótulos de “metafísico” ou “filosófico” não têm o poder mágico de tornar disparates em verdades.

Em simultâneo no Que Treta!

20 de Outubro, 2011 Ludwig Krippahl

Em cheio, na palha.

Num texto sobre o matemático, cosmólogo e padre Georges Lemaître, o Alfredo Dinis argumenta ser errada a «tese de que quem tem uma fé religiosa não está interessado na verdade científica, nem sequer tem competências para fazer avançar a ciência, porque a fé não deixa pensar, ter espírito crítico e criativo.»(1) Concordo. Ter fé numa coisa não impede que se tenha espírito crítico acerca de outra. No entanto, o Alfredo apresenta este caso como «incómodo para muitas pessoas, sobretudo as que continuam a insistir que há uma incompatibilidade radical entre ciência e religião, e que a ciência avança tanto mais depressa quanto mais depressa se abandonar a religião.» Eu sou da opinião de que há essa incompatibilidade radical e de que a ciência avança melhor sem religião. Mas o exemplo do Lemaître não é relevante para esta posição, porque a incompatibilidade das duas abordagens não impede que a mesma pessoa seja capaz de ambas. É como fumar e fazer pesca submarina.

O Alfredo alegou várias vezes que a ciência permite aferir a verdade de hipóteses testáveis, enquanto a religião decide a verdade das outras hipóteses. Nunca percebi como se pode aferir a verdade de uma alegação, acerca dos factos, que seja impossível de testar. E, a julgar pela diversidade dos dogmas das muitas religiões, não devo estar sozinho nisto. Mas esta diferença, que o Alfredo admite, torna a religião incompatível com a ciência. O problema fundamental é que a ciência não pode aceitar como verdadeira uma alegação que não tenha sido testada com sucesso, enquanto as religiões exigem dos seus adeptos que aceitem pela fé hipóteses que não podem ser testadas ou até que foram testadas e falharam nos testes. O criacionismo, por exemplo, que o Alfredo admite ser contrário à ciência mas que esquece sempre quando fala “da religião”.

Lemaître apenas ilustra que uma pessoa pode aceitar umas hipóteses por fé e avaliar outras com ciência. Não é novidade nenhuma. A mente humana tem uma capacidade extraordinária para ser exigente e criteriosa acerca de algumas alegações enquanto isenta de qualquer cepticismo outras crenças, mais queridas. Ninguém poderia ter uma só religião sem conseguir este feito pois, caso contrário, ou não teria nenhuma ou teria todas.

O que é pertinente e esclarecedor no caso do Lemaître é o papel que a fé católica teve na formulação, compreensão e avaliação deste modelo pela comunidade científica. Absolutamente nenhum. O processo científico, enquanto tal, não recorreu à fé de Lemaître. E, se recorresse, deixava de ser científico, porque o mérito e a utilidade da ciência vêm precisamente da forma imparcial com que esta avalia as hipóteses à luz das evidências e sem o enviesamento de preferências pessoais, tradições, fés e fezadas.

E o Lemaître teve sorte por o seu modelo não ter chocado com os dogmas que a sua religião defendia nessa altura. Caso contrário, provavelmente teria de fazer como Teilhard de Chardin. Para tentar conciliar a sua fé com a teoria da evolução, Teilhard de Chardin deturpou ridiculamente esta teoria e, mesmo assim, ainda arranjou sarilhos com os representantes oficiais da sua religião. Sempre que a fé e as evidências concordam a fé é supérflua para determinar a verdade. E sempre que discordam, a fé é nefasta. Como a ciência exige uma disposição constante para rever e alterar hipóteses perante novas evidências, mais cedo ou mais tarde a fé acaba por ser um empecilho. Investigação científica baseada na fé não leva a lado nenhum. E a fé, no fundo, não precisa da ciência para nada porque está-se nas tintas para a verdade.

A meu ver, a investida do Alfredo estripou violentamente a tese de que quem tiver fé numa alegação é incapaz de avaliar objectivamente qualquer outra. Foi palha por todo o lado. No entanto, o Alfredo nem sequer mencionou o problema mais interessante, que é a incompatibilidade das abordagens em si. Perante uma afirmação acerca dos factos, podemos ter, no máximo, uma destas duas atitudes. Ou tentamos apurar a verdade de forma objectiva e imparcial, ou escolhemos acreditar por fé. Podemos fazer uma coisa para umas alegações e outra para outras, mas não é possível ter fé e manter-se objectivo e imparcial, ao mesmo tempo, acerca da mesma hipótese.

1- Alfredo Dinis, Ciência e religião – o caso do P. Georges Lemaître
Em simultâneo no Que Treta!