Loading

Ludwig Krippahl

23 de Julho, 2012 Ludwig Krippahl

A batata de Deus.

A propósito da velha questão filosófica “porque é que há algo em vez de nada?”, o Alfredo Dinis propôs que crentes e ateus estão «com a mesma batata quente na mão. Um tem que explicar como Deus surgiu do nada, o outro como o universo surgiu do nada.»(1) Discordo. São batatas muito diferentes. Logo à partida, o Alfredo não tem de explicar só como Deus surgiu do nada. Tem de explicar também como é que Deus criou o universo a partir do nada, porque dizer apenas “Deus criou” ou “por milagre” não explica coisa nenhuma. Parece difícil que o Alfredo consiga explicar isto, e este é um dos menores problemas da sua tese criacionista.

Esta questão filosófica surge da ideia de que um vazio absoluto, eterno e imutável, não carece de explicação. É a hipótese nula. Só a existência de algo é que exige explicação. Daí o tal conceito filosófico de nada no qual o Alfredo insiste, acusando físicos como Lawrence Krauss de fazerem batota por considerarem como hipótese nula um nada quântico e instável. No entanto, o Alfredo também faz batota por incluir nesse “nada absoluto” um deus capaz de criar todo o universo*. Além disso, a física moderna põe em causa a premissa implícita dos filósofos antigos de que ser absoluto, estável e imutável são atributos que o nada tem de borla e que não é preciso explicar. Isto é implausível porque só há uma forma de ser absoluto e imutável mas há infinitas formas de ser instável. O nada instável e caótico da mecânica quântica é muito melhor candidato para a tal hipótese nula que dispensa explicação.

Se o nada da hipótese nula é instável – e não há razão para assumir o contrário – então não temos apenas uma explicação para a existência de algo sem precisar de deuses milagreiros. Podemos também extrapolar do que sabemos sobre este universo para ter uma ideia do processo pelo qual universos podem surgir espontaneamente. O Sofrologista Católico critica esta abordagem como «altamente metafísica e pouco fundamentada»(1), mas é a mais fundamentada que temos. Ao contrário de Deus e do vazio absoluto, o vácuo quântico instável de onde universos podem surgir encaixa bem nas teorias da física moderna, as teorias com o fundamento empírico mais sólido que alguma vez a inteligência humana concebeu.

Além da estabilidade do nada, os filósofos de antigamente também assumiam, por lhes parecer regra universal, que tudo tinha uma causa. Portanto, para algo surgir do nada teria de haver uma primeira causa. Deus. Mas a física moderna também rejeita esta premissa. Por um lado, porque muitos acontecimentos a nível quântico não têm causa. Não se trata de ignorar as causas. É mesmo saber que não têm causa por serem indeterminados. Por exemplo, não se pode saber, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição exactas do electrão porque o electrão não tem velocidade e posição exactas em simultâneo (2). O resultado da medição de um destes atributos é uma variável aleatória e não o efeito de uma causa escondida. Por outro lado, sabemos também que o tempo faz parte deste universo e que não há antes do universo. “Antes do universo” é como “abaixo do centro da Terra” ou “a sul do Polo Sul”. Não faz sentido. Como uma causa tem de ocorrer antes do efeito, isto implica que o universo não pode ter causa. É claro que os crentes podem alegar que esta foi uma causa especial que não precisa de tempo mas, nesse caso, deitam fora todo o fundamento do argumento por invocarem um tipo ad hoc de causa nunca observado em lado algum. Mais uma coisa que deixam por explicar.

Em suma, as duas batatas não são nada parecidas. A cosmologia moderna é composta por hipóteses extrapoladas das teorias mais bem fundamentadas que temos. Esta extrapolação indica que o tal nada da hipótese nula é caótico e instável e que esta bolha de espaço-tempo a que chamamos universo surgiu espontaneamente, sem ter nem poder ter qualquer causa. O criacionismo medieval da teologia católica é uma caldeirada de premissas sem fundamento. Jesus é uma de três pessoas que partilham a mesma substância, outra das quais terá criado o universo por milagre a partir de um nada inexplicavelmente absoluto e imutável e agora, treze mil milhões de anos depois, estas duas pessoas e mais um espírito passam o tempo preocupadas com a contracepção, a desfrutar os louvores e a veneração que os seus seguidores lhes dirigem e a orientar, para que sejam infalíveis, as proclamações doutrinais de um senhor de batina. Eu diria que o Alfredo tem muito mais coisas para explicar, e mais difíceis de justificar. Começando pela explicação de como é que ele sabe isto tudo.

* Já para não falar de transubstanciar hóstias, condenar pecadores, engravidar virgens, omnisaber, omniestar e omnifazer trinta por uma linha.

1- Comentários em Confrangedor
2- Ver, por exemplo, na Wikipedia Quantum indeterminacy

Em simultâneo no Que Treta!

19 de Julho, 2012 Ludwig Krippahl

Confrangedor.

Escreve o Alfredo Dinis que o panorama dos blogs ateístas em português é «confrangedor [porque] os crentes são considerados pouco ou mesmo nada inteligentes, ignorantes, incapazes de pensarem pela sua própria cabeça, sem qualquer espírito crítico, dispostos a acreditar no quer que seja, hipócritas, exigindo que todos respeitem as suas crenças e práticas», o que «não pode estar mais longe da verdade»(1). Eu não descarto os crentes como meros agregados de defeitos mas, por outro lado, também não diria que a descrição está assim tão longe da verdade. Nem que são só os ateus a pensar isto dos crentes. A situação é mais complexa e multifacetada do que aquilo que o Alfredo sugere.

Se o Alfredo não restringir a definição de “crente” a algo como “teólogo católico doutorado em filosofia” e aceitar como crentes todos os que veneram um ou mais deuses, certamente verá muita ignorância e falta de espírito crítico nesse grupo, com criacionistas evangélicos, fundamentalistas muçulmanos, praticantes de vudu, candomblé e xamanismo, e afins. Um grupo, em média, menos tolerante do que os ateus. Há terrorismo religioso, países com penas de prisão ou de morte por apostasia e até a Igreja Católica persegue quem se atreve a desmascarar milagres da treta (2), manda censurar revistas (3) e cancelar campanhas publicitárias (4) por “falta de respeito”. Por cá, temos benefícios legais para as religiões sem nada equivalente para os ateus. Quanto à hipocrisia, também não me surpreende a acusação.

Por exemplo, apesar de, em Julho, o Alfredo considerar confrangedor chamar os outros ignorantes ou pouco inteligentes, em Maio escreveu de Dawkins que «a sua leitura da Bíblia – literalista e descontextualizada – não é a única possível, nem a mais informada e inteligente»(5). Em rigor, o Alfredo chama de ignorante e pouco inteligente à posição de Dawkins e não ao Dawkins em si. É uma distinção importante. Mas é a mesma que muitos ateus fazem. Eu não diria que pessoas como o Alfredo são pouco inteligentes, mas considero uma parvoíce a crença de que o criador do universo encarnou no filho do carpinteiro para morrer por nós. Se esta alegação é confrangedora e a do Alfredo não, então o critério dele é inconsistente.

Pior ainda é a diferença entre o que padres como o Alfredo dizem aos ateus e a doutrina que transmitem ao seu rebanho. Se compararmos uns milhares de pessoas doentes que vão a Fátima pedir curas, com outras, em situação análoga, que não pedem nada a Deus, qualquer diferença significativa a favor dos crentes será favorável à hipótese de Deus. Mas, dirá o Alfredo aos ateus, esta é uma forma incorrecta, e ignorante, de conceber Deus porque Deus não intervém nestas coisas e a sua existência não pode ser testada empiricamente. O problema é que isto classifica de ignorantes as multidões de crentes que vão a Fátima convencidos de que Deus vai intervir para bem deles. Ou seja, fazem o mesmo que o Alfredo diz ser confrangedor nos ateus e ainda encorajam os crentes, recebendo, com satisfação, as oferendas dos ignorantes que lá vão ao engano. Não é estranho que alguns vejam nisto hipocrisia.

Até o diálogo com o Alfredo levanta este problema. Por exemplo, o Alfredo continua a insistir que o universo não pode ter surgido do nada porque o conceito filosófico de nada proíbe que alguma coisa de lá surja (5). Mas, como já expliquei (6), o conceito não importa porque desses inventamos quantos quisermos. Também podemos conceber a combustão como um processo que produz flogisto ou a Terra como estando no centro do universo. O que importa é saber quais conceitos correspondem à realidade, e esse conceito filosófico de nada não corresponde. Por muito filosoficamente que se conceptualize, não há flogisto, o universo não tem centro e o nada não é como o Alfredo julga. É um estado instável no qual surgem partículas espontaneamente. Infelizmente, só vejo três explicações para esta teimosia do Alfredo. Ou não tem capacidade para compreender o assunto, ou lhe falta conhecimentos para perceber a física, ou então percebe bem o problema mas finge o contrário. Conhecendo pessoalmente o Alfredo, não posso aceitar as duas primeiras, mas também me custa aceitar a última. Fico assim de decisão suspensa só para evitar pensar mal do Alfredo. Mas nem todos terão a mesma relutância em formar uma opinião.

Finalmente, há uma recusa sistemática em reconhecer o problema fundamental. Citando um amigo, o Alfredo escreve que «há coisas que não vale a pena explicar. Ou porque são evidentes, e não é necessário explicar. Ou porque não são evidentes e não adianta explicar.» Isto é um disparate. O que não é evidente tem de ser explicado – e bem explicado – para que se perceba. E o que parece evidente tem também de ser explicado porque muitas vezes é falso. Só pela explicação é que percebemos que, ao contrário do que parecia, a Terra afinal não é plana nem a chuva vem dos deuses. Quer para o conhecimento quer para o diálogo, é preciso justificar adequadamente o que alegamos ser verdade. Os crentes também exigem isto dos seus interlocutores, mas isentam-se muitas vezes deste dever. A parábola que o Alfredo publicou a seguir ilustra bem isto (7). Dois fetos conversam na barriga da mãe. Um acredita que vai haver vida depois do nascimento. Que vai haver luz, que vão andar com os pés, comer com a boca, conhecer a mãe e assim por diante. O outro, do contra, diz que não. A mensagem parece ser que o crente acerta em tudo só por crer. Por pura sorte. Acredita e, hocus pocus, é verdade. Se é esta a atitude com que entram num diálogo não se devem admirar da má impressão que causam. Se, a quem nunca tivesse ouvido falar do catolicismo, eu alegasse saber pela fé que o criador de tudo é três pessoas numa só substância, pai, filho e espírito santo, o mais certo seria julgarem que eu não estava bom da cabeça, ou não fazia ideia do que dizia ou estava a aldrabar alguém.

1- Alfredo Dinis, ateísmo (em) português (1)
2- What’s up Finland, Sanal Edamaruku and the Catholic church
3- Spiegel, Pope Takes German Satire Magazine to Court
4- Huffington post, Benetton Ad Withdrawn Same Day As Release
5- Em Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo e insistindo novamente no Prós e contras.
6- Equívocos, parte 14. Filosoficamente nada.
7- Alfredo Dinis, citando um comentador, a vida depois da vida

Em simultâneo no Que Treta!

17 de Julho, 2012 Ludwig Krippahl

O como, o porquê e a pila da lesma.

Têm-me dito muitas vezes que a ciência apenas nos explica o “como” das coisas e só as religiões nos dizem o “porquê”. Isto tem vários problemas. Nunca dizem, em concreto, qual é o porquê. Não conseguem chegar a consenso acerca do porquê. Assumem gratuitamente que o porquê envolve sempre um quem. Mas o pior de tudo é insistirem que a ciência não explica o porquê, o que é obviamente falso. Vejamos, como exemplo, a lesma banana, Ariolimax dolichophallus, mais o seu pénis e estranhos hábitos sexuais.

Como é de rigor entre lesmas e caracóis, a lesma banana é hermafrodita. E, sendo descendente de um antepassado caracol, tem o ânus e os órgãos sexuais na cabeça, apesar de já não ter a casca que originou essa configuração desconfortável. Há quem lhe chame “design inteligente”. Como resultado, a cópula das lesmas consiste numa troca de esperma em que cada uma literalmente f*** a cabeça à outra. Durante horas, que as lesmas não são bicho para pressas. E com um pénis quase tão comprido como a própria lesma, que pode chegar aos 25cm. Mas mais estranho ainda é o seu comportamento sexual. Há cerca de um século, Harold Heath notou que uma em cada vinte lesmas banana não tinha pénis, ou tinha apenas uma pequena parte do pénis. Achou estranho. Sendo hermafroditas, todas deviam ter pénis. Heath procurou então perceber como é que estas lesmas ficavam sem pénis, o que rapidamente descobriu. No calor do momento, por vezes uma lesma come o pénis da outra, que normalmente retribui o favor.



Fonte: Last word on nothing e Boing Boing.

Estava então respondido o “como”, mas o “porquê” foi mais difícil. Demorou um século até se encontrar a resposta. Que, como devem imaginar, não tem nada que ver com planos divinos ou o espírito santo. A explicação é mais prosaica. Quando uma lesma fornece o seu esperma à/ao companheira/o* tem vantagem que a outra se fique por aí. Porque quanto mais vezes a outra lesma copular, e quanto mais esperma obtiver de terceiras, menos ovos serão fertilizados pelo esperma da primeira. A hipótese avançada para explicar porque é que uma lesma banana come o pénis da outra é que esta mutilação reduz a probabilidade de novos encontros sexuais, aumentando assim o número de descendentes da canibal. O único senão é que a outra aproveita para lhe fazer o mesmo. O trabalho fascinante da Brooke Miller (1) tem sido testar esta hipótese, recorrendo a marcadores genéticos que lhe permitem seguir e contabilizar a descendência de cada lesma, medindo directamente a aptidão de cada lesma para deixar descendentes. Até agora os dados confirmam a hipótese de que a razão fundamental – o porquê das lesmas comerem o pénis uma à outra – é a competição ao nível do esperma (2). É daqui que vem a pressão selectiva para este comportamento.

Esta explicação vai ao fundo da questão. Se nesta linhagem de lesmas, durante muitas gerações este comportamento levou, em média, a um número maior de descendentes, não é preciso invocar outros factores – nem inteligência divina, nem propósito nem omnipotência – para perceber o como e o porquê do comportamento. As lesmas que não se comportavam assim simplesmente não deixaram descendentes suficientes para serem antepassados de alguma lesma de hoje. Eis o porquê, que a ciência revela. Acrescentar a isto um porquê religioso é completamente desnecessário, se bem que até seria engraçado ver uma religião a tentar explicar, em detalhe, o porquê do seu deus criar lesmas que comem o pénis umas ás outras.

* Sendo hermafroditas, não têm os nossos problemas com o sexo ser homo ou hetero. Ninguém as avisou que a homossexualidade é contra a Lei Natural.

1- Página pessoal da Brooke Miller.
2- Resumo da dissertação Sexual conflict and partner manipulation in the banana slug, Ariolimax dolichophallus.

Em simultâneo no Que Treta!

15 de Julho, 2012 Ludwig Krippahl

Treta da semana: Higgs e os padres.

Leon Lederman chamou-lhe ”the goddamned particle”, por ser tão difícil de detectar, mas o editor mudou a expressão para ”the God particle”(1). Por causa disso, o Prós e Contras sobre a experiência mais importante dos últimos anos descambou em duas horas de Fátima Campos Ferreira a fazer comentários pseudo-orgásmicos sem cabimento nem relação com o assunto. O que foi pena. Gravei o programa mas não consegui ver tudo pelo efeito da moderadora na minha tensão arterial. Por isso, por agora fico-me pelo conflito entre a fé e a ciência. À parte de um comentário muito acertado da Olga Pombo, que quem se arroga de responder a tudo não é a ciência mas sim as religiões, e cada uma à sua maneira, pareceu-me que ninguém tocou no problema fundamental. As religiões alegam muita coisa que a ciência recomenda rejeitar como mito ou ficção – milagres, nascimentos virgens, conversas com anjos ou deuses, vida depois da morte e afins – mas o problema principal é afirmarem saber coisas sem determinarem primeiro se são verdade. Isto é um erro, em ciência e em geral.

O Alfredo Dinis disse que a questão da existência de Deus não é científica porque não é testável; o Carlos Fiolhais parafraseou Galileu, que a ciência diz como vai o céu e a religião diz como se vai para o Céu; o Gaspar Barreira salientou que há cientistas crentes; e o João Varela defendeu que a religião e a ciência são domínios independentes tal como a arte é independente da ciência. Disto tudo, só o João Varela está parcialmente correcto. A arte e a ciência são independentes sempre que a arte não pretenda representar correctamente algum aspecto da realidade. Por exemplo, uma pintura abstracta ou um solo de guitarra. Mas se um documentário, uma história de ficção científica ou um romance histórico apresentam alguma falsidade ou especulação infundada com a pretensão de ser um facto, isso é cientificamente incorrecto. Só é independente da ciência aquilo que não tiver pretensões de representar qualquer aspecto da realidade.

A discussão sobre a incompatibilidade da fé com a ciência padece de três maleitas. A primeira é julgar-se que isto tem alguma coisa que ver com cientistas terem fé. Não tem, porque é trivial um ser humano aceitar umas coisas por fé ao Domingo e exigir evidências para outras durante o resto da semana. A segunda é a compreensível falta de paciência de muitos cientistas para discutir isto a sério. Alegar que são coisas separadas poupa uma data de trabalho, mesmo sendo óbvio que dizer como se vai para o Céu implica, no mínimo, dizer que sobra o suficiente de nós, depois da morte, para ir a algum lado. Isso não se pode justificar pela fé. A terceira, e pior, maleita é assumir-se uma definição arbitrária e demasiado restritiva de ciência. Por exemplo, que por a ciência exigir hipóteses empiricamente testáveis qualquer doutrina se pode safar de uma crítica científica se invocar hipóteses impossíveis de testar. Isto é, obviamente, um disparate.

A ciência é o método, sempre em aperfeiçoamento, para obter modelos que correspondam a aspectos da realidade. Podem ser modelos matemáticos, diagramas ou proposições; o que importa é que se ajustem o mais possível ao que pretendem representar. É neste sentido que “a Terra é redonda” é um modelo melhor do que “a Terra é plana”. Todos os restantes detalhes que caracterizam a ciência derivam de restrições que a nossa natureza impõe à realização deste objectivo. Por exemplo, os artigos científicos são publicados apenas após revisão pelos pares porque os seres humanos têm muito mais objectivos do que a procura de conhecimento. Para podermos confiar minimamente no que os cientistas escrevem é preciso exigir uma análise crítica independente. Mas isto não é uma fronteira que delimite a ciência, e seria um disparate dizer que algo (e.g. astrologia ou espiritismo) está num domínio independente só por não ter peer review. Se todas as pessoas fossem investigadores perfeitos, isentos e objectivos não era preciso mas, sendo como são, temos de nos precaver contra eventuais erros e aldrabices.

Passa-se o mesmo com a necessidade de testar hipóteses. Imaginemos que o nosso cérebro nunca podia conceber falsidades. Se assim fosse, qualquer afirmação em que pensássemos teria de ser verdadeira e não era preciso testar hipóteses para fazer ciência. Bastava concebê-las e pronto. A ciência humana precisa de testar hipóteses não por uma regra arbitrária e opcional, mas porque somos falíveis e facilmente concebemos falsidades. Por isso, não podemos procurar conhecimento sem mecanismos para corrigir erros. Quem afirma “Deus existe mas isto não pode ser testado” não está num domínio independente da ciência. Está a fazer má ciência. A menos que seja infalível, tem de ter mais cautela com o que afirma.

O objectivo da ciência é gerar conhecimento acerca da realidade. Tanto faz o assunto. Dos hábitos sexuais dos Cro-Magnon à natureza da consciência e ao destino do universo, se é real é pela ciência que o podemos modelar e descrever. Qualquer domínio da experiência humana será independente da ciência se não tiver pretensão de fazer o mesmo. Ficção, poesia, humor, música, o que for. Mas se alega saber verdades acerca da realidade então está no domínio da ciência e, tal como a ciência, tem de ter em conta as limitações de ser humano. Apesar de explicar imensa coisa sobre os atributos fundamentais da matéria, o bosão de Higgs foi considerado hipotético durante quase cinquenta anos e mesmo depois do trabalho de milhares de cientistas com a máquina maior e mais complexa jamais construída ainda exigem um desvio de cinco sigma antes de arriscar a dizer que ele existe. Deus não explica coisa nenhuma, não temos qualquer indício de que exista e, ao fim de uns milhares de anos de especulação infrutífera, até muitos dos seus proponentes já desistiram de o procurar (“não é testável”, dizem). No entanto, acham que qualquer padre pode dizer que Deus existe, como se soubesse do que fala, e que tal atitude não tem qualquer conflito com a forma como a ciência obtém conhecimento.

1- The Economist, Fantasy turned reality

Em simultâneo no Que Treta!

8 de Junho, 2012 Ludwig Krippahl

Ódio é outra coisa.

Num post intitulado “Ódio Ateísta”, o Ricardo Pinho escreve que «O Diário Ateísta é poluição intelectual; um desperdício de energia eléctrica; uma tasca de asco e cuspo.»(1) E assim por diante. Apesar de me parecer uma generalização precipitada, concordo parcialmente com esta avaliação. Há coisas no Diário Ateísta que também me desagradam, que não publicaria em meu nome ou que não me interessa ler. No entanto, parece-me que o Ricardo erra, muito, na extrapolação que faz a partir deste juízo subjectivo.

Escreve o Ricardo que quando fundou o site ateismo.net, «O objectivo principal era […] «a despreconceitualização do ateísmo» mas que «Passados estes anos todos, é ele próprio um antro de preconceito.» Dá a ideia de que as coisas corriam bem quando o Diário Ateísta tinha uma política editorial rígida e agora, que cada um escreve como entende, ficou muito pior. Não é verdade. Eu também participei no DA há uns anos e o problema era, fundamentalmente, o mesmo. Também nessa altura havia muita coisa no DA que não me agradava. O que era de esperar. Afinal, a única coisa que os ateus têm garantidamente em comum é não acreditar que existam deuses. No resto, do sentido de humor à orientação política, discordam tanto quanto quaisquer outros. Além disso, o sistema antigo tinha a agravante de impor a todos os preconceitos de alguns. Por exemplo, havia uma regra que proibia posts em resposta a textos de outros blogs, o que sempre achei um disparate. E acabei por sair daquela encarnação do DA quando me rejeitaram um post sobre o aborto por o considerarem ofensivo, voltando só depois de decidirem deixar cada texto a cargo do seu autor. Agora, pelo menos, os preconceitos de cada um determinam apenas a sua escrita e não obrigam os outros.

O Ricardo pergunta «Qual é a estratégia, qual é o objectivo disto tudo?», referindo-se aos insultos aos crentes religiosos. A resposta está no próprio texto do Ricardo. Quando escreve que o DA é «uma tasca de asco e cuspo» e «voz histérica da parolice ateísta» também não parece ter estratégia ou objectivo além de dizer o que pensa. Mas isso, afinal, é o mais importante. O maior valor da liberdade de expressão não é instrumental. É intrínseco. Vale por si. Seja disparate ou revelação profunda, o mais importante é poder dizê-lo. Se quiséssemos garantir que todos os textos tivessem “estratégia e objectivo” teria de haver alguém a impor estratégia e objectivo aos outros, e esse seria um problema muito maior.

Mas o pior erro é esta coisa do “ódio”: «Ainda pensei que se poderia salvar esta página mudando-lhe o nome para Tasca Ateísta, mas até numa tasca há coisas boas. Mais acertado seria chamar-lhe Ódio Ateísta. [… houve] uma densificação da massa vil: e os odiosos acabaram por gravitar para onde há outros odiosos.» O ódio é um sentimento forte que implica querer mal ao outro. Pode-se inferir que sente algum ódio quem acredita que os ateus merecem uma eternidade no inferno ou que os terremotos são um castigo pela homossexualidade. Mas não se pode concluir que alguém odeia só porque goza ou escarnece de algo. Nem mesmo que diga dos outros que o que escrevem é «é poluição intelectual; um desperdício de energia eléctrica; uma tasca de asco e cuspo.» Quando leio o texto do Ricardo percebo que quer ser duro na crítica mas não concluo que odeia as pessoas de quem fala. Seria uma conclusão injusta e injustificada.

O Ricardo confunde duas coisas muito diferentes. A liberdade de expressão, que tem valor mesmo quando ofende, e o ódio de quem deseja mal aos outros pelo que pensam ou são. É uma confusão infeliz, especialmente neste contexto, porque aquilo que o Ricardo chama “ódio ateísta” são manifestações contra o ódio. O ódio religioso. Algumas podem expressar desprezo, outras podem ser de mau gosto, escárnio ou insulto, mas nenhuma defende que os crentes merecem o tormento eterno por acreditar no que acreditam. No ateísmo que o Ricardo rotula de odioso não há nada equivalente ao ódio que tantos religiosos manifestam contra os homossexuais, contra as mulheres, contra os apóstatas e ateus. Esta é uma diferença fundamental entre o ateísmo e as religiões. Os ateus não o são por obrigação, recompensa ou medo de castigo. Como tal, não consideram que os outros tenham obrigação de ser ateus ou que mereçam castigo se não forem. Mas a ideia da crença religiosa como uma virtude e obrigação moral trespassa praticamente todas as religiões. Isto leva as instituições religiosas a defender o ódio, no sentido muito específico de desejar o mal a quem não partilhar a crença certa. Segundo a doutrina cristã, por exemplo, eu mereço o inferno por achar que Jesus não tinha nada de divino e que o Espírito Santo é tão fictício como a Carochinha. É isto que sugere ódio.

Para concluir, queria apontar duas coisas ao Ricardo. Primeiro, a diferença entre as sociedades que toleram a «poluição intelectual», o «asco e cuspo» e a «parolice ateísta» e as outras sociedades onde as religiões têm mais poder. Dizer mal de Maomé é muito menos odioso do que apanhar dez anos de cadeia por isso (2). E, em segundo lugar, que temos de defender constantemente os nossos direitos para evitar perdê-los. Confundir a liberdade de expressão com o ódio é meio caminho andado para a censura religiosa, leis anti-blasfémia e outras expressões do ódio que motiva as religiões a condenar todos os que rejeitem a doutrina.

1- Ricardo Pinho, Ódio ateísta.
2- The Blaze, Man Gets 10 Years in Kuwaiti Prison for Allegedly Sending Anti-Prophet Mohammad Tweets

13 de Maio, 2012 Ludwig Krippahl

Treta da semana: Einstein dixit.

Segundo José Reis Chaves, espiritista brasileiro, «Os materialistas do passado incomodavam-se com a Igreja. Os de hoje se preocupam mais é com o espiritismo, por ser ele uma religião científica. […] Não é, pois, por acaso, que têm surgido muitos ateus fanáticos contra a doutrina codificada por Kardec, “o bom senso encarnado”.»(1) Pessoalmente, não me preocupo muito com o espiritismo, o Kardec ou a cor do seu bom senso. Preocupam-me mais coisas como o Estado português ter de pedir autorização ao Vaticano para mudar feriados, o negócio da religião não pagar impostos ou a forma como se ensina religiões nas escolas públicas. Se a «médium psicógrafa dra. Marlene Saes, de São Paulo (SP)» publica o «seu novo livro “Nas Águas do Mar da Vida”, pelo espírito Luizinho» e alguém o compra, pois que lhe faça bom proveito. Quanto à alegação de que o espiritismo é uma “religião científica”, concordo parcialmente. Dizer que «Para a física quântica, as coisas invisíveis são mais importantes do que as visíveis. E o espírito é invisível» ou «o espírito do médium tem que vibrar na sintonia da do espírito comunicante» não tem nada de científico, mas para religião basta.

O que me interessa mais no texto do José Reis não é a comunicação «de períspirito para períspirito», a aura, a quinta-essência ou o corpo bioplasmático. É esta frase de Einstein, tantas vezes mal compreendida quantas é usada em defesa da tretologia: «A religião sem ciência é cega, e a ciência sem religião é aleijada». Esta frase é frequentemente invocada como querendo dizer que a ciência complementa, e é complementada por, uma crença esperançosa no sobrenatural, uma devoção a um suposto criador e essas superstições envolvendo deuses, espíritos e vida depois da morte que associamos ao termo “religião”. No entanto, não era nada disto que Einstein queria dizer. No artigo de onde citam apenas aquela frase e, normalmente, sem referir a origem, Einstein explica bem que sentido estava a dar ao termo.

«em vez de perguntar o que é religião eu preferiria perguntar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dê a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser alguém que, de acordo com as suas capacidades, se tenha libertado dos grilhões dos seus desejos egoístas e se preocupe com pensamentos, sentimentos e aspirações aos quais se prende pelo seu valor sobrepessoal. Parece-me que o que é importante é a força deste conteúdo sobrepessoal e a profundidade da convicção acerca do seu significado avassalador, independentemente de haver alguma tentativa de unir este conteúdo a um Ser Divino, pois de outro modo não seria possível contar Buda e Espinosa como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de que não tem dúvidas acerca do significado e elevação desses objectos e propósitos que vão além da sua pessoa e não requerem nem admitem um fundamento racional. Existem com a mesma necessidade e factualidade da própria pessoa. Neste sentido, a religião é o esforço milenar da humanidade em se tornar claramente e completamente consciente dos seus valores e propósitos, e de constantemente os fortalecer e estender os seus efeitos.»(2)

Ou seja, neste sentido, “religião” refere um esforço de se guiar por algum ideal que transcenda interesses pessoais, mas sem implicar nada acerca de deuses, espíritos ou crenças no sobrenatural. Um ateu pode perfeitamente ser religioso no sentido que Einstein dá ao termo, e o exemplo que Einsten dá é que a «ciência só pode ser criada por aqueles que estejam completamente imbuídos de aspiração para a verdade e a compreensão». É isto que Einstein quer dizer com essa frase tão célebre e tão deturpada. A devoção sem conhecimento objectivo é cega e a investigação sem devoção à verdade é paralítica.

Isto não tem nada que ver com as crenças que normalmente chamamos religiosas nem com o espiritismo do José Reis Chaves, superstições acerca das quais Einstein também foi bastante claro. Por exemplo, nesta carta ao filósofo Erik Gutkind:

«A palavra Deus não é para mim mais do que a expressão e o produto da fraqueza humana, a Bíblia uma colecção de lendas honráveis mas puramente primitivas, lendas que, no entanto, são bastante infantis. Nenhuma interpretação, por mais subtil que seja pode (para mim) alterar isto… Para mim, a religião judaica é, como todas as outras religiões, uma encarnação da superstição mais infantil.»(3)

Os argumentos de autoridade são muitas vezes falaciosos e quase sempre fracos. Mas penso que há boas razões para concordar com Einstein para além do simples facto de se tratar de Einstein. E, seja como for, invocar Einstein como autoridade para apoiar doutrinas espíritas e tretas afins é um tiro no pé, seja no da aura, no bioplasmático ou no do períspirito.

1- Blog de Espiritismo, José Reis Chaves – ‘Abalado está o ateísmo’
2- Sacred-Texts, Science and Religion II, Science, Philosophy and Religion, A Symposium, 1941.
3- Letters of Note, The word God is the product of human weakness.

Em simultâneo no Que Treta!

29 de Abril, 2012 Ludwig Krippahl

Treta da semana: a Igreja social.

Nos comentários da treta da semana passada, o meu primo Luís Miguel Sequeira afirmou que «Se a ICAR fosse abolida em Portugal, o orçamento da Segurança Social teria de duplicar.»(1) Isto veio a propósito da possibilidade de Portugal denunciar a Concordata, o que não implicaria abolir religião nenhuma. Apenas deixaria a Igreja Católica ao nível de qualquer outra religião reconhecida pela Lei da Liberdade Religiosa. Mas a questão é interessante, e já ouvi muitas pessoas a dizer isto. No entanto, nunca com dados concretos que confirmassem tal estimativa. Por isso, pedi ao Miguel que apresentasse alguns números que fundamentassem. Segundo o Miguel, «O orçamento da ICAR tinha, em 2009, na parte das receitas cerca de 90 milhões de Euros; como todas as entidades sem fins lucrativos, isto significa que as despesas são sensivelmente as mesmas», e «59% [vem do Orçamento do Estado] (tal como acontece na maior parte das IPSS), o que significa que na realidade parte do orçamento da ICAR para acção social já vem do OE. Mas há 41% que não vêm.» O Miguel acrescenta que os custos da Igreja Católica são mais baixos do que os da Segurança Social porque «tem voluntários e membros que não são pagos de todo; e porque tem uma estrutura menos burocrática para administrar tudo», mas nota que há muitas instituições de solidariedade social que seguem o mesmo modelo.

Se estes valores estiverem correctos, o dinheiro envolvido na acção social da Igreja Católica equivale a menos de três milésimas dos 35 mil milhões de euros orçamentados para prestações sociais em 2012 (2). Mesmo assumindo que a Igreja Católica aplica o dinheiro de forma mais eficiente do que o Estado, dificilmente estas três milésimas irão equivaler a todo o resto, de tal forma que se tivesse de duplicar o orçamento da Segurança Social, de cerca de 21 mil milhões de euros, se a Igreja Católica fechasse as portas.

No entanto, é possível que estas contas subestimem os valores envolvidos. Em 2012, o Estado irá transferir 1.200 milhões de euros para as Instituições Privadas de Solidariedade Social, e é provável que uma fatia substancial desta verba vá parar a IPSS associadas à Igreja Católica. Ainda assim, o valor será uma pequena fracção das prestações sociais orçamentadas pelo Estado e, além disso, é dinheiro que o Estado dá à Igreja Católica, e não o contrário.

Outro problema é a questão da eficiência. Admito que, recorrendo a voluntários, se pode distribuir mais sopa aos pobres por menos dinheiro do que se tivermos de contratar profissionais para o fazer. No entanto, esse tipo de acção social é uma fatia muito pequena do bolo. Muito mais importante do que isto são as transferências directas para os beneficiários na forma de pensões, subsídios, abonos e outros apoios monetários. Para isto o voluntariado é irrelevante. Tal como é para outros serviços que o Estado garante e que são fundamentais para a sociedade. O voluntariado não serve para organizar a educação pública, serviços de saúde, justiça e infraestruturas de transportes, comunicações, energia e saneamento básico à escala nacional, e o impacto destes serviços é muito maior do que o da caridade. Caridade, aliás, que não é monopólio da Igreja Católica. É provável que, mesmo sem a Igreja Católica, houvesse outros dispostos a usar o dinheiro do Estado para financiar obras de caridade. Nem é claro que a Igreja Católica seja a melhor escolha, a julgar pela opinião de Jardim Moreira, padre e presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal (3).

Portanto, pela diferença de duas ou três ordens de grandeza entre o investimento público e a caridade co-financiada pelo Estado, parece-me obviamente falsa a alegação do Miguel. A Igreja Católica tem um peso insignificante na acção social em Portugal e está longe de ser insubstituível.

Além disso, há um problema ético de fundo nesta transferência de dinheiro público para as instituições de caridade, por muito pouco peso que tenha no orçamento do Estado. Quando o Estado paga o nosso tratamento hospitalar, a nossa educação, a nossa pensão de reforma ou invalidez, o subsídio de desemprego ou o abono de família, está a dar-nos o que é nosso de direito. Quando contribuímos com os nossos impostos para redistribuir a riqueza que a sociedade produz em conjunto, estamos a cumprir o nosso dever. Isto é justiça. Mas quando o Estado dá dinheiro dos contribuintes a instituições de caridade transforma a justiça em esmola. Isto é injusto para o beneficiário, que recebe o que é seu de direito, ou até menos do que isso, mas como se lhe fizessem um favor. E é injusto para o contribuinte, que deu esse dinheiro por dever para agora ser distribuído como caridade em nome de um deus, dos santos ou do padre que os representa.

1- Comentário em Treta da semana: a Concordata.
2- Relatório do Orçamento do Estado para 2012 (pdf).
3- Visão, “A igreja não é uma sucursal do Estado”.

Em simultâneo no Que Treta!

28 de Abril, 2012 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 15. Fundamental e dramático.

O Alfredo Dinis explicou porque julga ser «Equívoco fundamental» do ateísmo «estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião»(1). Alegando que os ateus escrevem com «uma extrema agressividade», publicam muitos livros, dizem que a religião faz mal e acham que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e] a inteligência está toda do lado dos ateus», o Alfredo conclui que «A missão dos não crentes é só uma: anunciar a boa notícia de que Deus não existe» com o objectivo de «erradicar a religião». Como, segundo o Alfredo, as críticas dos ateus ou são irrelevantes ou são positivas para “a religião”, é um equívoco dos ateus criticar publicamente a religião «porque pensando que estão a destruir a religião com as suas críticas, a sua acção acaba por ter um efeito positivo ou neutro». Isto, acrescenta o Alfredo, é «objectivamente dramático»(2).

Antes de passar às premissas, começo pela confusão principal. “Ateu” designa quem rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões, para o distinguir do crente, que rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões menos uma. Isto não tem nada que ver com escrever livros, blogs, ou dizer que a religião faz mal. Se eu deixasse de escrever ou falar sobre religião continuava a ser ateu. Seria um ateu calado, mais ao gosto do Alfredo, mas um ateu à mesma. Portanto, a alegada incapacidade desta contestação “beliscar a religião” não poderia ser um equívoco fundamental do ateísmo. No máximo, seria uma falha de comunicação.

No entanto, a premissa de que os argumentos dos ateus nunca “beliscam” a religião é difícil de aceitar. Desde os posts do Alfredo a alegar que não há nada aqui para ver às homilias do José Policarpo apontando o ateísmo como «o maior drama da humanidade»(3), há muitos indícios de beliscadela. Além disso, “religião” é um termo demasiado vago. Julgo que o Alfredo concorda que muitos argumentos científicos, que não invocam qualquer deus, beliscam dolorosamente as teses religiosas dos criacionistas. Ou as teses de que Atena nasceu da cabeça de Zeus, o deus escaravelho Khepra rebola o Sol pelo céu e Thor causa trovoadas com o Mjolnir. Basta um pingo de cepticismo para pôr também em causa muitas teses centrais da religião do Alfredo, desde a ressurreição de Jesus à assunção de Maria, infalibilidade papal ou a convicção de que só homens, e nunca mulheres, podem deter o poder mágico de benzer, transubstanciar e celebrar missas. A insistência numa vaga “religião”, sem nunca defender dogmas católicos em detalhe, faz-me suspeitar que o próprio Alfredo teme um beliscão.

Segundo o Alfredo, os ateus julgam que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e que] a inteligência está toda do lado dos ateus». Mais do que falso, isto é absurdo. Se fosse essa a minha opinião de todos os crentes não discutiria com nenhum deles. Não valeria a pena. Faria apenas o que faço com alguns criacionistas, que é criticar os seus disparates sem encetar grandes diálogos com eles, visto ser claro que não querem considerar os factos nem ter conversas inteligentes. Com o Alfredo passa-se o contrário; só esta conversa sobre os equívocos já vai no décimo quinto post. Há pessoas com quem é possível ter conversas inteligentes, outras com quem não se consegue, e isso não é função de ser crente ou descrente. É até muito mais uma questão de atitude do que de formação académica ou inteligência.

O Alfredo também está enganado acerca dos objectivos de discutir religião e ateísmo. O que me motiva, principalmente, é gostar de escrever o que penso, seja sobre copyright, astrologia, criacionismo ou catolicismo. O facto de os meus posts, por si só, não levarem a Maya a abandonar o negócio, o Mats a rejeitar o criacionismo ou a RIAA a aceitar a partilha de ficheiros não torna a minha liberdade de expressão num equívoco. Também não fico desmotivado por o Alfredo continuar padre depois de ler isto.

Em geral, os ateus não visam demover os crentes mais ferrenhos ou que tenham muito investido na defesa de alguma crença. É uma tarefa inglória e pouco motivadora. A motivação principal é que a escrita e o diálogo valem por si. Somos uma espécie exímia a comunicar e tiramos grande prazer disso, mesmo quando não traga consequências práticas. Quanto ao esforço de persuasão, esse é dirigido aos outros. Para qualquer crença, além dos defensores acérrimos e dos opositores declarados há uma maioria silenciosa que faz toda a diferença. Escrevo o que escrevo pelo prazer do diálogo, pelo alívio do desabafo e, também, para mostrar aos indiferentes que uma crença falsa não merece respeito só por fé ou insistência. É isto que o Alfredo confunde. Acabar com a fé religiosa não é um objectivo viável, mas é viável diminuir a reverência que a maioria concede a certos disparates só por virem de religiões, tradições ou fanáticos. E isso, parece-me, os ateus têm conseguido. Por exemplo, de Pio XII a Bento XVI, em seis décadas, nota-se uma grande diferença na arrogância com que os dirigentes católicos podem alegar representar o criador do universo e conhecer os seus milagres e mistérios.

A ideia destes textos não é converter o Alfredo. Tampouco me importa o que o Alfredo acredita. O que pretendo com isto, além do gozo que me dá a escrever, é contribuir, por pouco que seja, para que as alegações de bruxos, padres, videntes e afins sejam avaliadas apenas pelo mérito que tiverem em vez de aceites como autoritárias simplesmente por virem de quem vêm. Isto não me parece um equívoco. Parece-me um objectivo meritório, mesmo que não seja possível atingi-lo, porque sem um esforço constante neste sentido só vamos escorregar no sentido oposto. O importante não é que a sociedade acabe com as religiões e demais superstições. O que importa é que a superstição não nos impeça de ter uma sociedade livre, justa e esclarecida.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Alfredo Dinis, um dramático equívoco
3- DN, Cardeal diz que maior drama é a negação de Deus

Em simultâneo no Que Treta!

22 de Abril, 2012 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 14. Filosoficamente nada.

O Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental» do ateísmo é o «maior drama [de] estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião»(1). Isto não só confunde equívoco com drama e impedimento como demonstra que o Alfredo ainda não percebeu aquilo que tenta criticar. O Alfredo tem a sua crença de cristão no centro da sua vida e na origem dos seus valores. Não admira que julgue dramático que outros rejeitem as hipóteses de haver vida eterna, criação inteligente ou um ser omnipotente que nos ama a todos. Mas o meu ateísmo não tem nada de fundamental. É apenas um efeito colateral de dois factores: a minha opção de formar opiniões que se conformem às evidências e a preponderância de evidências mostrando que não há um propósito inteligente para o universo nem vida depois da morte. Eu rejeito estas crenças do Alfredo tal como rejeito a crença em Osiris, no professor Karamba ou na astrologia. Sem drama, impedimento ou sequer grande preocupação com o que os outros acreditam. O que oponho nestas coisas das religiões, astrologias, homeopatias e tretas afins é apenas o seu impacto social negativo. Esse gostaria de ver desaparecer, admito, mas a minha incapacidade de atingir esse objectivo não constitui, por si, qualquer equívoco.

Neste episódio da sua série de equívocos, o Alfredo foca a resposta de Lawrence Krauss à questão «Porque existe algo em vez de nada?». Segundo o Alfredo, Krauss equivoca-se por querer substituir a definição filosófica de “nada” como “não-ser” por uma definição científica. Infelizmente, o Alfredo não explica porque é que isto é um equívoco, invocando apenas que «Os neopositivistas do Círculo de Viena já tinham transformado a filosofia numa ‘serva da ciência’», um salto particularmente confuso. Mas, para explicar a confusão, vou começar com exemplo mais fácil. O tempo.

Antes de Einstein a filosofia já tinha tentado definir este termo, dividindo-se em vários campos mas concordando que o tempo, fosse ideia ou real, fosse relacional ou absoluto, definia uma ordem única para os acontecimentos. Se A ocorresse antes de B, julgavam os filósofos, A ocorria antes de B em qualquer referencial e para qualquer observador. Mas Einstein notou que este conceito de tempo não correspondia à realidade e substituiu a definição filosófica por uma definição operacional. O tempo é aquilo que for medido por processos regulares que possam servir de relógio. Pela teoria da relatividade, é possível que A ocorra antes de B num referencial, B ocorra antes de A noutro referencial e ocorram em simultâneo noutro ainda. Hoje sabemos que até a ordem pela qual acontecimentos ocorrem depende do referencial.

Isto não é neopositivismo nem faz da filosofia uma serva da ciência. Ao contrário do que julgavam os positivistas, não se pode separar completamente os dados das teorias. Só se pode obter dados tendo teorias com que os interpretar, e é preciso filosofia para criar teorias antes de ter dados. Só que, sem dados, não se consegue convergir para as teorias certas. Isso faz-se com ciência, usando dados para testar especulações, rever conceitos e adaptar teorias às evidências. Ou seja, a filosofia e a ciência são apenas fases do mesmo processo contínuo de compreensão da realidade. É preciso que a filosofia especule, pois sem especular não se consegue sequer começar, mas é igualmente necessário que a ciência vá corrigindo e afinando essas especulações, pois sem isso não se sai da confusão inicial.

É isto que estão a fazer com a noção de “nada”. As definições filosóficas deram sentido ao termo recorrendo apenas a outros termos e conceitos. Por exemplo, o nada como não-ser. É o melhor que se consegue sem dados concretos que se possa usar. Mas, agora, a física pode dar uma definição operacional de “nada” que encaixa melhor com os dados que temos. É essa a definição que Krauss defende, e que parece ter escapado ao Alfredo: «o nada que normalmente chamamos espaço vazio. Ou seja, se tomar uma região de espaço e me livrar de tudo o que lá estiver – poeira, gás, pessoas e até radiação que passe por lá, absolutamente tudo de dentro dessa região…»(2). E o que sabemos agora mostra que desse nada pode, espontaneamente, surgir um universo. Já não precisamos de explicar porque há algo em vez de nada como faz a teologia, definindo “nada” como um não-ser vazio de tudo excepto um deus omnipotente desejoso de criar um universo. O mecanismo é bem mais simples. Basta o nada. Não o nada teológico ou filosófico, mas o nada real da física.

Queixa-se também o Alfredo de que Krauss «decidiu transformar as questões que começam por ‘Porquê?’ por questões que começam sempre por ‘Como?’ […] Como se um sociólogo pudesse proceder ao estudo sociológico do suicídio estudando simplesmente os diversos modos como as pessoas se suicidam.» Esta analogia é errada porque, por definição, o suicídio é um acto intencional. Obviamente, nesse caso não podemos excluir a motivação que levou o falecido a terminar a sua vida deliberadamente. Mas seria um erro do sociólogo estudar todas as mortes assumindo sempre haver motivação e intenção inteligente. Acidentes, doenças, velhice, tudo isso pode levar à morte por um “como” sem qualquer “porquê”, neste sentido de intenção e propósito. Enquanto que “Como?” é sempre uma pergunta válida, cuja resposta atenta e fundamentada pode, se for caso disso, suscitar um “Porquê?”, é um erro começar pelo “Porquê?” antes de perguntar “Como?”, porque essa pergunta assume logo à partida haver propósito e inteligência. No caso da origem do universo, essa premissa é mera especulação sem fundamento e é um equívoco começar por aí quando a melhor resposta ao “Como?” não indica qualquer “Porquê”.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Lawrence Krauss, A Universe from Nothing.

Em simultâneo no Que Treta!

31 de Março, 2012 Ludwig Krippahl

Perdido na tradução.

O Alfredo Dinis traduziu assim uma afirmação de Dawkins, num debate com Dennett:

«Não é apenas a nossa improbabilidade que nos torna agradecidos por [estarmos] aqui, porque de facto somos muito improváveis. Somos também privilegiados não apenas por estarmos aqui mas também por pertencermos à espécie humana, porque a espécie humana é realmente única: entre todos os animais somos os únicos a saber que vamos morrer. Mas somos também únicos por sabermos que vale a pena existirmos. É claro que é difícil lidar com o sofrimento e a perda, mas há alguma consolação em sabermos o quão privilegiados nós somos por estarmos aqui.»

Em seguida, critica-a «porque afirma que nos devemos sentir agradecidos, mas não diz a quem.»(1) É um erro, mas é um erro proveitoso porque revela uma diferença importante entre a atitude de crentes como o Alfredo e descrentes como Dawkins.

A palavra original é thankful, que o Alfredo traduz por agradecido. Noutro contexto, a tradução estaria correcta. Por exemplo, estar thankful to é estar grato a alguém. Mas thankful for pode ter um significado diferente. Se alguém diz estar thankful for the rain, por exemplo, o mais correcto seria traduzir como estando satisfeito, ou contente, por ter chovido. Precisamente porque, neste uso, thankful não implica estar grato a alguém.

A etimologia destas palavras ajuda a perceber a distinção. Enquanto “grato” e “agradecido” vêm de “graça”, o que alguém dá sem cobrar, e referem não só o contentamento de quem se sente grato mas também a relação de gratidão que tem com o outro, “thank” vem da mesma raiz de “think” e “thought”, e refere o sentir-se afortunado por algo que aconteceu sem implicar forçosamente uma relação de gratidão para com alguém.

Um factor que pode ter contribuído para este erro é a crença religiosa do Alfredo. Em geral, uma religião de sucesso precisa de convencer os seguidores de que estão em dívida para com aquele deus e, vicariantemente, para com os seus alegados representantes. Que estamos aqui pela graça de Jahvé, Allah, Odin, Enki ou que raio seja (2). Partindo deste princípio, dificilmente ocorreria ao Alfredo que se pudesse estar thankful for qualquer coisa sem estar também grato a alguém que o tenha feito. No entanto, para um ateu isto não faz confusão nenhuma. O que deixa os ateus perplexos é o raciocínio pelo qual os crentes concluem que quem gosta de saber como a realidade é se transforma numa máquina sem sentimentos, como o Alfredo descreve em seguida:

«Mesmo o sentimento de maravilha do cientista perante a beleza do universo se baseia no sabermos cientificamente porque estamos aqui. Há uma desdramatização total da vida humana. Fico sem saber se ao encontrar uma pessoa em grande sofrimento por ter [perdido] um ente querido, por exemplo, a deverei aconselhar a procurar consolação junto de um biólogo, o qual lhe explicará a razão científica da existência, do sofrimento e da morte.»

É perfeitamente possível ter valores e sentimentos e, ao mesmo tempo, admitir que o universo surgiu por processos naturais desprovidos de propósito. Podemos sentirmo-nos afortunados pela nossa existência e encontrar consolo no que somos e com quem vivemos sem assumir que tudo acontece pela vontade de um homem invisível no céu. Não é preciso iludirmo-nos com histórias de milagres e de vida eterna para enfrentar o que a vida tem de mau e gozar o que tem de bom. Isto parece-me tão evidente que, até ver este erro de tradução do Alfredo, nunca tinha percebido porque é que os crentes julgam que dar valor ao que a natureza objectivamente nos diz – que não há deuses – empobrece a nossa vida.

Agora percebo. O foco central dos valores do crente é a gratidão para com aquele que julgam ter criado isto tudo. As coisas não valem pelo que são nem pelo bem que fazem. Valem porque são uma graça do criador. Para quem vê o mundo desta maneira, concluir que não há deuses não só exige que torça o que pensa dos factos mas também que faça tábua rasa dos seus valores. É por isso que lhes custa perceber como quem não crê num deus possa ter valores. E é por isso que não lhes ocorre como alguém possa estar thankful for sem estar também thankful to.

1- Alfredo Dinis, Dawkins sobre o sentido da vida
2- Tangencialmente a propósito, Sumerians Look On In Confusion As God Creates World

Em simultâneo no Que Treta!