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Ludwig Krippahl

19 de Abril, 2014 Ludwig Krippahl

É ideologia, mas não como a outra.

Num comentário ao meu post anterior, o Carlos Soares escreveu que «O ateísmo é uma ideologia, como outra qualquer» (1). Em parte tem razão. Parte do que referem quando me chamam ateu é a minha atitude de não venerar nada, de não ter fé e de não reconhecer coisa alguma como divina. Isso, admito, é tão ideológico como ter fé ou venerar uma divindade, pelo menos no sentido de ideologia como “visão do mundo”. Em ambos os casos, tanto o crente como o ateu têm uma noção normativa de qual a melhor atitude a ter. No entanto, o Carlos está enganado ao julgar que o ateísmo é uma ideologia «como outra qualquer». Em particular, é muito diferente das ideologias religiosas.

A outra parte do que referem quando me chamam ateu é a minha opinião de que o universo não foi criado por algum ser inteligente com poderes sobrenaturais. Essa parte é completamente independente da minha ideologia de não religioso. É apenas uma conclusão à qual chego da mesma forma que concluo que não tenho o poder de mover objectos com a mente nem consigo fazer feitiçarias. Gostava que a realidade fosse outra. Gostava de ter poderes especiais ou de ser amigo pessoal do criador do universo. Mas os factos indicam que não é esse o caso e, quando se trata de factos, sinto que devo pôr de lado os meus desejos e encarar a realidade como ela se apresenta. Portanto, as minhas conclusões acerca dos factos não derivam da minha atitude de não venerar divindades. Derivam apenas da informação na qual posso, objectivamente, fundamentar conclusões.

O mesmo se passa no outro sentido. A minha ideologia de irreligioso também não depende dos factos serem assim ou assado. Se o universo tivesse sido criado por Deus, se Jesus viesse a minha casa explicar como o tinha feito – a bíblia é notoriamente omissa nesses detalhes – e até mesmo se nos tornássemos grandes amigos, eu continuaria ateu na minha ideologia. Admitiria ser verdade que existia esse tal criador e que tinha feito tudo e um par de botas mas continuaria a não ter qualquer disposição para missas, rezas, veneração ou fé. Até podia simpatizar com ele. Se ele merecesse, até poderia amar Deus. Mas nunca “amar a Deus” como o crente religioso, com aquela preposição que nem sequer compreendo. A minha falta de disposição para me ajoelhar, rezar, ter fé ou participar em rituais é algo subjectivo que não tem nada que ver com a minha opinião acerca dos factos.

É nesta independência entre os aspectos ideológicos e as opiniões factuais que o ateísmo difere fundamentalmente das ideologias religiosas. Porque cada religião não só promove uma ideologia de veneração e submissão mas também entrosa esses aspectos subjectivos com alegações objectivas acerca dos factos que, por sua vez, impõe aos seguidores pelo dogma e pela fé. Isto é perigoso. Ter uma ideologia – uma “visão do mundo” – que assumimos puramente subjectiva e que se restringe apenas à forma como nos sentimos perante a realidade, sejam quais forem os factos, não levanta qualquer problema no convívio com outras ideologias igualmente subjectivas. Eu não gosto de rezar nem de ir à missa mas não me faz diferença que outros gostem. É uma mera questão de gosto, como uns gostarem de ervilhas e outros não. O que me preocupa nas religiões é que, para o religioso, a ideologia não se restringe ao subjectivo. Uma “visão do mundo” que distorce os factos e obriga à adesão intransigente a certos dogmas mistura perigosamente juízos de valor com questões objectivas. Por exemplo, um elemento central do cristianismo é que Jesus se sacrificou pelos nossos pecados e que apenas pela fé no poder redentor desse sacrifício merecemos evitar uma eternidade de sofrimento. Na Europa de hoje já são poucas as pessoas que levam isto a sério pelo que, felizmente, esta crença se torna cada vez mais inconsequente. Mas são muitos os exemplos históricos das consequências desta ideia de que quem discorda de uma alegação factual merece ser castigado e, infelizmente, em países menos esclarecidos ainda hoje muita gente sofre por esta misturada entre objectivo e subjectivo.

É verdade que, além do meu ateísmo objectivo de concluir que o universo não foi criado por um ser inteligente eu tenho também o ateísmo subjectivo e ideológico de não adorar nada como sagrado, nem mesmo que exista. Nem Jesus, nem o Sol, nem sequer o Joe Pesci. Mas esses meus ateísmos são independentes, o que me permite debater factos sem arriscar crises de fé e aceitar ideologias diferentes como meras diferenças de gosto. As ideologias religiosas, ao contrário do que o Carlos sugere, não são a mesma coisa. A confusão de factos com juízos subjectivos impede o religioso de discutir a verdade confortavelmente pelo perigo constante de ver refutada alguma tese a que dá valor, obriga-o a imiscuir-se na vida privada de terceiros condenando como “pecado” atitudes diferentes da sua, mesmo que inócuas, e leva-o a considerar ataque ou ofensa qualquer tentativa de mostrar que os dogmas que defende são infundados. Estas ideologias, muito diferentes do ateísmo, são socialmente prejudiciais e potencialmente perigosas.

No fundo, a grande luta daquilo a que muitos, por ignorância histórica, chamam “novo ateísmo”, é a luta por esta separação. Não é uma luta para acabar com a crença religiosa ou com a adoração de divindades. É a luta pela transformação dos religiosos em pessoas capazes de distinguir entre a realidade, objectiva, que todos partilhamos e os valores, subjectivos, com que cada um orienta a sua vida privada. Basta isso para que cada um possa aproveitar para si o que achar que a religião tem de bom sem prejudicar os outros com dogmas e disparates.

1- Treta da semana (passada): Agora tudo é religião…

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5 de Abril, 2014 Ludwig Krippahl

Teorias.

Por infeliz acidente histórico, “teoria” é a palavra que designa o nível mais alto do conhecimento humano: a teoria científica. Infeliz porque, durante um longo percurso, o termo acumulou muitos sentidos diferentes e, agora, quem quiser propor um qualquer conjunto de crenças como alternativa à ciência pode sempre apontar que a ciência “é só teorias”. Como se a ciência fosse equivalente, ou até inferior, aos disparates sem fundamento de coisas como o criacionismo, a teologia, as modas da new age e afins. Para desabafar sobre o erro destas alegações vou distinguir três tipos de produto da ciência e procurar o seu paralelo nas supostas alternativas.

Primeiro, a hipótese. A hipótese é uma proposição, uma expressão que pode ser verdadeira ou falsa. Pode ser “No princípio criou Deus os céus e a terra” ou “a massa do electrão é 1836 vezes menor do que a do protão”. Não interessa o tema. Há hipóteses em todos os sistemas de crenças, sejam ciência ou não, porque a crença, no fundo, é simplesmente a atitude de aceitar uma hipótese como verdadeira. Mas logo aqui há uma grande diferença entre a ciência, onde incluo a parte mais rigorosa da filosofia, e coisas como teologias, superstições e ideologias várias, onde incluo as partes mais vagas da filosofia, aquelas que facilmente se confundem com literatura, poesia ou má ficção. A diferença está na forma de encarar as hipóteses.

Do lado da ciência, as hipóteses são um ponto de partida. São matéria prima para desbastar, escavar e polir até encontrar algum cristal de verdade que resista à abrasão pelos factos. Do outro lado até evitam chamar-lhes hipóteses. São hipóteses à mesma, porque podem ser verdadeiras ou falsas. Normalmente até são falsas. Mas, para disfarçar, chamam-lhes dogmas, doutrina, revelação, intuição e essas coisas. Desse lado da cerca as hipóteses não são um ponto de partida e muito menos algo que possa rejeitar ou corrigir. São a Verdade. Algo perante o qual o crente se ajoelha em veneração e para além do qual se recusa ir. Esta é uma grande diferença entre a ciência e o resto: o ponto final do percurso dessas alternativas corresponde ao ponto de partida no caminho que a ciência faz até ao conhecimento.

Outro tipo de produto da ciência é o modelo. Por exemplo, a tabela periódica, as equações das orbitais atómicas do hidrogénio ou a maqueta do ADN que Crick e Watson fizeram com arame e cartão. Um modelo não é uma afirmação nem uma hipótese. Por si só, uma tabela, equação ou maqueta não é verdadeira nem falsa nem é objecto de crença. A particularidade do modelo é representar parte da realidade com suficiente detalhe e objectividade para que dele se possa inferir um conjunto coerente de hipóteses concretas. Sendo uma descrição detalhada e objectiva, o processo pelo qual se infere hipóteses a partir do modelo não depende da crença ou fé de cada um. Há uma maneira bem definida de ler e interpretar a tabela periódica que não depende de acreditarmos naquilo que lá está escrito. É muito difícil encontrar modelos fora da ciência. A astrologia recorre a modelos, mas são os da astronomia. O criacionismo faz de conta que tem um modelo de como surgiu a vida na Terra, mas acaba por não ter qualquer descrição coerente com o mínimo detalhe. Tem apenas um conjunto solto de hipóteses acerca de Deus ter feito este milagre aqui e aquele ali. Em geral, é isto que se passa com as religiões e restantes superstições. Interpretam textos sagrados, discorrem sobre intuições e alegadas revelações e invocam a fé mas nunca produzem uma representação detalhada que enquadre sem ambiguidade as hipóteses em que acreditam. Não há nada na teologia ou em qualquer esoterismo com o detalhe e a objectividade de uma fórmula química, um mapa ou uma equação.

Finalmente, a ciência produz teorias. Ao contrário da forma como muitos usam o termo, uma teoria não é um bitaite. É algo muito mais profundo e até difícil de apreciar sem ganhar primeiro alguma familiaridade com este tipo de coisas. Uma teoria é um esquema gerador de modelos. É uma estrutura rigorosa de conceitos e relações que especifica que modelos são possíveis, e é de tal forma restritiva que, normalmente, basta saber alguns parâmetros para reduzir as possibilidades a apenas um modelo. Por exemplo, a teoria da relatividade permite-nos saber onde um asteróide vai passar décadas mais tarde apenas observando a sua velocidade e posição (1). As teorias científicas são também muito abrangentes. Com a teoria da relatividade podemos modelar o movimento de planetas e estrelas, a trajectória de electrões num tubo de raios catódicos e até medir a perda de água no solo da Índia pelo efeito na órbita de satélites (2).

É um erro propor teologias ou misticismos como vias de conhecimento paralelas à ciência porque são meros vestígios de abordagens rudimentares. Admito que a crença nessas hipóteses possa ter valor subjectivo para algumas pessoas mas, por muito valor que tenham enquanto crença, como conhecimento não valem nada. Sem suporte na realidade, nunca passaram daquela fase especulativa inicial. Para organizar hipóteses em modelos detalhados é preciso testar e escolher com cuidado as que melhor correspondem à realidade. Senão, sempre que se entra em detalhes os erros tornam-se evidentes. O resultado é que, fora da ciência, as afirmações acerca da realidade ou são vagas demais para dizerem o que quer que seja ou são claramente disparatadas. E para encaixar os modelos em teorias que unifiquem aspectos da realidade tão diferentes como, por exemplo, galáxias e electrões ou baleias e vírus, é preciso uma compreensão profunda que só surge depois de séculos a corrigir erros e a rejeitar ideias falsas. Só então é que o que sobra começa a encaixar. Este percurso foi exclusivo da ciência. Não há nada fora da ciência com um palmarés tão grande de erros corrigidos. Não há nada fora da ciência que tenha ido tão longe. Por isso, não há nada fora da ciência que chegue a ter teorias. Se bem que o melhor que a ciência pode oferecer é, realmente, “só teorias”, as alternativas ficam todas muito atrás, sem passarem sequer das hipóteses.

1- Wikipedia, 99942 Apophis
2- NASA, NASA Satellites Unlock Secret to Northern India’s Vanishing Water

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9 de Março, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a crença básica de Plantinga.

Há poucas semanas critiquei uns argumentos absurdos que o filósofo Alvin Plantinga apresentou contra o ateísmo (1). Várias pessoas responderam a essas críticas mas, curiosamente, sem mencionar nada que resolvesse os problemas na argumentação do Plantinga. Simplesmente alegaram que eu não sabia nada da epistemologia que Plantinga defendia o que, além de falso é irrelevante para criticar o que ele disse na entrevista. Mas um post sobre uma ideia central naquilo que o Plantinga defende pode ajudar a perceber porque é que tenho tão pouca admiração por este filósofo.

Plantinga argumenta que é racional acreditar em Deus mesmo sem ter evidências propondo que “uma crença C é justificada para o sujeito S se e só se C for gerada por faculdades adequadamente funcionais num ambiente apropriado e de acordo com um plano bem sucedido para a produção de verdade” (2). Simplificando e ignorando algumas complicações filosóficas, uma crença é justificada se surge por um processo fiável nas condições certas. Assim, se Deus existir e tiver criado nos humanos uma predisposição para ter fé na sua existência e essa predisposição for fiável então a crença na existência de Deus será justificada pela fé. Mesmo que isto fosse uma epistemologia satisfatória não suportaria a conclusão de que é racional acreditar em Deus pela fé porque essa crença só seria justificada se Deus existisse. Na melhor das hipóteses será um argumento a favor do agnosticismo. Mas o problema desta tese de Plantinga é mais fundamental. Para que uma crença seja justificada não basta que surja por um processo fiável. É preciso também que quem adopte essa crença saiba que ela surgiu por um processo fiável.

Este problema é evidente num artigo mais antigo do Plantinga, onde ele propõe esta sua epistemologia como uma modificação do fundacionismo (3). Resumidamente, o fundacionismo defende que qualquer crença ou é justificada com recurso a outras crenças justificadas ou é uma crença básica, auto-justificada por ser auto-evidente e impossível de alterar. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal será uma crença básica porque é auto-evidente e não posso sequer considerar alternativas. Se sinto não posso crer que não sinto.

Plantinga tenta relaxar esta exigência e defende que para uma crença ser básica – i.e. não depender de outras crenças para se justificar – basta que surja nas condições certas. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, nas condições certas, não só é auto-justificada a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal* mas também a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal. Se a minha visão funciona bem, defende Plantinga, então justifica-se crer que o que eu sinto corresponde à realidade. No entanto, a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal não pode ser básica porque só se justifica se eu acreditar também que a minha visão está a funcionar bem. Em pequeno, num estado febril e meio a dormir, tive uma visão vívida de um belo copo de cristal a flutuar à minha frente, reflectindo a luz em imensas cores. A crença de que eu tive essa visão pode ser básica mas não considerei justificável crer que se tratava de um copo de verdade porque, naquele momento, não acreditei que o meu sistema nervoso estivesse funcional. Plantinga quer varrer este problema para debaixo do tapete exigindo unicamente que o processo esteja a funcionar correctamente nas condições certas mas isso não basta porque o sujeito tem de o saber também. Suponhamos que eu vi aquele copo porque Deus fez um milagre e criou um copo mágico a flutuar à minha frente quando eu estava cheio de febre. Nessas condições eu estava a ver um copo real por meio do meu sistema nervoso, que Deus tinha concebido para identificar copos de cristal de forma fiável, em condições tais que tudo estaria a funcionar bem. Mas, mesmo assim, não seria justificado eu acreditar que o copo era verdadeiro se não sabia do milagre e julgava que estava a alucinar com a febre.

Resumindo, Plantinga tenta fazer aqui um atalho na epistemologia defendendo que alguém pode ter uma crença justificada apenas pelo processo como a crença surgiu sem precisar de justificar porque acredita que o processo é fiável. Isto não faz sentido. Se eu sinto que estou a ver uma árvore, em condições normais, tenho justificação para crer que é mesmo uma árvore mas porque tenho justificação para crer que a minha visão é fiável nessas condições. Por exemplo, pela consistência com que tenho conseguido identificar árvores no passado. Mas se vejo um fantasma, ou se sinto Deus, não posso justificar crer que estou a sentir algo real sem justificar primeiro a premissa de que o meu sistema nervoso é adequado para identificar correctamente estas entidades. E mesmo que se dê esta borla, Plantinga fica apenas com um argumento circular: se Deus existir, diz ele, justifica-se crer pela fé; mas se não existir então não se justifica. Isto só reforça a conclusão de que é irracional acreditar em Deus pela fé enquanto não houver confirmação independente da sua existência e da adequação da fé para apurar este tipo de factos.

*Ressalva: isto segundo o fundacionismo. Eu não concordo com a abordagem de tentar encontrar crenças básicas que não carecem de justificação porque até a sensação de ver o copo surge de correlações estatísticas num grande número de experiências que, ao longo da vida, foram moldando o sistema nervoso capaz de produzir essa sensação. Ou seja, a justificação, em última análise, não está em elementos atómicos mas na relação de grandes conjuntos de factores. Mas, como diria a grande filósofa Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada.

1- Treta da semana (passada): os argumentos.
2- Plantinga, Tooley, 2008, Knowledge of God.
3- Plantinga, 1981, Is Belief in God Properly Basic?; Nous 15: 41-52.

Em simultâneo no Que Treta!

24 de Fevereiro, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): os argumentos.

Numa entrevista no New York Times, o famoso filósofo e apologista católico Alvin Plantinga argumentou que o ateísmo é irracional e que a explicação para 62% dos filósofos serem ateus é ser psicologicamente difícil aceitarem que Deus existe (1). Mas não explicou porque é que esta alegada limitação psicológica haveria de afectar mais os filósofos do que, por exemplo, os analfabetos, e a pobreza os seus argumentos são uma desilusão, vindos de alguém tão citado pelos católicos.

Primeiro, argumenta que a ausência de evidências para a existência do deus dos católicos só justificaria o agnosticismo e nunca o ateísmo. Quando o entrevistador menciona o bule de Russel, um hipotético bule de loiça a orbitar o Sol entre a Terra e Marte que concluímos não existir mesmo sem podermos prová-lo (2), Plantinga alega que isso é diferente por termos evidências da inexistência do bule: «tanto quanto se saiba, a única forma de pôr um bule nessa órbita seria se algum país com capacidades para tal a lançasse para lá. Mas nenhum país com essas capacidades iria desperdiçar recursos em tal coisa. Além disso, se algum o fizesse apareceria nas notícias e saberíamos que o tinha feito». Este argumento não serve porque, ao contrário do que Plantinga alega, ele invoca precisamente a falta de evidências para rejeitar a existência desse bule. Assume que o bule só pode estar em órbita se algum país o lançar porque não tem evidências de haver outras formas de o colocar lá, como por magia, milagre ou intervenção de extraterrestres. Assume que nenhum país o faria porque não tem evidências de que o faça e que seria tema de notícia porque não tem evidências de haver alguma conspiração secreta para pôr bules em órbita. Inexistência de evidências para algo e evidências da inexistência de algo não são duas coisas independentes e completamente distintas como Plantinga quer fazer parecer.

Outro exemplo de Plantinga torna isto mais claro: «falta de evidências […] não justifica o ateísmo. Ninguém acha que há evidências para a proposição de que o número de estrelas é par; mas também ninguém pensa que daí se conclui que o número de estrelas é ímpar». Neste caso, o agnosticismo é realmente a posição mais justificável. Mas vamos supor que a proposição em causa era outra. Por exemplo, que o número de estrelas é múltiplo de dez. Nesse caso já teríamos de ter em conta que há nove vezes mais possibilidades de não ser múltiplo de dez do que de ser. Se a proposição for de que o número de estrelas é múltiplo de cem, de mil ou de dez mil, a justificação para a rejeitar como falsa é cada vez mais forte, e cada vez menos razoável será ficar indeciso. Se alguém alegar, por exemplo, que o número de estrelas do universo é um múltiplo de 166221987090122196, é perfeitamente razoável rejeitar a alegação simplesmente por não haver evidências suficientes para compensar a sua inverosimilhança a priori.

É este o problema das alegações acerca da existência de algo. Afirmar que algo existe é afirmar como verdadeiras todas as proposições que descrevem as suas alegadas propriedades. Por exemplo, afirmar que o deus católico existe é afirmar que criou o universo, é inteligente, é bondoso, é omnipotente, é pai, filho e espírito santo, morreu por nós, nasceu de Maria, transubstancia hóstias e uma data de outras proposições que têm de ser verdadeiras para ser verdade a proposição de que esse deus existe. Esta conjunção é tão inverosímil à partida que só com evidências muito fortes a seu favor se justificaria sequer o agnosticismo. O bule de Russel, ao qual basta apenas ser bule e estar entre a Terra e Marte, é muito mais verosímil do que qualquer deus de qualquer religião que eu conheça e ninguém duvida da sua inexistência.

Plantinga alega também que o facto de não ser preciso invocar qualquer deus para explicar seja o que for é uma fraca justificação para o ateísmo: «Também não precisamos da Lua para explicar os lunáticos mas não se pode concluir daí que se deva crer que a Lua não existe». Por outro lado, defende que a melhor razão para crer no deus dos católicos é a experiência religiosa. Ou seja, não se trata de acreditar que Deus existe por isto explicar algo mas porque o crente sente que esse deus existe. Há tempos escrevi sobre os problemas de assentar as crenças religiosas numa alegada sensação. Não há consenso, as sensações são pouco fiáveis e nunca uma sensação pode dar o detalhe necessário para fundamentar os dogmas das religiões (3). Mas este argumento de Plantinga mostra outro problema. Nós acreditamos que a Lua existe porque vemos facilmente uma bola grande brilhante no céu à noite. Essa visão é uma experiência imediata, mas a hipótese da existência da Lua não é a mera experiência de a ver; é a melhor explicação para a causa dessa experiência. E de muitas outras coisas, desde as filmagens das missões Apollo até às marés. Isto é verdade para qualquer hipótese acerca do que sentimos: justifica-se crer na hipótese se for a melhor explicação para essa sensação. Também assim, mesmo que alguém creia em Deus porque sente que Deus existe, essa crença é justificada apenas como hipótese explicativa para essa sensação. Por isso, uma boa justificação para o ateísmo, entre outras, é que as sensações dos crentes podem ser melhor explicadas por factores corriqueiros da psicologia e sociologia do que invocando a existência de deuses omnipotentes, criadores do universo e transubstanciadores de hóstias.

Depois de ler os argumentos de Plantinga, parece-me que o que carece explicação não é que 62% dos filósofos sejam ateus. É haver 38% que ainda não admitiram ter percebido que estas coisas dos deuses são todas uma treta.

Errata: O Plantinga não é católico (obrigado pela chamada de atenção). Por isso não deve estar a argumentar a favor do catolicismo. Ainda assim, é interessante apontar que tanto faz, porque os argumentos dele servem igualmente bem para quase todas as religiões.

1- NY Times, Is atheism irrational?. Recomendo também esta resposta do Massimo Pigliucci: Is Alvin Plantinga for real? Alas, it appears so (via Facebook)
2- Wikipedia, Russell’s teapot
3- Sentir (aquele) deus.

Em simultâneo no Que Treta!

5 de Fevereiro, 2014 Ludwig Krippahl

Confusões.

O Vítor Cunha faz umas alegações de onde conclui que os ateus que se associam são “maluquinhos”. O texto é desconexo e não se percebe o raciocínio, se algum teve por trás, mas é um apanhado conveniente de disparates e aproveito para agradecer o trabalho que o Vítor teve a compilá-los. Vou seguir a ordem do texto, se bem que seja praticamente indiferente.

O Vítor alega que é paradoxal e irónico que os ateus formem associações «pela colectivização de noções individuais», transformando «os movimentos ateístas em movimentos religiosos»(1). A tese de que é contraditório que movimentos ateístas se constituam em associações dá a impressão de que o Vítor nem leu o que escreveu, mas o problema fundamental é outro e recorrente. Quando se fala em ateísmo é natural pensar em religião. O que faz sentido, porque foram os religiosos que inventaram o termo “ateu” na premissa de que não adorar um deus é uma coisa extraordinária em vez de algo tão banal como não adorar o Pai Natal ou o Homem Aranha. Mas isso leva muita gente a precipitar-se e assumir que uma associação ateísta é análoga a uma organização religiosa, que regula e condiciona as crenças dos seus afiliados. Se, em vez disso, o Vítor pensar em associações como a Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores ou a Associação para a Conservação do Lince Ibérico facilmente perceberá que a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) não exige uma «colectivização de noções individuais». É apenas uma organização de pessoas que se afiliam por já partilharem um tema que lhes interessa e sem sacrificar qualquer individualidade.

Depois, o Vítor conclui que os ateus associados têm de adoptar um «deísmo de [E]stado» porque só assim podem rejeitar as religiões teístas sem aceitar «todas as outras religiões não teístas». A ideia parece ser a de que, se o ateu rejeita os deuses, então tem de aceitar tudo o que não inclua deuses. Além da inferência ser estranha, revela novamente o erro de assumir que o ateísmo é análogo ao teísmo. A crença num deus ou deuses é o fundamento da religião correspondente e, normalmente, é peça central na vida desses crentes. É algo que, para o crente, antecede os seus valores, condiciona os seus hábitos, justifica rituais e orienta decisões. O ateísmo não é nada disso. Na maioria dos casos, o ateísmo é um mero efeito secundário do espírito crítico com que uma pessoa avalia o que lhe dizem. Qualquer pessoa que pense nas crenças religiosas de forma imparcial e crítica facilmente conclui que nenhuma delas é plausível. Tal como acontece com a astrologia, falar com os mortos ou OVNIS a raptar vacas. O ateísmo destaca-se do cepticismo genérico apenas por rejeitar certos mitos que muita gente leva a sério, mas não há contradição nenhuma em rejeitar alegações sem fundamento independentemente de terem ou não terem deuses. Antes pelo contrário. Contradição é fazer de uma delas excepção só porque calha ser aquela que se aprendeu a aceitar desde pequeno.

O Vítor critica também a Associação Ateísta Portuguesa (AAP) por exigir que a Igreja Católica permita aos baptizados renunciar a sua afiliação. Segundo alega a diocese do Porto, uma alteração do direito canónico em 2009 deixou de permitir o “abandono da Igreja por acto formal”, pelo que já não aceitaram o pedido de apostasia do Carlos Esperança (2). O Vítor, novamente baralhado, acha que «A ideia do desbaptismo é, em si mesmo, uma ideia religiosa: reconhecem a existência de algo em si, neste caso o baptismo, que tem que ser removido», mas não é nada disso. Citando a Comissão Nacional de Protecção de Dados, é apenas «o direito de exigir que os dados a seu respeito sejam exatos e atuais, podendo solicitar a sua retificação»(3). Se incluírem o meu nome em listas de cardiologistas, ou de astrólogos, videntes ou jogadores profissionais de hóquei no gelo, eu tenho o direito de pedir aos responsáveis que corrijam o erro. O problema de eu constar como católico na lista de uma paróquia é análogo, e o meu direito à correcção desse erro implica apenas reconhecer que se trata de um erro. Sou ateu e, como fui baptizado à traição antes de poder falar por mim, sou apóstata. É isso que deve constar no registo.

Por fim, o Vítor chama-me “maluquinho” porque eu e outros associados da AAP somos «pessoas que não acreditam em Deus e, em simultâneo, assumindo que a Sua não existência pode ser provada». No sentido lógico do termo, não se pode provar nada acerca da realidade porque a prova é um processo formal de inferência que só é válido dentro de um sistema lógico formal. Nesse sentido, não posso provar que Deus não existe, nem que Odin não existe, nem que o Pato Donald não existe. No entanto, isto não quer dizer que não possa concluir com confiança que estas coisas não existem. Afinal, também não posso provar que a água da torneira não está envenenada ou que o puxador da porta não está ligado a um cabo de alta tensão mas isso não me impede de viver o quotidiano com a confiança de que, tanto quanto sei, não vou morrer electrocutado por ir à casa de banho nem envenenado por beber um copo de água. O meu ateísmo é uma consequência trivial deste princípio. Tanto quanto sei, o tal Deus que o Vítor escreve em maiúscula é apenas mais um de muitos deuses que as pessoas têm inventado para contar histórias, para se consolarem, para tentarem perceber o que lhes acontecia, para se armarem em importantes ou para enganarem os outros. Esta conclusão parece-me bem menos “maluquinha” do que assumir que não posso saber nada da inexistência do Pato Donald, do veneno na água da torneira ou de qualquer um desses deuses.

1- Vítor Cunha, Associações Socialistateístas
2- Diário de uns Ateus, Ateus querem “despabtizar-se”
3- CNPD, Direitos dos Cidadãos.

Em simultâneo no Que Treta!

1 de Dezembro, 2013 Ludwig Krippahl

Fine-tuning e verosimilhança, parte 2.

Os modelos da física moderna são muito sensíveis aos valores de certos parâmetros. Este é um problema de fine-tuning porque é necessário afinar cuidadosamente os parâmetros para obter previsões correctas. Tradicionalmente, estes problemas têm se sempre resolvido descobrindo princípios mais fundamentais que unificam ou restringem os parâmetros livres. Mas como há pouco a dizer acerca de princípios que ninguém ainda descobriu, é mais interessante especular sobre o que seria se estes parâmetros pudessem mesmo variar na realidade e não apenas nos modelos. Multiversos, megaversos, universos exóticos com leis estranhas e assim por diante. Infelizmente, isto baralha algumas pessoas que depois julgam que este problema de fine-tuning está na realidade e não no modelo. É como julgar que a Terra é plana porque o mapa também é. Esse foi o tema da primeira parte (1). Esta é sobre uma aplicação incorrecta do princípio da máxima verosimilhança (PMV) para resolver esse problema meramente hipotético.

O argumento apresentado pelo Bernardo Motta, mas originalmente do Robin Collins, alega que, por um lado, a probabilidade de observarmos um universo como este assumindo os modelos da física é muito baixa por causa desses parâmetros soltos que é preciso ajustar mas, por outro lado, a probabilidade de haver um universo como este é muito alta se assumirmos que existe um deus que quer criar um universo assim. Assim, alegadamente, o PMV leva-nos a crer num deus criador. Isto é persuasivo para quem souber o suficiente sobre o PMV para reconhecer a sua importância mas não o suficiente para perceber o embuste desta aplicação. Como só consigo explicar isto num post chato, peço desde já desculpa pelo que se segue.

Vamos imaginar que lançámos uma moeda dez vezes e queremos saber se a moeda é equilibrada. O resultado foi:

Cara, coroa, coroa, coroa, cara, coroa, coroa, coroa, coroa, coroa.

Se assumirmos que a moeda é equilibrada, com 50% de probabilidade de calhar cara ou coroa em cada lançamento, a probabilidade de ter só duas caras em dez lançamentos é de 4%*. Isto pode justificar rejeitarmos como inverosímil que a moeda seja equilibrada. É mais plausível que esteja torta.

Podemos também usar o PMV para determinar os melhores parâmetros para uma família de modelos. Vamos chamar p à probabilidade de calhar cara, sendo 1-p a probabilidade de coroa. Isto define uma família de modelos onde cada modelo tem o seu valor de p entre 0 e 1. O melhor modelo, pelo PMV, é aquele em que p=0,2 porque assim maximizamos a probabilidade de obtermos os nossos resultados, duas caras e oito coroas.

Para comparar famílias de modelos a coisa complica-se um pouco. Vamos imaginar uma família alternativa de modelos com os parâmetros p1 a p10 definindo a probabilidade da moeda calhar cara em cada lançamento. Se fizermos p1 e p5 ser 1 e os restantes 0, a probabilidade de obter aquela sequência acima será 100%, enquanto a outra família de modelos, mesmo com p=0,2, tem uma verosimilhança de apenas 0,5% para esta sequência de lançamentos. No entanto, é obviamente errado estar a usar os dados para maximizar a verosimilhança atribuindo, a posteriori, uma probabilidade específica a cada lançamento**.

Para compensar este efeito, quando se compara famílias de modelos integra-se as probabilidades por todos os valores dos parâmetros. Neste caso, temos de variar p entre 0 e 1 para a primeira família e todos os p1 … 10 independentemente para a segunda. Apesar daquele pico alto quando os parâmetros da segunda estão exactamente certos, o espaço onde falha é muito maior e a primeira será a mais verosímil. É isto que acontece se compararmos a hipótese dos grãos de areia do estuário do Tejo estarem naquela configuração por acaso ou porque um duende invisível de Caxias usou poderes mágicos para pôr a areia exactamente assim. Havendo tantas possibilidades diferentes, seria improvável calharem naquela posição por acaso. Mas a hipótese do duende tem muitos parâmetros indeterminados. Podia querer pôr a areia exactamente como está mas também podia ter preferido pôr os grãos de outra maneira, mandar a areia toda para Marte, transformar tudo em gelatina de morango ou qualquer outra coisa. Quando consideramos todas estas variantes a verosimilhança da hipótese do duende torna-se ainda mais baixa do que a da hipótese da areia estar assim por acaso. E ainda bem.

Quando o Robin Collins estima a verosimilhança dos modelos da física moderna não usa apenas os valores ajustados dos parâmetros, o que daria uma verosimilhança de 1 porque foram escolhidos para prever este universo. Correctamente, considera toda a variação hipotética desses parâmetros e estima uma verosimilhança muito baixa. Mas depois faz batota com a alternativa. É que isso de Deus ter criado o universo também é uma família de modelos e também tem parâmetros livres. Deus podia querer um universo como este, ou um universo onde aparecesse inteligência logo ao fim de mil milhões de anos ou só ao fim de cem mil milhões de anos. Podia querer um universo completamente diferente e inimaginável com seres de energia, almas desencarnadas ou animais com 15 dimensões. A verosimilhança dos modelos físicos é baixa porque integramos as probabilidades por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros livres. Mas um deus omnipotente tem infinitos graus de liberdade. Sem fazer batota na aplicação do PMV a verosimilhança dessa família de modelos é nula, sempre menor do que qualquer alternativa.

* Assumindo que não me enganei nas contas. Mas se me enganei não faz mal porque o que importa aqui é perceber a ideia.
** Se alguém estiver interessado em pesquisar mais sobre este problema, chama-se overfitting.

1- Fine-tuning e verosimilhança, parte 1. Ver também o post do Bernardo

Em simultâneo no Que Treta!

28 de Novembro, 2013 Ludwig Krippahl

Fine-tuning e verosimilhança, parte 1.

«… imagine uma poça a despertar de manhã e a pensar “Este é um mundo interessante em que me encontro – e um buraco interessante em que me encontro – acomoda-me perfeitamente, não é? De facto, espantosamente bem, deve ter sido feito de propósito para me conter aqui dentro!” Esta é uma ideia tão poderosa que, conforme o Sol se ergue no céu, o ar aquece e a poça vai ficando mais pequena, mantém-se freneticamente agarrada à noção de que vai tudo correr bem porque o mundo foi feito de propósito para si; por isso, o momento em que se evapora apanha-a de surpresa. Penso que é algo que todos temos de ter em conta.»
Douglas Adams, The Salmon of Doubt

No passado dia 21 o Bernardo Motta e o Ricardo Silvestre debateram a (in)existência de Deus na Universidade Católica. Enquanto espero pela gravação do debate queria dar já uma achega ao argumento do fine-tuning que o Bernardo apresentou nos slides e resumiu no blog (1). Este argumento diz que Deus deve existir porque os modelos da física moderna contém parâmetros cujos valores não são determinados pela teoria e, se fossem diferentes, o universo não comportaria vida como a conhecemos. Por exemplo, se a energia libertada na fusão de hidrogénio em hélio fosse maior as estrelas não durariam o suficiente para que vida como a nossa evoluísse e se fosse menor as estrelas não dariam energia suficiente (2). Assim, defende o Bernardo, tem de haver um deus que assegure os valores certos para estes parâmetros de modo a que nós possamos existir. Ou seja, que faça o buraco à medida da água da poça.

A primeira confusão deste argumento é logo a definição do problema. O problema do fine tuning é um problema do modelo. O modelo tem demasiados parâmetros soltos que têm de ser ajustados para prever correctamente o que observamos. Isto não é desejável. É sempre melhor minimizar as pontas soltas. Mas este problema do modelo só é um problema do universo se o modelo estiver completo. O problema de fine-tuning que o Bernardo invoca não é o problema real do modelo ser muito sensível a parâmetros soltos mas sim o problema meramente hipotético do modelo estar correcto nesse aspecto e o universo sofrer do mesmo excesso de parâmetros. Tanto os dados que temos como a experiência contradizem esta premissa.

O modelo standard das partículas subatómicas tem 25 parâmetros que não são determinados pela teoria subjacente. Além disso, o modelo do universo a grande escala tem mais um parâmetro solto, a constante cosmológica (4). Mas uma razão forte para não concluir logo que o universo tem estes parâmetros soltos é estes modelos serem incompatíveis. Como a descrição relativística da gravidade não encaixa nos modelos da mecânica quântica para as restantes forças não se justifica assumir que estes modelos estão completos e que o que falta neles falta no universo.

Além disso, o problema do fine-tuning é frequente na história da ciência. Antes da teoria atómica dos elementos a química era um pantanal de parâmetros aparentemente arbitrários e leis que não se sabia de onde vinham. Quando se percebeu que todas as moléculas eram compostas por átomos de umas dezenas* de elementos diferentes o número de parâmetros soltos diminuiu drasticamente. Quando se descobriu que as propriedades químicas e físicas de cada elemento são determinadas pela combinação de apenas três partículas diferentes – protões, neutrões e electrões – o número de parâmetros soltos caiu novamente. Este ciclo ocorre em todas as áreas da ciência pela forma como a ciência progride. Inovações teóricas e tecnológicas permitem novas experiências, estas revelam dados novos que os modelos precisam de explicar o que, por sua vez, obriga a formular novas relações e parâmetros conforme os dados vão surgindo. Só quando alguém finalmente percebe como as coisas encaixam é que há tal “mudança de paradigma” que leva a novas teorias que atam as pontas soltas. É disso que estamos à espera agora.

Há também explicações propostas para o eventual problema do universo ter parâmetros soltos. Uma bastante intuitiva é a desta bolha de espaço-tempo ser apenas uma de infinitas, cobrindo, no conjunto, todas as combinações de valores para esses parâmetros. Naturalmente, aquela onde nós existimos tem de ser uma das que permitem a nossa existência, pela mesma razão que o planeta em que nascemos foi o único do sistema solar, aparentemente, que comporta vida. O Bernardo alega que isto não resolve o problema da afinação mas está enganado porque se há infinitos universos não é preciso afinar nada. Por muito improvável que seja a combinação de valores que permite a vida, entre infinitas bolhas de espaço-tempo será inevitável haver universos que comportem vida sem qualquer afinação prévia. Tem mais razão ao apontar que esta explicação «é ainda especulação sem suporte experimental» (1) mas isso não é uma objecção relevante. A hipótese deste universo ser único é igualmente especulativa e até menos plausível porque se é possível haver uma bolha de espaço-tempo então também deve ser possível haver outras. Não se justifica assumir que esta é a única. Além disso, a proposta do Bernardo, de que um deus criou este universo com os parâmetros certos, é igualmente especulativa. Finalmente, o próprio problema do universo exigir fine-tuning é especulativo. Apenas sabemos que os modelos que temos agora precisam de afinamento. Não se justifica para já concluir que todo o universo sofre do mesmo.

Resumindo, este argumento do Bernardo é um apelo à ignorância. Invoca Deus apenas porque não sabemos o que determina os parâmetros que deixamos soltos nos modelos. Com isto o Bernardo tenta demonstrar que “Deus existe” é a hipótese que maximiza a verosimilhança porque assim é mais provável o universo ser como é. Mas desmontar essa confusão exige explicar um pouco desse método de selecção de modelos e tem de ficar para a segunda parte.

*São mais de cem mas, na altura, só conheciam uns 60.

1- Bernardo Motta, Debate “Deus (não) existe?”
2- Para outros exemplos: Wikipedia, Martin Rees’s Six Numbers
3- Wikipedia, Fine-tuned universe

Em simultâneo no Que Treta!

19 de Novembro, 2013 Ludwig Krippahl

Omnitretas.

O Bernardo Motta, por alguma razão convencido de que o meu ateísmo se deve ao Richard Dawkins, recomendou-me que lesse autores filosoficamente mais sofisticados como o Edward Feser que, segundo o Bernardo, “limpa o chão” com o Dawkins. Em concreto, indicou-me um post do Feser criticando a alegada ignorância do Dawkins acerca da omnipotência e omnisciência do protagonista da ficção cristã. O problema que Dawkins aponta é que um ser omnisciente não tem o poder de mudar de ideias. Sendo um poder que nós temos, então um ser omnisciente não pode ser omnipotente. Eu diria até que será impotente, incapaz de mudar o curso de acções que já sabe inevitável, como se estivesse a ver um filme.

O Feser pretende “esclarecer” Dawkins começando por apontar que «para quase todos os teístas, “omnipotência” não implica o poder de gerar contradições (e.g. criar um quadrado redondo ou uma pedra tão pesada que nem um ser omnipotente a pode erguer)» (1). Isto é irrelevante porque o poder de mudar de ideias não é uma contradição da omnipotência. É apenas incompatível com a omnisciência. Mas é interessante porque põe em causa a omnipotência em si. Em primeiro lugar, parece-me muito pouco sofisticado, filosoficamente, apresentar como estabelecido que um ser omnipotente não pode gerar contradições só porque “quase todos os teístas” acreditam que é assim. Não me parece o tipo de coisa que seja legítimo decidir só pelo voto da maioria. Mas vamos assumir que mesmo um deus omnipotente é escravo deste axioma dos sistemas formais e, como Tomás de Aquino propôs, não pode fazer nada cuja descrição seja logicamente inconsistente. Ainda assim, há o problema dos restantes axiomas.

Será que um ser omnipotente pode calcular a raiz quadrada de -1 ou criar um triângulo cujos ângulos internos não somem 180º? Até ao século XVIII provavelmente diriam que não a ambas por ser contraditório que algo seja número e multiplicado por si próprio dê -1 ou que algo seja triângulo e os seus ângulos internos não somem 180º. Depois de Euler ter popularizado os números imaginários, a resposta à primeira já seria sim porque i é um número e é a raiz quadrada de -1 por definição. E com as geometrias não-euclideanas, a partir do século XIX, passou a ser possível haver triângulos cujos ângulos internos não somam 180º. Isto porque estas contradições só o são se usarmos certos axiomas. Com outros axiomas deixam de o ser e, na verdade, se abdicarmos do axioma da identidade nem sequer haverá contradições.

Outro problema é que podemos resolver cada contradição de várias formas diferentes. Por exemplo, se Deus tem o poder de erguer qualquer pedra, então não pode ter o poder de criar uma pedra impossível de erguer porque isto seria logicamente contraditório. Mas podemos resolver o problema ao contrário: se Deus tem o poder de criar qualquer tipo de pedra, inclusivamente uma pedra impossível de erguer, então não pode ter o poder de erguer qualquer pedra porque isso seria logicamente contraditório. Em ambos os casos Deus seria omnipotente, pela definição de Tomás de Aquino, porque em ambos os casos o seu poder só ficava limitado por contradições lógicas. Mas seriam duas omnipotências diferentes, a omnipotência de erguer qualquer pedra e a de criar qualquer pedra. Há infinitos casos destes. Por exemplo, a capacidade de criar varas tão compridas que sejam impossíveis de medir contra a capacidade de medir qualquer vara por muito comprida que seja. Ou a capacidade de criar cheiros tão pestilentos que não possa suportar contra a capacidade de suportar qualquer cheiro por muito pestilento que seja. Como consequência, há infinitas omnipotências diferentes e incomensuráveis. Nem se poder saber qual delas Deus terá nem porquê essa e não outra.

Mas a parte mais importante do post que o Bernardo recomendou é como resolve o conflito entre omnisciência e omnipotência, o problema de não poder mudar de ideias. «Deus é imutável e eterno. Ele não “muda de ideias” porque ele não muda sequer. […] Deus está completamente fora do tempo. […] Para Ele, toda a criação – incluindo todos os acontecimentos em todos os pontos do tempo – segue de um único acto criativo Seu». Isto é importante porque implica que o tempo não existe. Se a passagem do tempo presente vai tornando o futuro em passado então as verdades mudam e um ser omnisciente tem de ir mudando também para actualizar o que sabe. Dantes era verdade que eu tinha cinco anos mas agora já não é. Um ser imutável não podia saber, nessa altura, que eu tinha cinco anos e agora saber que já não tenho. Se existe um ser omnisciente e imutável então todas as verdades têm de ser imutáveis. Todo o universo tem de existir como uma forma fixa e imutável espalhada no espaço-tempo em vez de algo espacial que vai mudando com o tempo porque, se assim fosse, também o que é verdade mudaria e Deus teria de mudar. Mas se o universo é imutável e o tempo é uma ilusão então nada que dependa de mudança pode ser real. Acção, vontade, causalidade, intenção, culpa, mérito, nada disso pode existir se houver um ser omnisciente e imutável.

Com esta explicação, o Edward Feser não só confirmou que a omnisciência é incompatível com a omnipotência como também demonstrou que a omnisciência divina é incompatível com um universo dinâmico e tudo o que disso depende.

1- Edward Feser, Dawkins on omnipotence and omniscience

Em simultâneo no Que Treta!

14 de Novembro, 2013 Ludwig Krippahl

Sentir (aquele) deus.

«Smart: At the moment, seven Coast Guard cutters are converging on us. Would you believe it?
Mr Big: I find that hard to believe.
Smart: Hmmm . . . Would you believe six?
Mr Big: I don’t think so.
Smart: How about two cops in a rowboat?»

(Get Smart)

As justificações para crer na existência de um deus abrangem uma vasta gama de categorias contraditórias. Num extremo, dizem que nada se pode observar desse deus e que só se pode provar formalmente a sua existência a partir de axiomas que o crente escolheu. Lá para o meio, o deus não pode ser observado mas dá indícios empíricos da sua existência por milagres progressivamente mais discretos, desde o dilúvio mundial a desviar, pouco, a bala que mataria o Papa ou tratar salpicos de fritura. No outro extremo, alegam que o deus é um dado empírico imediato, como a sede ou o amor, que se sente directamente e que, por isso, não se pode senão aceitar que existe. A contradição entre estas justificações não seria problema se cada crente escolhesse uma. Há tantos deuses diferentes que não é preciso atropelos. No entanto, é comum os apologistas religiosos tentarem todos estes tipos de justificação, em série, a ver se algum pega. O resultado conjunto acaba por ser ainda menos persuasivo do que cada uma das justificações individuais.

Por seu lado, mesmo individualmente estas justificações têm problemas e já abordei aqui muitas vezes os defeitos dos dois primeiros tipos. Não se prova a existência de um ser real como quem demonstra um teorema, partindo de axiomas arbitrários, e o deus milagreiro acaba por ser um deus das lacunas porque só há milagres no que não se compreende. Mas tenho descurado este último tipo de justificação, o de crer num deus porque se sente esse deus. A última vez que me lembro de ter discutido isto foi há uns anos, com o Alfredo Dinis (1), para apontar o problema de uma mera sensação não servir para fundamentar os dogmas religiosos. Uma coisa é entrar numa igreja e sentir a presença de alguém que não se vê. Outra bem diferente é sentir que se trata de Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, gerado do Pai antes de todos os séculos, da mesma substância do Pai, que encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria, foi crucificado, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia e assim por diante. Não é plausível que uma sensação seja tão específica e detalhada. Mas há outros problemas.

O primeiro é que umas pessoas dizem sentir que existe um deus enquanto outras não sentem nada disso. Mesmo entre as que sentem não há consenso acerca de que deuses sentem ou quantos são. Sentir um deus é como ver auras. Há quem diga que vê auras coloridas à volta dos outros, conforme a personalidade ou estado de espírito mas, além de muita gente não ver aura nenhuma, aqueles que as dizem ver divergem nos detalhes que relatam. Assim, o mais razoável é explicar essas alegações por factores psicológicos ou sociológicos em vez de concluir que existem mesmo as tais auras. Com os deuses é a mesma coisa.

Em segundo lugar, mesmo sensações consensuais podem ser enganadoras. Por exemplo, qualquer pessoa verá luzes se fechar os olhos e os esfregar com força. Isso não prova que haja luzes dentro dos olhos. É apenas a forma do cérebro interpretar os impulsos provenientes dos neurónios da retina. Também é comum ter sonhos como o de um cão a morder-nos o braço e acordar em cima do braço dormente. Não por culpa do cão mas por uma fantasia do cérebro adormecido a interpretar os sinais nervosos do braço. Se bem que seja sempre pelos sentidos que apreendemos a realidade que nos rodeia, não é prudente saltar para uma conclusão com base apenas num tipo de experiência, sem confirmação independente. Nem nos raptos por extraterrestres, nem nos demónios e fadas e nem em deuses. Devemos confiar na confluência consistente de indícios em vez de confiar de imediato em sensações isoladas. O chavão “ver para crer” assume, incorrectamente, que se eu vir um elefante cor de rosa a esvoaçar à minha volta devo concluir que existem elefantes voadores cor de rosa mas o mais sensato, numa situação dessas, será consultar um neurologista.

Finalmente, a nossa percepção é fortemente influenciada pelas nossas expectativas. A comunicação entre o sistema nervoso periférico e o sistema nervoso central é bidireccional, muitas vezes até com mais informação do cérebro para os sentidos do que destes para o cérebro, o que condiciona muito o que os nossos sentidos nos dizem. Por exemplo, nas semanas a seguir à morte do meu pai vi-o várias vezes na rua e nos transportes públicos. De vez em quando, ao cruzar-me com alguém mesmo levemente parecido com o meu pai, o cérebro pregava-me essa partida e, por momentos, era a ele que eu via. Não é nada estranho que haja histórias de fantasmas em todas as culturas humanas, ou que haja quem alegue ter visto o Sol a rodopiar quando, movido pela fé, foi à Cova da Iria determinado a ver milagres. Também não é estranho que quem queira muito acreditar que um deus existe acabe por conseguir sentir a presença desse deus.

Sentir que um deus existe pode ser justificação suficiente para o crente. Aderir ou não a uma religião é uma opção subjectiva e nisso conta o que cada um quiser. Mas, dado o contexto e a falta de indícios independentes que o confirmem, não é evidência para a existência de Deus.

1- Experiência religiosa.

Em simultâneo no Que Treta!

18 de Outubro, 2013 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): Alexandrina de Balasar.

Domingo passado foi o dia da Alexandrina de Balasar, beata da Igreja Católica (1). Segundo a sua autobiografia (2), nasceu em 1904, aos quatro anos já rezava, aos sete anos começou os seus dezoito meses de escola, aos catorze adoeceu porque trabalhava para um vizinho que a obrigava «a trabalhar mais do que as forças que tinha» e depois saltou da janela da casa para fugir do vizinho e outros dois homens que vieram a casa dela não se sabe bem fazer o quê. Segundo a interpretação dos aficionados, a Alexandrina saltou da janela para «defender a sua pureza». Segundo o relato da própria, depois de saltar da janela «Cheia de coragem, peguei num pau e entrei pela porta do quintal para o eirado onde estava a minha irmã a discutir com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me deles e chamei-lhes “cães”, e disse que ou deixavam vir a pequena, ou então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na sair. […] Não lhes demos mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar.» Seja como for, após a queda a Alexandrina foi ficando gradualmente mais paralisada até que, cerca de 5 anos mais tarde, ficou acamada de vez. Não parece haver explicação para tão insólita progressão de sintomas, mas isto não conta como milagre porque é desagradável. Também não houve milagre de cura, apesar da Alexandrina e familiares fazerem várias promessas nesse sentido. «Alexandrina, com o tempo, foi aceitando a sua condição de doente, tomando uma rotina quotidiana de oração e oferecendo-se como vítima», e rezando «A Vossa bênção, Jesus! Eu quero ser santa! Ó meu Jesus, abençoai a Vossa filhinha que quer ser santa.» Mas a seguir veio um milagre, não fossem pensar que esta devoção excessiva era apenas uma forma que esta pobre rapariga tinha encontrado para lidar com o seu infortúnio.

«Alexandrina viveu, desde o dia 27 de março de 1942, mais de treze anos em jejum e anúria. O seu alimento foi exclusivamente a Eucaristia.» Para comprovar este feito assombroso, a Alexandrina passou 40 dias no “Refúgio da Paralisia Infantil”, na Foz do Douro, acompanhada pela irmã e o seu médico pessoal, Dias de Azevedo. Lá terá sido observada cuidadosamente por enfermeiras e pelo médico e psiquiatra Henrique Gomes de Araújo. Segundo cita um livro sobre a Alexandrina, Henrique Gomes de Araújo garantiu ser «inteiramente certo que, durante os quarenta dias de internamento, a doente não comeu nem bebeu; não urinou nem defecou, e esta circunstância leva-nos a crer que tais fenómenos possam vir a produzir-se de tempos anteriores». Mas o mais milagroso de tudo foi que, depois de comprovado o feito, o médico e a comunidade médica portuguesa tenham simplesmente ignorado o assunto. Um texto de homenagem ao Henrique Gomes de Araújo, pouco após a sua morte, descreve a sua carreira em medicina e psiquiatria, a sua personalidade, a sua obra filosófica, o prémio Abel Salazar que ganhou em 1975 pelo livro “Perspectivas Fenomenológicas na Análise da Existência”, a sua relação com os doentes e as pessoas com quem trabalhou, Mas nem uma palavra refere a maior descoberta na medicina dos últimos séculos: é possível uma pessoa viver sem comer nem beber (3).

As implicações teológicas do milagre da Alexandrina também são profundas. Tragicamente, muita gente morre à fome. Isto, dizem os crentes, não é culpa de Deus porque Deus não intervém. Porquê, não é claro, visto que obviamente poderia intervir se quisesse. Mas não intervém, e regras são regras. Só que, se a Alexandrina pode viver treze anos sem comer nem beber por obra e graça do menino Jesus e da sua santíssima mamã, então as regras não são para todos. Afinal, não são todos filhos de Deus. Excepto uns poucos, quase todos são enteados.

Em 1944, a Alexandrina «inscreveu-se na União dos Cooperadores Salesianos» para «colaborar com o seu sofrimento e as suas orações para a salvação das almas, sobretudo juvenis. Rezou e sofreu pela santificação dos Cooperadores Salesianos de todo o mundo.» Foi assim que a sua vida foi «gasta exclusivamente para salvar as almas.»(1) Numa perspectiva ética, de justiça, ou mesmo de elementar bom senso, isto é absurdo. Sofrer é mau e sofrer por sofrer é uma maldade fútil. Se um deus qualquer quisesse que a Alexandrina ajudasse mesmo as outras pessoas, tinha-lhe ensinado a criar vacinas, antibióticos novos ou um sistema político que funcionasse bem. Fazer dela uma paralítica em sofrimento é, além de maldade, inútil para a maioria das pessoas. Excepto, mais uma vez, para uns poucos: aqueles que promovem a Alexandrina a beata como exemplo para outros fiéis seguirem. O exemplo de alguém que gasta a vida em sofrimento, que acredita que sofre porque um deus quer que sofra e que ainda assim agradece o que esse deus lhe faz. A metáfora do rebanho de fiéis a seguir os sacerdotes pastores, já de si uma imagem degradante da condição humana, é insuficiente para uma atitude destas. Nem uma ovelha agradeceria ao torturador uma vida de sofrimento inútil e injusto.

Já sei o que querem comentar. Para o ateu a vida não tem valor, somos todos só moléculas, nunca vai compreender exemplos destes que têm de ser vividos na religiosidade e essas tretas. Não é nada disso. Cada vida tem valor para quem a vive e para aqueles que essa vida toca. A vida de cada um é única, não há segunda volta e há que fazer dela o melhor que se puder. Mesmo sem crer em deuses ou planos divino, e sabendo que muito do que acontece simplesmente acontece, percebo perfeitamente a vantagem de ter alguém que dê um exemplo de como lidar com estas vicissitudes. Mesmo que seja um exemplo tão longe da nossa capacidade que só nos sirva de direcção e não de destino. Mas se querem um exemplo desses, então olhem para alguém como o Stephen Hawking e não para a coitada da Alexandrina, que dá muita pena mas não é exemplo para ninguém.

1- Senza, Dia da Beata Alexandrina de Balasar
2- Santuário Alexandrina de Balasar, História de uma vida
3- Carlos Mota Cardoso, À memória de Henrique Gomes de Araújo, “Morreu um médico” (pdf)

Em simultâneo no Que Treta!