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Ludwig Krippahl

6 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: a mediocridade do colunismo.

O Henrique Raposo, colunista do Expresso, escreveu esta semana sobre o Christopher Hitchens (1). Ou talvez tenha sido sobre o ateísmo. Ou sobre a «família de esquerdistas que deixou de pensar quando o fascismo e o nacionalismo acabaram na Europa.» Ou, se calhar, foi sobre outra coisa qualquer. Apesar de curto, mérito que lhe reconheço, o texto do Henrique anda por muitos lados sem chegar a parte nenhuma.

O título diz ser sobre a mediocridade do ateísmo mas o texto alega que Hitchens só ataca a religião porque é de esquerda, explica que Hitchens é zangado é preguiçoso e remata dizendo que Hitchens deve tudo a Deus. Não percebo como isso tornaria o ateísmo mais medíocre mesmo que fosse verdade. Não sei o que o Henrique julga que é o ateísmo, mas o meu não se torna medíocre por causa do Hitchens. Isto para mim não é pertencer a um clube de futebol ou a uma seita religiosa. O meu ateísmo é uma opinião minha, pelas minhas razões e se for medíocre a culpa é minha e não do Hitchens.

É irónico que o Henrique chame preguiçoso ao Hitchens quando «compara, de forma leviana, a religião ao fascismo» sem lembrar o «papel essencial da religião na luta contra os totalitarismos do século XX». É o típico exagero do protagonismo “da religião” (como se só houvesse uma). O que derrotou os totalitarismos do século XX foi a industria dos EUA e URSS nos anos 40 e a economia do ocidente nas décadas seguintes. Esses foram os factores mais importantes. Não foram os segredos de Fátima que derrubaram o muro de Berlim nem as forças armadas do Vaticano que tiraram Hitler do poder. E na entrevista que o Henrique refere, Hitchens apenas afirmou que «Nos anos 30 e 40 do século XX, diria que a mais perigosa era o catolicismo romano porque estava relacionado com o fascismo»(2). O apoio do Vaticano a Mussolini é um dado histórico bem estabelecido.

A acusação de preguiça é irónica porque basta um pouco de atenção para ver que várias seitas religiosas fundamentalistas, cristãs, muçulmanas e outras, adoptam elementos do fascismo. O nacionalismo, as formas de liderança, a revitalização pela violência e outros. E o próprio fascismo começou pela mistura de política e religião. Segundo Mussolini, o fascismo é «uma concepção religiosa na qual o homem é visto na sua relação imanente com uma lei superior e com uma Vontade objectiva que transcende o indivíduo e o eleva à participação consciente numa sociedade espiritual»(3). Isto e as milícias armadas dos fundamentalistas cristãos nos EUA, ou organizações como al Qaeda, mostram que a relação de certas religiões com o fascismo não é um capricho preguiçoso nem leviano do Hitchens. É uma tendência preocupante.

No fim, o Henrique Raposo remata com «nunca digo que sou ateu. Sou agnóstico. E, como agnóstico, digo que é mais fácil falar com um crente do que com um ateu. Aliás, é impossível dialogar com um ateu.» E pronto. Não explica o quê, nem porquê, nem como ser impossível dialogar com um ateu faz com que o Henrique já não saiba se existe ou não existe Deus.

O texto do Henrique é uma baralhada incoerente de alegações. Não se percebe se é por estar zangado ou por ser de esquerda que o Hitchens deixa de ter razão. Não explica o que os problemas do Hitchens possam ter que ver com a mediocridade do ateísmo. E ainda menos como é que o Henrique ficou agnóstico por causa disso. Reforça também a ideia que se deve ser agnóstico para não incomodar os crentes. Deus não existe, mas vamos todos dizer ah, não sei, a ver se ninguém se aborrece. E quanto a ser impossível dialogar com ateus, talvez fosse boa ideia experimentar primeiro. Isso, e pensar no que quer dizer antes de escrever e carregar em “publish”.

1- Expresso, A mediocridade do ateísmo. Obrigado a todos que me enviaram isto por email. O Raul Pereira também comentou isto neste post.
2- I, “A religião envenena tudo e não acaba porque somos egocêntricos”
3- Wikipedia, Neo-fascism and religion

Também no Que Treta!.

19 de Fevereiro, 2010 Ludwig Krippahl

Hitchens, 1: a religião envenena tudo.

A palestra do Christopher Hitchens ontem (1) não deve ter surpreendido quem já tivesse lido alguma coisa dele. Nem pelo conteúdo, que foi o previsto, nem pela forma, pois no que ele escreve nota-se que é um comunicador extraordinário. Mas foi uma experiência interessante vê-lo ao vivo. Vou aproveitar algumas ideias que ele expôs como inspiração para uns posts, começando pela mais óbvia.

Hitchens defende que a religião envenena tudo quer pelas suas consequências quer pelos seus princípios. Não há nenhum acto que se reconheça como bom que seja exclusivo dos religiosos e, para ser uma pessoa boa e ter valores louváveis, não é preciso ter religião. Por outro lado, facilmente nos ocorrem actos e valores condenáveis associados a práticas religiosas, desde os sacrifícios humanos e a inquisição aos ataques bombistas e à mutilação genital de raparigas. Ele não o mencionou mas, antecipando já as criticas costumeiras, saliento que isto não quer dizer que todos os ateus sejam boas pessoas. O ponto aqui é que a religião é desnecessária para se ser bom e é motivo para muitos actos condenáveis. Pesando os prós e os contras, mais vale não a ter.

Mesmo entre os que são ateus, num sentido estrito, o mau comportamento institucionalizado vem da aceitação acrítica de superstições e ideologias estranhas ao ateísmo. Na Coreia do Norte, um exemplo comum dos terrores do ateísmo, a Constituição foi alterada em 1998 para nomear Kim Il-Sung o Presidente Eterno da República. O homem já tinha morrido quatro anos antes. O estalinismo, o maoismo e a ditadura em Cuba, apesar de não seguirem algo que oficialmente seja considerado divino, assentam também numa teimosia ideológica que o ateísmo não exige mas que é fundamental em qualquer religião. As religiões consideram-se acima das limitações, da falibilidade e até da contestação humana, e é essa atitude que facilmente tem consequências trágicas.

Além disso, as religiões declaram-nos todos servos dos deuses. Não somos donos de nós próprios nem os responsáveis pelos nossos valores. Somos instrumentos criados por outrem para servir os seus propósitos e cujo mérito é função da submissão a esse desígnio. Isto desumaniza as pessoas.

Nestes aspectos concordo com o Hitchens, mas parece-me que ele erra ao considerar, implicitamente, que a religião é a origem destes problemas. A religião é apenas um de vários meios de desumanizar e levar pessoas boas a praticar o mal. É o mais popular e foi provavelmente o primeiro a ser inventado, mas não é o único. O problema fundamental não é a crença num deus ou numa casta de sacerdotes; é a facilidade com que abdicamos da nossa autonomia e responsabilidade e lavamos mãos das asneiras que fazemos com a desculpa de agir em nome de qualquer fantasia que nos impinjam.

1- Casa Fernando Pessoa, “Livres Pensadores” com Christopher Hitchens

Em simultâneo no Que Treta!.

9 de Fevereiro, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 3

No seu terceiro post acerca dos equívocos do ateísmo o Alfredo Dinis repete que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião»(1). A ver se é desta que isto se desdramatiza.

O único sítio de onde é legítimo o meu ateísmo erradicar a religião é a minha vida. E nisso o sucesso foi total. Qualquer Edir Macedo, Joseph Ratzinger ou Alexandra Solnado que me queira vender a sua banha da cobra vai ter de se haver com o meu ateísmo. E o papel social do ateísmo não é o que o Alfredo julga. O ateísmo não é um polícia das crenças. É um cinto de segurança. Não impede os acidentes nem evita asneiras mas reduz os estragos. Em grande parte, é graças à propagação do ateísmo que hoje posso criticar um sacerdote jesuíta, e director de uma faculdade da Universidade Católica, sem ir preso nem sofrer represálias. Quando o meu pai tinha a minha idade isto seria difícil. No tempo do meu avô era impensável.

E mesmo que daqui em diante o ateísmo não avance um milímetro que seja, ainda assim é importante defendê-lo para contrariar a pressão constante da religião. Este equilíbrio não é estático, e se deixamos de pressionar os que vivem convictos de ter a verdade revelada e de saber o que é melhor para si e para os outros, voltamos rapidamente aos “bons velhos tempos” da religião a bem ou a mal.

O que me traz aos novos equívocos do Alfredo. «A religião tem sobretudo a ver com a questão do sentido do universo e da vida. Os não crentes afirmam que não há nenhum sentido para além do que nos é dado pelo conhecimento científico.» Não é isso. O que eu afirmo é que o sentido da minha vida vem de mim. Não me pode ser dado, nem pela ciência, nem pela religião nem por coisa nenhuma. É claro que qualquer actividade humana pode ajudar. O Alfredo menciona a poesia e a arte, mas posso acrescentar a religião, o atletismo, o macramé e a ciência. Qualquer coisa que façamos com paixão ajuda a criar sentido na nossa vida. Uma vida sem sentido é apenas a de quem fica à espera que lhe dêem um.

Assim, não critico a religião por julgar que a vida não tem sentido. Critico-a pelos seus erros factuais e porque o sentido da minha vida me diz respeito a mim e não ao Alfredo ou ao seu deus. Se o Alfredo quer apontar algum equívoco nesta minha posição ateísta, sugiro que me explique porque preciso do deus dele para dar sentido à minha vida. Concordo que é importante «interrogar-se sobre o sentido da existência», mas discordo que a resposta do Alfredo seja relevante para mim.

Finalmente, o Alfredo aponta que a religião não é «fonte do conhecimento dos fenómenos naturais», pois isso é com a ciência, mas insiste que a religião é uma fonte de conhecimento, uma área do saber autónoma da ciência. Infelizmente, não deixa claro o que é suposto ser esse alegado conhecimento religioso. A religião sabe o quê?

O conhecimento é o conjunto dos dados e suas explicações. Sem dados não há nada que saber e sem explicações não há como sabê-lo. E estes aspectos são inseparáveis. Pode parecer que quando vejo chover sei que chove só pelos sentidos, um dado que não precisa de explicação. Mas, na verdade, concluo que está a chover por ser essa a explicação mais plausível para a sensação de ver chuva. Se em vez de chuva vir um elefante amarelo a voar já não concluo que exista tal coisa. Considero como explicação mais plausível ter sofrido um AVC, uma intoxicação alimentar ou psicose.

O Alfredo alega que a religião é fonte de conhecimento que não é científico nem é acerca da natureza. Mas se é conhecimento tem de incluir dados que possa conhecer, e falta indicar que dados tem o Alfredo que estejam fora da natureza e do âmbito da ciência. E se é conhecimento tem de incluir explicações, e não é concebível que haja explicações que não cumpram o que se exige de uma explicação científica: que explique.

Eu não cometo o equívoco de confundir religião com ciência. Sei que são bem diferentes, e nisto concordo com o Alfredo. Discordo é que a religião seja saber. A religião não precisa de dados nem de explicações porque é mera opinião e especulação. Há uns milhares de anos uns tipos inventaram umas profecias, outros mais tarde inventaram umas histórias baseadas nisso e assim por diante. Dos autores do Génesis à teologia moderna tem andado tudo a especular e opinar sobre as opiniões uns dos outros. A religião é autónoma porque inventa o que quiser.

Em suma, o Alfredo aponta como equívocos do ateísmo não servir para nada, não dar valor à vida e confundir ciência com religião. Mas o ateísmo é muito útil aos ateus, é perfeitamente compatível com uma vida realizada e com sentido. E não são os ateus que confundem religião com ciência. O problema é os crentes confundirem fé com conhecimento.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Em simultâneo no Que Treta!

18 de Janeiro, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: quanto mais me bates…

Caro Joseph,

Por razões inefáveis vai haver um terremoto de magnitude 7.0 perto de Port-au-Prince na próxima Terça-Feira. Será pouco depois das cinco da tarde. Avisa as autoridades para que evacuem a cidade, os católicos locais para que não se preocupem e confiem em Mim, e aos ateus, que não vão acreditar nisto, diz que cá os espero terça à noite para lhes explicar o argumento ontológico.

Que Eu te abençoe,
J, J e E.S.

Esta semana morreram mais de cem mil pessoas com o sismo no Haiti. Muitas mais ainda vão morrer de ferimentos, sede, fome, violência e doença. Se o deus dos católicos existisse, se amasse os haitianos e tivesse contacto com o Papa, seria de esperar pelo menos um aviso. É o mínimo que a decência exige, mesmo que se aceite terremotos onde as pessoas são tão vulneráveis. Ou em qualquer sítio. Bastava que tivesse feito os «pilares da Terra» como deve ser para isto não abanar tanto.

Cristãos diferentes vêem este sismo de forma diferente. Para evangélicos como Pat Robertson, se Deus manda em tudo manda nos terremotos, e se o Haiti levou com um é porque mereceu (1). É doentio, mas segue logicamente das premissas. Por outro lado, os católicos vêem neste sofrimento uma prova do amor de Deus. Cem mil pessoas morrem num sismo, portanto oremos e louvemos o criador dos terremotos. Do cima a baixo da hierarquia os católicos rezam. O mecanismo pelo qual estas preces terão efeito não é claro, mas o Papa convida «toda a gente a juntar-se a mim em oração ao Senhor pelas vítimas desta catástrofe […] implorando de Deus consolo e alívio do seu sofrimento»(2). No Colégio de Lamego, os alunos da primeira classe rezaram «pelos milhares de pessoas que morreram de forma tão trágica», também esperançosos «Que a nossa oração ajude a aliviar tanto sofrimento.»(3)

Esta ideia algo masoquista de ver amor no sofrimento é estranha mas deve ter ajudado o cristianismo a durar tanto. Todos gostaríamos de ser amados pelo grande chefe de tudo, mas o amor não chega para justificar a doutrina, as regras e o poder da hierarquia da Igreja. Para isso é preciso aproveitar doenças, sismos e outras tragédias naturais, por vezes dar uma ajuda com autos de fé e inquisição, e aferir a medida com o sofrimento eterno. Paus que complementam a cenoura do amor divino.

Mas os deuses são ficção e esta tragédia não foi apenas por culpa da geologia. No dia 17 de Outubro 1989, também por volta das cinco da tarde, o sismo de magnitude 7 em São Francisco matou 63 pessoas. É a diferença entre ter betão armado e colar os tijolos com cuspo. E não foi por falta de caridade ou de pena do pobre povo haitiano. Há dez mil organizações de caridade a operar nesse país, uma para cada mil habitantes (4). Só que cada uma tem a sua ideologia e a sua forma de operar, há pouca cooperação entre as almas caridosas e ainda menos cooperação com o governo e com o povo que querem ajudar.

Além disso, a caridade trata sintomas. Em alturas como esta os sintomas são o mais urgente e, neste momento, é preciso tudo. Até caridade*. Mas fora de tragédias e emergências a caridade ajuda o pobre sem o tirar da pobreza. Alivia sem resolver. É preciso ir além da esmolinha para atacar as causas do problema.

Em 1970, 22 dos países mais ricos prometeram na ONU dedicar um mínimo de 0,7% do seu PIB a ajudar os mais pobres. Em 2005 ainda só cinco tinham atingido a marca. Portugal contribuiu 0,21% (1). Este tipo de ajuda governamental, organizada e estruturada, isenta de ideologias e proselitismo, é essencial mas é apenas uma pequena parte do que é preciso. É também preciso melhores políticas de imigração nos países mais ricos, acordos comerciais mais justos, perdoar dívidas incapacitantes (e impossíveis de saldar), facilitar a formação e transferência de tecnologia para quem mais precisam e outras medidas que fomentem o desenvolvimento destes países. Pelo menos até que possam construir casas que não lhes caiam em cima.

E isto não se consegue com pena dos pobrezinhos ou rezando a quem nos maltrata. É um problema que se tem de resolver de forma organizada, sistemática e estrutural e, acima de tudo, contrariando a ideia que a miséria no estrangeiro conta menos que a de cá.

* Se quiserem uma sugestão para ajudar: AMI.

1- Huffington Post, Pat Robertson: Haiti ‘Cursed’ By ‘Pact To The Devil’ (VIDEO)
2- CNS, Pope prays for victims of Haiti quake; archbishop’s body found
3- Colégio de LamegoPelas vítimas do sismo…
4- Tracy Kidder, The New York Times, Country Without a Net
5- Millenium Project, The 0.7% target: An in-depth look

Em simultâneo no Que Treta!

15 de Janeiro, 2010 Ludwig Krippahl

Amor e família.

Deus é o nosso pai, a Igreja é a sua esposa, tal como as freiras, os padres também são nossos pais e somos todos irmãos. É amor por todo o lado. O cristianismo aproveita os laços familiares de afecto, familiares em ambos os sentidos, para persuadir que o seu deus é um deus de amor e que o universo foi criado como uma família feliz. Mas tirando os olhos do umbigo, olhando além do que gostaríamos que fosse a norma na nossa espécie, vemos que este antropomorfismo optimista não representa adequadamente a realidade.

O amor fraternal é um de muitos ideais que esta religião diz poder ser corrompido pelo exercício da vontade livre. Mas o fratricídio é comum em animais aos quais não atribuem tal capacidade. Em pássaros como o pelicano ou a garça-vaqueira é normal as crias competirem agressivamente pela comida que os pais trazem. Tão agressivamente que acabam por matar as mais pequenas, sob o olhar indiferente dos progenitores. Muitas vespas parasitárias injectam vários ovos em cada vítima e as larvas que eclodem atacam-se mutuamente até só restar uma. E alguns tubarões começam o canibalismo ainda no ventre materno, comendo os irmãos antes de nascerem.

O infanticídio por parte de adultos também é comum em muitas espécies. Os leões machos matam as crias das fêmeas quando se apossam de um bando, as fêmeas de coelho matam as crias umas das outras e em algumas espécies, como os escaravelhos necrófagos, alguns peixes e até hamsters, os progenitores matam os próprios filhos. Ao contrário do que alguns crentes sugerem, o amor de mãe não deve ser gratuitamente assumido. Como qualquer outra hipótese, também esta deve ser confrontada com os dados.

O amor conjugal dá uma bela metáfora para a relação entre Deus e a Igreja mas também tem muito que se diga. Os machos de Harpactea sadistica, uma aranha nativa de Israel, perfuram o corpo da fêmea e depositam o sémen directamente no seu abdómen (1). Muitos invertebrados “fazem amor” de formas semelhantes (2). Os patos forçam as fêmeas a ter relações sexuais, os chimpanzés amansam as futuras “amadas” à pancada (3) e se olharmos para o nosso comportamento com imparcialidade vemos que não andamos muito longe disto. Nos costumes de alguns povos, bíblicos e contemporâneos, para muitas raparigas a diferença entre a violação e o casamento é uma mera formalidade.

A hipótese que um deus criou os humanos à sua imagem e todo o universo por amor, com o amor de um pai, não é plausível. Podia parecer plausível a quem ignorava quase tudo acerca da natureza. A quem julgava que o universo teria a duração e o tamanho da sua tribo e vizinhos. Mas o que sabemos hoje indica uma alternativa. O mais plausível é que esse deus, como tantos outros, seja apenas um personagem fictício onde uns projectam o que querem fazer crer aos outros.

1- Aqui um post do Ed Yong, com vídeo para quem gostar destas coisas: Traumatic insemination – male spider pierces female’s underside with needle-sharp penis
2- Wikipedia, Traumatic insemination
3- Short Sharp Science, Male chimps use sexual coercion

Em simultâneo no Que Treta!

5 de Janeiro, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 2.

Como prometeu, o Alfredo começou a enunciar os equívocos que ele diz ser do ateísmo. Que são equívocos concordo, pelo que estamos parcialmente de acordo. Um, que ele chama «Equívoco geral», é o ateísmo «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.»(1) Diz o Alfredo que isto é porque se o ateísmo critica a religião de forma inteligente só a fortalece e, caso contrário, não a afecta. É claro que isto assume que o deus do Alfredo existe. Porque se não existe, então uma critica inteligente pode revelar que o rei vai nu e acabar com a festa.

Mas o equívoco do Alfredo é julgar que o ateísmo só faz sentido se conseguir erradicar a religião. O ateísmo, pelo menos no meu caso, é apenas uma expressão visível de duas conclusões. Primeira, que os deuses são mais uma de muitas fantasias humanas. E, segunda, que mesmo que houvesse deuses eu continuava responsável pelos meus valores e não era correcto simplesmente fiar-me num livro ou sacerdote. É por isso que não uso deuses para me guiar. É por isso que sou ateu.

No entanto, admito que era bom que a religião desaparecesse. Era bom que, crentes ou descrentes, todos vivessem essas opções como algo pessoal sem ir na conversa dos que dizem estar mais perto dos deuses. Era bom que ninguém se deixasse enganar pelas patranhas da infalibilidade ou da revelação divina calhar só a alguns. Infelizmente, é um desejo pouco realista. Continuará a haver Papas, sacerdotes e Alexandras Solnado porque haverá sempre pessoas a julgar que uns, abençoados, sabem alguma coisa acerca dos deuses.

Outro equívoco é confundir questões acerca dos factos com as definições dos termos. Escreve o Alfredo que «Não há nenhuma prova científica de que a vida humana começa no ‘momento’ da concepção». Mas este problema é apenas a definição do termo “vida humana”. Se for a vida de organismos da nossa espécie, então começou há cerca de 200 mil anos e perpetuou-se, ininterrupta, desde então. Se refere a parte do ciclo de vida correspondente a um organismo da nossa espécie, então a concepção marca o início dessa fase. E se queremos referir a auto-consciência humana, o viver como sentir que se existe, então o início da “vida humana” será talvez perto dos dois anos de idade. Se definirmos o termo com rigor a questão torna-se perfeitamente científica. Só não o é enquanto não soubermos o que queremos dizer.

Mas o equívoco principal do Alfredo é julgar que as provas mais evidentes não podem ser científicas. «Muitas das crenças humanas nas quais se fundamenta a vida das pessoas comuns baseiam-se no testemunho e no crédito que elas se atribuem umas às outras. Não são o resultado positivo de qualquer teste científico a que essas crenças são submetidas. […] Não tenho nenhuma prova científica de que a minha mãe me amou desde que fui concebido no seu seio.»

A ciência não se faz só com tubos de ensaio. É o conhecimento que temos da realidade e a forma como o obtemos. A hipótese “esta mulher ama o seu filho” é tão científica como qualquer outra porque é tão passível como qualquer outra de se submeter ao teste das evidências. Basta pensar numa mulher que queima o seu filho com pontas de cigarro e o abandona num caixote do lixo. Se a tese do Alfredo estivesse correcta nada poderíamos dizer acerca do amor desta mãe pelo seu filho. Mas podemos. É uma hipótese testável, que carece de fundamento empírico e que pode ser refutada pelas evidências.

O ponto principal do Alfredo é este: «Continuarão a perguntar como sabemos cientificamente que os primeiros cristãos não se enganaram a respeito de Cristo. Como se eu devesse fornecer uma prova científica do amor que me têm os meus pais.» O que eu pergunto não é como sabem “cientificamente”. É como sabem, ponto. O advérbio é redundante.

O Alfredo engana-se quando diz que a crença no seu deus está além da ciência porque, sendo uma relação de amor e confiança, não está sujeita a evidências empíricas. Se uma mulher sofre agressões do marido durante anos e continua a dizer que ele a ama e que merece a sua confiança podemos afirmar com fundamento objectivo que ela está enganada. Se os pais criam os filhos com afecto e cuidado, ou se os abandonam com indiferença, ou se os torturam cruelmente temos evidências diferentes que justificam conclusões diferentes acerca do seu amor pelos filhos. O que se infere destas relações depende de evidências empíricas.

Todos os nossos relacionamentos, e em especial os de amor e confiança, têm um fundamento empírico. O amor e a confiança crescem prova a prova, teste a teste. E se nem nos nossos pais ou cônjuges devemos confiar cegamente, insensíveis às provas ou à sua ausência, muito menos devemos fazê-lo com um deus invisível e um livro de histórias antigas.

Em simultâneo no Que Treta!. Parte 1 aqui.

1- Alfredo Dinís, 3-1-10, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

5 de Dezembro, 2009 Ludwig Krippahl

Treta da semana: iguais, mas uns mais que os outros.

Tenho seguido o percurso da associação Portal Ateu – Movimento Ateístas Português (PAMAP) com interesse e preocupação. Interesse porque sou ateu e porque conheço pessoalmente o Helder Sanches e o Ricardo Silvestre. E preocupação, no fundo, pelas mesmas razões, que me colocam próximo das divergências que os levaram a sair da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) e fundar a PAMAP. O Helder considerava «obrigação [da AAP] ter uma abordagem positiva do ateísmo e demonstrá-lo à sociedade portuguesa, quer seja através de actos públicos de proximidade, quer seja através da organização e participação em debates, publicação de livros, etc.»(1) E ofereceu-se, com o Ricardo, para organizar estas actividades em nome da AAP. A iniciativa é de louvar, se a título pessoal, mas como nenhum ateu consegue representar adequadamente os ateus em geral, o consenso na direcção da AAP foi que este activismo não deve ter mandatários. A AAP não deve servir para mostrar o ateísmo do presidente da comissão de debates, ou algo do género, mas sim o que há de comum no ateísmo dos portugueses. Isto exige prudência, diálogo e, sobretudo, contenção no protagonismo.

A PAMAP tem uma abordagem diferente. Segundo o Helder, não procuram consenso mas representar apenas «os ateus que se sintam representados por nós»(2). Infelizmente, o nome dá a entender que representam o movimento ateísta português, pelo que me preocupa a ideia de ter uns a liderar o ateísmo dos outros. Principalmente depois de ler o regulamento interno da PAMAP, disponível no Portal Ateu (3). Além de uma gralha engraçada*, sugere uma intenção de chefia que me parece pouco compatível com a representação fiel do ateísmo. Diz o artigo 15º :

«1. Número de votos dos sócios:
a) Os sócios “fundadores” da PAMAP por se tornarem sócios na Assembleia-Geral constituinte da PAMAP terão 10 votos em Assembleia Geral,
b) Os sócios que se inscrevam na PAMAP após a Assembleia Geral Constituinte terão direito a 1 voto em Assembleia Geral. Estes sócios terão a denominação de Sócios Escalão 1,
c) Sócios de Escalão 1 que mostrem dedicação e empenho para o sucesso da PAMAP e da promoção do ateísmo, poderão ser convidados pela Direcção da PAMAP a ascenderem a Sócios Escalão 2, onde passarão a ter 5 votos em Assembleia Geral. Esta mudança de escalão será promulgada pela Mesa da Assembleia Geral,»

A 9 de Setembro os sócios fundadores já elegeram, por cinco anos, os órgãos da associação(4), e só na primeira assembleia geral ordinária serão aceites as propostas para novos associados. Os escalões de associados, uns com mais votos que outros, os mandatos de cinco anos e a eleição da direcção antes de admitir sócios é estranhamente anti-democrático. O Helder explicou-me que «Uma associação ateísta é uma associação como outra qualquer» (5), mas no respeito pela transparência, pela troca livre de ideias e pela diversidade de opiniões, penso que uma associação ateísta devia destacar-se da média.

E não para o lado em que a PAMAP se destaca. Segundo o Helder, «Ao contrário de outras organizações, aqui queremos privilegiar o mérito»(5). Não sei porque estar presente na escritura é dez vezes mais meritório que o que faz qualquer outro ateu. Mas o problema fundamental é “privilegiar o mérito” dando mais votos a quem a direcção decide. Imagino o Primeiro Ministro Sócrates propor que se reconheça o mérito dos cidadãos concedendo, à partida, dez votos a cada militante do PS, com o governo depois promovendo ao “escalão 2”, com cinco votos, quem o governo julgar ter mérito para isso. Não sei se o Helder iria aplaudir tal medida, mas muita gente interpretaria isto mais como uma forma de prolongar este governo do que de promover o mérito. Sei que uma associação não é um país, nem a sua direcção um governo, mas os princípios democráticos são análogos. A forma mais justa de reconhecer o mérito é todos votarem por igual e deixar o mérito de cada proposta ou candidato transparecer no número de votos.

A outra justificação do Helder é que «Dar o mesmo poder a quem não faz ou não deixa fazer é um tiro no pé da própria associação.»(5) É uma ideia interessante, esta do “poder”. Traz-me à mente uma reunião de ateus. Como as da AAP, nas quais o Helder também participou. Um almoço amigável, todos entusiasmados a discutir ideias, a pensar, a discordar e a criticar mas, em conjunto, a debater e a afinar propostas. Nisto, sai-se um com meus amigos, isso é tudo muito bonito, mas como eu é que tenho dez votos vai-se fazer como eu quero.

Um momento de silêncio. Um garfo bate levemente no prato. E desata tudo à gargalhada, uns a bater nas costas do desgraçado que se engasgou com o pão e outros a limpar as lágrimas de riso com o canto do guardanapo. Não sei em que ateus é que o Helder quer usar este “poder” dos dez votos. Os ateus são muito diferentes nas suas opiniões, atitudes e personalidades, mas como ninguém recebe o ateísmo por revelação, os ateus não têm profetas, nem bispos nem papas. No que toca à autoridade sobre o ateísmo, todos os ateus são iguais. Mesmo que alguns digam ser mais iguais que os outros.

*O artigo nono do regulamento interno da PAMAP, pelo menos à data em que escrevo este post, diz «Serão considerados «sócios fundadores» da Associação Ateísta Portuguesa todos os sócios que se tenham inscrito como tal até à data da realização da primeira Assembleia Geral.» Os perigos do copy-paste….

1- Helder Sanches, 19-1-09, Carta aberta à Direcção da AAP
2- A outra.
3- Portal Ateu, PAMAP
4- Portal Ateu, Nasceu a associação Portal Ateu – Movimento Ateísta Português
5- Portal Ateu, Convocatória para a 1ª Assembleia Geral ordinária da PAMAP

Publicado também no Que Treta!

30 de Novembro, 2009 Ludwig Krippahl

Sentido

Deus dá sentido ao universo. Pelo menos, é o que dizem os crentes. Mas não é claro o que isto quer dizer porque esta palavra pode referir orientação, significado, inteligibilidade ou algo que sentimos profundamente. E parece-me que alguns dos sentidos de “sentido” vêm baralhados na religião.

Partes do universo fazem sentido. Nem todas, porque há muito que ainda não compreendemos e que talvez nunca cheguemos a compreender. E, do que compreendemos, muito faz um sentido distante, que não mexe connosco. Sentido sem se sentir. Coisas como o número de estrelas da galáxia, o tamanho do electrão e a duração do universo estão tão fora da nossa capacidade de apreender subjectivamente que só as compreendemos na forma abstracta de representações simbólicas. O universo tem 13,500,000,000 de anos. Grande número. Tão grande que alguns preferem agarrar-se a um livro que o reduza a uns milhares de anos, mais ao alcance da imaginação compreensivelmente limitada dos antigos hebreus e mais dentro daquilo que podemos sentir. Dez mil anos sentimos que é muito tempo. Treze mil milhões de anos não nos diz nada, subjectivamente.

Compreendo que esta distância entre o sentido que a ciência dá às coisas e as coisas que conseguimos sentir desiluda alguns e os leve a imaginar algo mais humano para encontrar o tal sentido. A ciência unifica muitos fenómenos em teorias elegantes e rigorosas, tem grande poder explicativo mas parece demasiado abstracta por nos dizer coisas difíceis de imaginar. A Lua está a trezentos e oitenta mil quilómetros de distância. Tem três mil e quinhentos quilómetros de diâmetro e desloca-se à volta da Terra a quase quatro mil quilómetros por hora. Mesmo para quem sabe isto, são só números. É muito difícil olhar para a Lua e sentir estas dimensões ou sequer algo que se aproxime da imensidão que é até o nosso minúsculo cantinho do universo.

Por isso uma alternativa é encontrar sentido imaginando um deus que é amor. Amor sabemos sentir e podemos imaginar facilmente um ser que ama. Umas vezes caridoso e generoso, outras vezes ciumento e violento. Que age por paixão, ora com gestos fúteis de enorme sacrifício e dedicação, dando a vida só por dar (por amor!), ora exigindo tudo em troca, dedicação total ou o castigo eterno. Enfim, o deus da bíblia. Amor à medida da pequenez humana, sentido como nós o sentimos, com o bom e o mau à mistura.

Mas esta forma de procurar sentido não faz sentido. Sente-se, é verdade, mas não dá nada a compreender. Não esclarece o que observamos nem sequer encaixa com a imensidão do universo e a indiferença com que este nos trata. Este universo, é mais que evidente, não se porta com amor nem se importa connosco ou com coisa nenhuma. A hipótese de um deus que é amor não explica nada. Além disso, é errado julgar que é o deus que dá sentido. Mesmo que existisse tal deus, essa existência seria apenas mais um facto e esse deus seria apenas mais uma coisa, como o Sol, a Lua e as galáxias. O sentido, tanto o de dar a compreender como o de sentir, está nas nossas ideias e não nas coisas em si. A fé, no fundo, não é acerca dos deuses. É acerca da ideia de haver deuses.

Eu prefiro não abdicar do sentido que as coisas fazem só para as sentir. Prefiro não me agarrar a hipóteses sem fundamento nem utilidade explicativa só para despertar alguma emoção de assombro ou conforto. Por um lado porque seria enganar-me propositadamente. Por outro, e principalmente, porque não é preciso. Com um pouco de esforço, e provavelmente não mais que aquele que a fé exige, posso sentir na realidade um sentido tão forte como os que as religiões inventam com os seus deuses. Posso olhar a Lua e as estrelas e sentir algo da magnificência do que estou a ver sem ter de inventar o que estou a ver. Posso-me maravilhar por ser feito de átomos criados dentro de estrelas que explodiram há milhares de milhões de anos e sentir assombro pelo longo processo de evolução que me deu a capacidade de perceber as minhas origens.

É verdade que nunca serei capaz de sentir mais que uma pequena fracção daquilo que devia sentir. A vertigem que sinto, numa noite límpida, ao imaginar a distância a que estão as estrelas fica muito aquém do que devia sentir se a vertigem fosse proporcional à distância. Devia explodir de vertigem. Mas isto apenas demonstra as minhas limitações. Não justifica imaginar um deus de amor só para sentir mais qualquer coisinha.

Finalmente, as perguntas últimas. Qual o sentido disto tudo? Para que serve a nossa existência? E assim por diante. São perguntas fascinantes, mas nenhuma resposta que se encontre por aí poderá ser a resposta certa. Seja num livro sagrado, nas palavras dos deuses ou nas leis da natureza, nada que nos seja dado poderá dizer qual o sentido que isto tem para nós, pois esse terá de vir de cada um. São perguntas para ir respondendo, vivendo.

Em suma, os deuses não dão sentido. As hipóteses acerca deles não explicam nada e, mesmo que seja só para sentir, a realidade é melhor que as religiões que inventamos.

Também no Que Treta!

8 de Novembro, 2009 Ludwig Krippahl

Relacionamentos e margens de erro

Quando era miúdo tive uma professora de português de quem não gostava nada. A princípio. Mas, num momento de inspiração, ocorreu-me que aquilo de que eu não gostava era apenas uma ideia. Todo esse meu desagrado tinha por objecto a opinião que eu formara acerca de alguém que mal conhecia. A epifania serviu de imediato para tornar aquelas aulas muito mais suportáveis. E, a longo prazo, além de ainda me lembrar o que é o pretérito imperfeito do conjuntivo, tem me ajudado muito recordar que, salvo raras excepções, a ideia que formo das pessoas tem uma grande margem de erro. Há muito pouca gente na nossa vida que conheçamos suficientemente bem para ignorar lacunas na informação e estimativas erradas.

No relacionamento com os outros podemos assumir que os juízos que fazemos são fiáveis e evitar desilusões julgando os outros de forma mais pessimista. Ou podemos assumir o melhor das outras pessoas, dar-lhes o benefício da dúvida dentro da margem de erro e precavermo-nos contra dissabores tendo consciência que esse juízo é muito incerto. A experiência com a professora de português levou-me a optar pela segunda alternativa. É mais agradável, e mais justo, desconfiar da minha capacidade de julgar os outros em vez de ser pessimista acerca das pessoas.

Por isso concordo, em parte, com o que me descrevem os crentes quando dizem confiar no seu deus. Dão-lhe o benefício da dúvida. Se não conhecemos alguém, podemos assumir que é boa gente. Mas só concordo em parte porque é preciso considerar que podemos formar um juízo errado. Se um estranho me toca à porta eu assumo que é boa pessoa e incapaz de maltratar crianças. Mas como posso estar enganado acerca disto não vou deixar que leve os meus filhos a passear sem mais informação que reduza a tal margem de erro. Para isso já tem de ser alguém que eu conheça o suficiente para que, além da confiar que é boa pessoa, também confie nesse juízo que fiz dele.

E é nisto que os crentes se espalham. A religião, dizem-me, é uma relação com Deus. Ou com um deus, pelo menos. É confiar nesse deus. Mas o que quer que sintam por esse deus será sempre função da ideia que formaram dele. Ou dela. E o problema é não terem qualquer informação onde basear essa ideia. Eu, ao menos, tinha aulas com a professora de português. Não era suficiente para saber se era boa ou má pessoa, mas sempre sabia alguma coisa acerca dela. E neste universo não se vê vestígio de qualquer divindade. Tudo o que se pensava indicar intervenção divina tem vindo a desaparecer, como a magia do ilusionismo quando se explica o truque. Acerca do deus, da deusa ou dos deuses, nenhum religioso tem informação. Só especulação.

Por isso não me convencem quando dizem que se tem de interpretar o Antigo Testamento de uma maneira especial por esse deus não ser como os hebreus julgavam. Concordo que o Antigo Testamento relata o relacionamento dos hebreus com o seu deus, e que o relacionamento dos católicos com o deus católico é diferente daquele que os hebreus tinham com o seu. O dos católicos é chatinho mas é menos ameaçador, se descontarmos a tortura eterna com que castiga quem discorde dele. Mas ninguém, nem católicos, nem hebreus, nem seja quem for, faz ideia de como Deus é. Não se sabe sequer se existe tal coisa, quanto mais saber o que quer, o que manda, de que gosta ou desgosta ou como se deve interpretar o que se escreve acerca dele.

Em suma, até compreendo que queiram confiar num deus. Quando não tenho informação em contrário acerca de alguém também prefiro pensar que é boa pessoa. Mas neste caso é um exagero. A ideia que fazem do respectivo deus – e, no fundo, é sempre com a ideia que nos relacionamos – é fruto unicamente da imaginação dos crentes. Nem sequer é alguém que encontrem de vez em quando, nas aulas de português ou assim, porque na missa só está lá o padre e o cenário. Se estivesse lá um deus notava-se bem.

E este exagero nem é o pior. Na verdade, se é exagero ou não é um juízo subjectivo, e admito podermos discordar disto por divergências de valor. É legítimo alguém querer confiar tanto num ser que até confia, sem evidências, que esse ser existe. É estranho, mas está no seu direito. O que é objectivamente incorrecto é ignorar a margem de erro. Que é enorme. Infinita. Todas as religiões que há, que houve e que algum dia inventem cabem nessa margem de erro, porque não há quaisquer dados que a reduzam.

Daí que as minhas críticas não sejam por crerem, ou quererem confiar, naquilo que nem sabem se existe. O que critico é dizerem que sabem. Que sabem que deus é assim e assado, que aquele trecho deve ser interpretado daquela maneira, que condena o preservativo, transubstancia a hóstia, engravidou Maria e milhentos outros pontos tirados ao acaso do grande chapéu das margens de erro. O que critico é venderem erro como se fosse conhecimento.

Em simultâneo no Que Treta!

25 de Outubro, 2009 Ludwig Krippahl

Treta da semana: Leitura simbólica.

A propósito das declarações de Saramago, que a Bíblia é um «manual de maus costumes», teólogos e sacerdotes têm apontado que ler a Bíblia é uma coisa muito complicada. Como disse Carreira das Neves em debate com Saramago, a Bíblia tem infinitas leituras (1). Mas isso quase tudo tem e, retorquiu Saramago, por muitas interpretações que se dê a um texto não se pode esquecer o que lá está escrito.

Um problema que este episódio revela é a noção que alguns iluminados católicos sabem, com o saber de quem sabe, qual a interpretação certa para cada passagem. Por exemplo, o Filipe Noronha, no Companhia dos Filósofos, escreve acerca de Saramago que «mesmo para quem se diz ateu, a sua interpretação do texto e a mensagem que nos quer fazer chegar é […] um sinal claro de que devemos insistir na luta contra este tipo específico de ignorância.»(2) Mas dizer que a interpretação de Saramago é ignorante implica haver conhecimento. E, acerca disto, não há. Podemos ler tudo o que os cristãos escreveram acerca da Bíblia, de Aquinas a Ricoeur passando por Kiergegaard e C. S. Lewis, e o que vamos encontrar – nos duzentos mil livros que Carreira das Neves mencionou – é só opiniões. Para ser conhecimento precisavam assentar a opinião em algum processo fiável, testável e independente de opções subjectivas. Julgam que interpretam bem, cada um com a sua interpretação. Mas não sabem.

E isto de exigir «uma compreensão da Bíblia enquanto texto literário para verdadeiramente chegar ao seu sentido»(3) é moda recente. Só a partir do século XIX é que a exegese católica começou a considerar a Bíblia literatura. Antes disso defendiam uma interpretação literal. Daí que, quando afirmam que não se deve ler a Bíblia à letra, de uma forma a que chamam “banal”, contradizem dezoito séculos de tradição católica e outras variantes contemporâneas de cristianismo.

E a letra continua lá. Podemos interpretar o livro de Jó como uma crítica à justiça retributiva, mas é ainda verdade que Jahve e Satan submeteram o desgraçado a uma injustiça intolerável. Podemos ler o sacrifício de Abraão como um salto de fé, a solução para um dilema impossível, algo com um significado existencial tão profundo que não serve para nada. Mas não podemos negar que o texto exalta um personagem disposto a matar o filho em nome da religião. E isso é um mau costume. Qualquer pessoa civilizada reconhece que a liberdade religiosa acaba muito antes do infanticídio. Mesmo sendo legítimo aos católicos darem outras interpretações a estes textos, essas não anulam o que lá está escrito.

E há episódios que nenhuma (re)interpretação pode safar. Moisés desce da montanha e manda chacinar uma data de gente por ter um deus diferente. Deus manda matar cidades inteiras, destrói Sodoma e Gomorra por causa de preferências sexuais, transforma uma mulher em sal só porque olhou para trás, mata os primogénitos no Egipto só porque o Faraó era teimoso e assim por diante. Se os lermos como obra humana, estes relatos explicam-se pelo contexto cultural. Eram pessoas menos esclarecidas, intolerantes, sem respeito pela liberdade religiosa, privacidade e outros direitos fundamentais. Mas se é um livro inspirado por um deus então esse deus é horrível. Esse deus permitiu – e permite – que se façam coisas terríveis em seu nome. Se apedrejar uma rapariga até à morte por ter relações sexuais antes de casar não é um mau costume, não sei o que possa ser.

Finalmente, muitas interpretações pouco ajudam. O Novo Testamento relata como Jesus cresceu, liderou um grupo de crentes e foi morto na cruz. Os cristãos interpretam isto como um sacrifício do seu deus que, tornando-se homem, morreu e ressuscitou para nos redimir e mostrar que a morte pode ser vencida. O que é uma afronta ao sofrimento humano. Ser torturado e morrer é terrível, mas é terrível para quem é mortal, quem perdendo a vida perde tudo, quem não se pode defender do mal que lhe causam e deixa filhos órfãos e família desamparada. Um deus eterno, omnisciente e omnipotente, que com um pensamento podia ter transformado os soldados romanos em bolacha Maria, nunca esteve em perigo nem fez sacrifício nenhum. Fez teatro. E de mau gosto. É como ir à Etiópia, passar lá uma tarde sem lanchar e, de volta a casa, mandar àquela gente que morre à fome um postal da jantarada para terem esperança de vencer o seu jejum.

Muito pouco na Bíblia é compatível com os valores da civilização moderna. Quem preza a liberdade e a justiça não pode concordar nem com o antigo testamento, com um deus tirano que castiga e tortura só porque lhe apetece, nem com o novo testamento, em que o mesmo deus se faz inocente e se finge matar para nos dar esperança ou mostrar que morrer na cruz é amor. É claro que podemos reinterpretar a Bíblia à luz dos nossos valores. É sempre possível inventar que tudo o que parece mal é metáfora para outra coisa que vá escapando. Mas é incorrecto vender esta reinterpretação, muito forçada, como conhecimento. É mera opinião. E seria mais prático e honesto admitir, de uma vez por todas, que a Bíblia é um conjunto de obras literárias escritas por humanos. De grande valor histórico e cultural, com passagens bonitas, e com as falhas e caducidade de qualquer obra humana. O texto faz parte da nossa cultura mas a mensagem, felizmente, deixou de ser relevante.

Em simultâneo no Que Treta!

1- SIC, 23-10-09, Frente-a-frente, José Saramago e Joaquim Carreira das Neves
2- Filipe Noronha, 23-10-09, Todos temos razão.
3- Agência Ecclesia, Saramago faz releitura banal da Bíblia. Via (2).
4- Catholic Encyclopedia, Biblical Exegesis