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Ludwig Krippahl

28 de Maio, 2010 Ludwig Krippahl

Inteligência e croché

Eu sei como resolver equações diferenciais. A minha avó não faz ideia o que isso seja mas sabe fazer croché. Muita gente pensa que resolver equações diferenciais exige mais inteligência, mostrando que uma opinião não é mais fiável só por muitos opinarem o mesmo. Resolver equações diferenciais é tão trivial que com meia dúzia de linhas de código se põe um computador a fazê-lo. A minha avó faz croché ao mesmo tempo que segue os diálogos da novela, conversa com a vizinha e decide o que vai fazer para o jantar, coisa que ninguém faz ideia de como por um computador a fazer.

Não sei se um poeta é mais inteligente que um bailarino ou se ser professor e ensinar informática demonstra mais inteligência que ser avó e fazer croché. Quando tentamos ver em detalhe quanta informação se tem de processar para executar uma tarefa, muito do que nos parece trivial se revela extremamente complexo. E vice-versa. Temos programas de computador que vencem qualquer um no Xadrez mas nem um que perceba a piada da anedota mais simples. Por isso não sei dizer se um crente é mais ou menos inteligente que um descrente ou se a crença tem alguma coisa que ver com inteligência, uma capacidade tão abrangente que nem sei bem em que consiste.

Mas há uma coisa que me parece estar relacionada a diferença entre crente e descrente. À falta de um nome melhor, e não querendo confundi-la com inteligência, direi que é prática na análise crítica de proposições. A minha avó tem a quarta classe e quase tudo o que julga ser verdade aprendeu porque confiou em quem lho disse. Nos professores, nos pais, nos padres, na TV. Apesar de ter vivido muito mais que eu, teve poucas oportunidades (e menos encorajamento) para questionar se essas afirmações eram verdadeiras ou falsas e como responder a essa questão. Só aprendeu a acreditar e, com poucas oportunidades de aprender pela dúvida, até acha que duvidar é má educação.

E como a minha avó há milhares de milhões de pessoas. Nas estepes da Mongólia, nas favelas do Brasil, nas aldeias do Paquistão. E também nos países mais ricos, que poucos têm a possibilidade de ganhar a vida questionando hipóteses e pensando em como distinguir o verdadeiro do falso. E assim proliferam as superstições, entre as quais aquelas a que chamam religião.

Sei que muitos que se dizem entendidos nestas coisas alegam que religião e superstição são diferentes. Só que nunca explicam a diferença*, e a religião sentida da maioria dos crentes, os que pedem e negoceiam os favores dos deuses, é igual a qualquer outra superstição. Só no ar rarefeito da teologia e da exegese é que se discute, a par do sexo dos anjos, a diferença entre crer que a ferradura dá sorte e crer que a hóstia se transubstancia.

Mas é com esses que discuto religião. Não é com a minha avó, ou com a maioria dos crentes, que crêem porque sim e para quem isso não se discute. Discuto apenas com os que dizem estudar essas coisas. E, ao contrário do que me acusam por vezes, não assumo que são menos inteligentes ou menos capazes de distinguir o verdadeiro e o falso. Discuto com quem me parece querer discutir o assunto e ser perfeitamente capaz de o fazer. No entanto, há na posição do crente um obstáculo difícil de transpor. Não é falta de inteligência ou de capacidades. Nem sequer é aquela falta de treino que me dissuade de discutir isto com a minha avó. É a crença.

Essa é a grande diferença. A minha descrença é uma conclusão que proponho defender no diálogo. É o ponto final de um raciocínio no qual posso mostrar a sequência de razões que me conduzem a essa conclusão. Todos sabemos que danos no cérebro afectam a mente e essa fragilidade é evidência que não resistimos à morte do corpo. Todos sabemos que há crianças que pisam minas e ficam estropiadas, ou morrem de cancro, ou nascem com deficiências, e isso indica não haver um deus omnipotente a cuidar dos inocentes. Eu posso apontar o porquê da minha descrença com razões que o meu interlocutor reconheça serem verdade.

Em contraste, o crente assume a verdade daquilo em que crê sem nada que a possa justificar a quem não creia. Acredita numa vida eterna sem dados que suportem essa hipótese. Acredita que existe um deus, aquele deus, sem evidências disso. Conclui as premissas. Mas não de forma banal. A caminho do ponto de partida invoca a tradição, cita autoridades, aponta que não se pode provar o contrário, fala em amor, relação e razão, usa maiúsculas q.b., chama liberdade ao infortúnio e faz corar o Dr. Pangloss. Não falta nisto inteligência nem revela capacidades diminuídas. Mas opta por não contribuir para o diálogo racional, cujo objectivo é encontrar as razões aceites por ambas as partes que justifiquem uma conclusão consensual. Em vez disso faz croché com as palavras.

Admito que o croché tem mérito. Não é qualquer um que consegue. Mas é uma arte meramente decorativa.

*Há uma excepção que devo notar. Uma vez vi um antropólogo entrevistado na TV, penso que na RTP-2. Não me lembro do nome do senhor, mas à pergunta acerca da diferença entre religião e superstição ele disse haver um critério simples. Em cada cultura, religião é a sua e superstição as dos outros.

Também no Que Treta!

19 de Abril, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 6.

Continuando a sua série de equívocos acerca do ateísmo, o Alfredo Dinis foca a oposição do ateísmo à religião. «Os ateus nada têm a opor a que cada um acredite subjectivamente em deus e pratique em privado a sua religião. Opõem-se, porém, a todas as manifestações públicas da religião e à sua interferência na vida social, económica e política.»(1) O Alfredo diz que isto é um equívoco porque «se baseia numa ideia equivocada de ser humano que concebe como indivíduo fechado em si mesmo […] Uma tal concepção de ser humano é bem triste, e conduz ao anonimato e à tristeza sobretudo nas cidades.» Pois, como nos outros equívocos até agora, é precisamente o contrário.

«Se partirmos do pressuposto de que o ser humano é estruturalmente aberto à relação», como escreve o Alfredo, percebemos que o diálogo, a crítica livre e a troca franca de ideias fazem parte do que é ser humano. Ser humano inclui participar activamente na comunidade. Não basta ficar-se por acreditar, aceitar ou, como gostam de dizer, “respeitar” as ideias dos outros. Essa participação passiva fica muito aquém daquilo que um humano consegue. Precisa também defender as suas ideias, aprender com as dos outros, ponderar opiniões, apontar erros e criticar aquilo do qual discorda. E é isto que caracteriza o tal “neo-ateísmo” cujo ateísmo é tão velho como a religião mas que, novidade, não fica escondido e calado, participando activamente na comunidade. O que há de novo no ateísmo é defender as suas ideias e exigir uma relação de diálogo racional em que cada posição deve ser justificada e não apenas aceite por “respeito” ou por obra e graça de um espírito supostamente santo.

O Alfredo sugere que os ateus são contra a manifestação pública da religião e que aceitam apenas a prática religiosa privada. Mas eu não defendo que os religiosos tenham de o ser às escondidas nem me oponho a que exprimam as suas crenças ou pratiquem a sua religião em público. O que se passa é um pouco mais complicado.

Eu acho que Zeus não existe e que é completamente inútil rezar a Zeus, independentemente de quantas pessoas o façam, e seja em público ou em privado. Mas se alguém me confessa a sua crença em Zeus numa conversa privada eu não a vou tornar pública só para criticar. Não é que adorar Zeus em privado seja menos disparatado. É apenas que se tiver algo a dizer acerca de uma conversa privada digo-o em privado também.

Em contraste, se houver uma procissão a Zeus pelas ruas de Lisboa e gastarem duzentos mil euros num altar para fazer missas, pedir favores e louvar esse deus então já é legítimo criticar isto publicamente. Mais que um direito, tenho até o dever moral de dizer a quem me quiser ouvir que isto é asneira. Esta crítica é legítima não só por o acto ser público mas precisamente porque não sou um “indivíduo fechado em mim mesmo”. Tal como o Alfredo Dinis, também me preocupo com os outros. E preocupa-me que as pessoas percam tempo e dinheiro a adorar deuses falsos.

Mas isto ainda não é oposição. Discordo que se gaste dinheiro com Zeus, ou em astrólogos, videntes e homeopatas. E critico quem se diga perito nestas coisas como se fossem mais que mera fantasia. Mas não me sinto no direito de me opor no sentido de colocar obstáculos ou criar impedimentos. Se alguém quer gastar dinheiro em disparates posso tentar explicar porque são disparates mas, desde que não seja o meu dinheiro, critico e argumento apenas na esperança de esclarecer e não tento impedir ninguém.

Um caso diferente é governantes do meu país decidirem pagar um altar a Zeus usando o dinheiro que é de todos e sem sequer prestar contas de quanto estão a gastar nisso. Ou o governo obrigar os empregadores a pagar um dia de trabalho a quem faltar ao emprego para ver o Alto Sacerdote de Zeus em visita a Portugal. A isso já me oponho. Admito que a minha oposição é fraca, pois há pouco que possa fazer dentro do que é aceitável na nossa sociedade. Mas posso dizer que me oponho e que votaria contra isto se quisessem saber da minha opinião. Por mim, que pagassem medicamentos a quem precisa em vez de escaparates para deuses.

É claro que o Alfredo dirá que o seu deus é totalmente diferente de Zeus ou de qualquer outro deus. Todos os crentes dizem isso. Até os muitos que acreditaram em Zeus, se ainda cá estivessem. Foi um deus muito popular no seu tempo, e fartaram-se de gastar dinheiro com ele também. Mas este é um aspecto do ateísmo que o Alfredo, como muitos crentes, parece ter dificuldade em entender. O ateísmo não é um movimento com um propósito, muito menos com o propósito de erradicar seja o que for. O ateísmo é a consequência de perceber que as religiões são superstições como as outras. Como qualquer superstição, as religiões têm algumas coisas engraçadas, outras até bem vistas, muitas ridículas e, em geral, estão fundamentalmente enganadas.

Não há aqui um equívoco de achar que os supersticiosos se devem isolar. Qualquer pessoa é livre de ter e exprimir superstições. No entanto, se por um lado cada um tem o direito de acreditar no que quiser, por outro lado tem também o dever de não prejudicar a comunidade com isso. De não esbanjar dinheiro público em altares nem prejudicar a economia por julgar que um homem é o representante oficial do criador do universo. É esse o meu critério. O privado critico em privado, o público critico em público, e só me oponho quando a crença se torna abuso.

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Em simultâneo no Que Treta!

13 de Abril, 2010 Ludwig Krippahl

Convergência.

Muitos alegam que rejeito deuses, alminhas, vida depois da morte e afins apenas por assumir que não existem tais coisas. Como assumo que o universo é só matéria e natural, acusam, tenho de concluir que não há deuses. E se assumisse que o Senhor Jesus é o nosso Salvador ou coisa que o valha chegaria a uma conclusão diferente. Assumir a premissa certa salva a alma e dá paraíso. Como temos de partir de algum sítio, dizem-me, temos de assumir algumas premissas fundamentais que determinam tudo o resto.

Isto está só meio certo. É verdade que temos de partir de alguma premissa. Mas não é preciso ficar-lhe colados para sempre. Nem devemos, porque isso rouba-nos a capacidade de corrigir erros. À partida, tanto posso assumir que o chumbo é mais denso que a água como assumir que é menos denso. Porque, à partida, ainda não tenho dados que indiquem qual hipótese é mais plausível. E se escolhi a errada, quando vejo o chumbo afundar-se posso agarrar-me com toda a força à minha premissa dizendo que a água é impura, que o chumbo afundar não quer dizer nada, que não está no nível certo da realidade ou que é tudo obra do diabo.

Mas é melhor encarar todas as premissas como opiniões provisórias a rever conforme os dados que obtenha. Melhor porque não vicio a conclusão com algum erro nos primeiros passos, que são sempre os mais incertos. Se começar pela hipótese errada – e acontece muitas vezes – paciência. Posso corrigi-la mais tarde e mudar para algo mais plausível. E posso fazê-lo as vezes que for preciso.

Quem assume como certeza absoluta que Jesus é um deus, que Krishna existe, que o deus uno é três, que a Terra foi criada há dez mil anos ou que Maomé é o maior dos profetas vai ficar sempre na sua. Não importa que indícios encontre do contrário. Pode sempre dizer que são um teste à sua fé, inventar uma desculpa qualquer ou alegar uma compreensão daquelas tão profundas que ninguém percebe. O cérebro humano tem uma capacidade excepcional para moldar as suas crenças aos preconceitos. Muita gente até é capaz de ver uma criança a morrer de cancro e ainda acreditar que há um deus omnipotente que nos ama a todos. Ao pé disso, acreditar que o chumbo flutua não é nada.

Mas o cérebro humano tem também a capacidade excepcional de vencer preconceitos e adaptar crenças às evidências. “Enganei-me” custa a admitir a princípio mas, como tudo, é uma questão de hábito. E quem gosta de perceber as coisas habitua-se depressa. Porque cada erro traz uma oportunidade para o corrigir e quem não a agarra fica sem perceber nada.

É claro que se perde as certezas absolutas. Mas é um preço baixo, que as certezas absolutas são mera ilusão. E se bem que não possa rejeitar em definitivo a hipótese de estar sozinho no universo, de vocês todos serem também ilusórios ou outro problema existencial igualmente profundo, consola-me essas hipóteses serem tão inúteis e, na prática, tão irrelevantes que as posso mandar para o fim da fila e não me preocupar com elas enquanto não explorar as alternativas.

Por isto declaro-me inocente da teimosia de que me acusam. Não tenho hipóteses sagradas acerca dos factos. Os factos são o que forem. Não se vergam à minha vontade só por me pôr de joelhos e juntar as palminhas. E também não preciso de certezas absolutas. Não tenho a certeza absoluta de estar acordado, que tudo o resto exista ou até de eu próprio existir. Se calhar Descartes enganou-se e lá por haver um pensamento não quer dizer que tenha de haver um eu a pensá-lo. É possível.

Mas não é plausível. Por isso o bicho papão da incerteza não me assusta. Sei que se olhar de frente para as várias hipóteses e as confrontar com os dados posso ir descobrindo como as coisas são. Mais vale uma ideia provisória e cautelosa que possa ir aproximando da realidade do que deixar-me entalar na ilusão da Verdade Revelada™.

Um bónus agradável é saber que chego às mesmas conclusões a que chegaria se tivesse partido de premissas diferentes. Sabendo o que sei e julgando as hipóteses pelos seus méritos, seria ateu ainda que tivesse crescido muçulmano, budista ou judeu. É uma grade diferença entre quem tem religião e quem é ateu. Os religiosos são puxados, cada um para o seu lado, pelas convicções que lhes impingem desde infância. Os rituais, os sacerdotes, os preceitos, mandamentos, proibições e obrigações que os deuses, sabe-se lá porquê, se entretêm a impor aos seus fiéis.

Em contraste, os ateus chegam à mesma conclusão, e cada um por si. Cada um parte de premissas diferentes, percorre caminhos diferentes e tem uma maneira diferente de ser ateu. São pessoas diferentes. Mas todos tiveram um momento em que notaram que isto das religiões não bate certo. Um momento de “espera lá…” a partir do qual passaram a ver as várias alternativas e a procurar as mais plausíveis. E a hipótese mais plausível é que essa história dos deuses, anjinhos e companhia é tudo treta.

Em simultâneo no Que Treta!

5 de Abril, 2010 Ludwig Krippahl

Como sei que não tenho asas.

Ao longo de uns anos de blog várias vezes me têm apontado que a falta de evidências não prova que uma hipótese seja falsa. Por isso, dizem-me, não posso rejeitar a existência de deuses ou de uma alma imortal porque não posso provar que não existem. Em rigor, é verdade que não posso saber se a proposição P é verdadeira ou falsa se não souber nada acerca de P. Mas isto é só uma parte da história. O problema deste argumento é olharem para uma parte de cada vez quando o conhecimento está no encaixe das peças.

Para começar, não posso considerar uma hipótese isolada senão não há nada com que a comparar. Quando me pergunto, por exemplo, se terei asas, devo conceber dois modelos. Num imagino-me com asas a sair das costas. Noutro imagino que tenho as costas sem membros destes. E assim tenho duas hipóteses alternativas, pois só um dos modelos pode estar correcto. Agora parto do zero, sem evidências nem a favor nem contra qualquer das duas, e penso no que cada modelo prevê para reunir dados e testar as hipóteses.

Se o modelo das asas for o correcto espero sentí-las bater nas ombreiras das portas, conseguir vê-las, sentir o seu peso nas costas e assim por diante. Se for o outro não devo notar nada disto. Mas se não vejo asas, nem as sinto e não aparecem nas fotografias posso reformular o primeiro modelo. Tenho asas, mas são invisíveis, passam através dos objectos sólidos e não têm peso. Volto assim ao estado inicial, sem evidências nem a favor nem contra. E continuo os testes, e vou alterando o modelo sempre que as previsões falham. As asas também são invisíveis aos infravermelhos, nunca largam penas, não fazem barulho, são hipoalergénicas, não servem para voar. E sempre que reformulo o modelo volto à situação inicial. Nem evidências a favor, nem evidências contra.

Mas se olho para o percurso vejo uma clara diferença entre os dois modelos. O modelo de mim sem asas acertou sempre em todas as previsões, desde o início. O outro tem cada vez mais remendos porque está sempre a falhar, e cada vez o que prevê é mais parecido com o que prevê o modelo contrário. Que não vou ver asas, nem as vou sentir nem vou conseguir voar. Antes de chegar aqui já qualquer pessoa razoável disse porra, não tenho asas e pronto. A falta de evidência que se lixe. Porque se bem que se possa sempre alterar o modelo das asas para fugir às evidências contrárias, este processo em si é evidência forte que o modelo não presta.

Os modelos iniciais das almas e dos deuses eram modelos a sério. Diziam-nos coisas. Tinham possessão demoníaca, fantasmas, diluvios, doenças para castigar os infiéis e trinta por uma linha. Mas foram-se desvanecendo como as minhas asas e, hoje, não adiantam de nada. É o deus que age sem intervir imanente na indeterminação da contingência que torna necessária pela constante criação, mas do qual não há vestígios. É a alma imortal que, de tão transcendente que é, até fica bêbada, perde a memória com um AVC e muda de personalidade com a esclerose múltipla.

É claro que não há evidências contra estes modelos, pois sempre que se encontra algo que os contradiga metem-lhes mais um remendo. Ainda assim, e precisamente por isso, não valem a farinha de uma hóstia.

Adaptado deste post no Que Treta!

4 de Abril, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: A vida depois da morte.

Esta treta é antiga. Uma das mais antigas de todas. Mas decidi abordá-la hoje por ser, mais coisa menos coisa, o dia das mentiras. O que nos propõem é que depois de morrermos continuamos vivos. Porque ouviram dizer que sim. Não há dados fiáveis acerca dessa existência no além nem forma de ir lá ver e voltar. Mas algumas pessoas, como a amiga da Júlia Pinheiro, dizem que sim senhor, anda lá tudo muito contente, e muita gente diz que acredita. Não confia muito, a julgar pelo estado de espírito nos funerais. Mas diz que acredita.

A ideia é estranha logo à partida se pensarmos na vida antes da concepção. Nada. Alguns dizem que reencarnaram e que até se lembram das vidas passadas, quando eram o sapateiro de Napoleão ou um primo afastado de um dos apóstolos. Eu fui ver à ‘net, introduzi a minha data de nascimento e descobri que fui uma mulher que construia casas e catedrais na Nova Guiné por volta do ano 800 (1). É interessante. Mas parece-me pouco plausível.

Outros defendem que quando o óvulo e o espermatozóide se encontram – mas só os da nossa espécie – um deus faz rapidamente uma alma eterna e imortal e enfia-a, bem enroladinha, no zigoto em formação. Daqui concluem ser pecado fazer zigotos em tubos de ensaio. A premissa é um mero palpite, pois não sabem distinguir entre zigotos com alma e zigotos desalmados. Pior ainda, a inferência não faz sentido. Se a alma vai direitinha para o céu esta é a melhor maneira de garantir a salvação sem as provações e tentações da vida terrena. A menos que temam que Deus ponha almas em zigotos sem futuro para depois as deitar no inferno por falta do baptismo e do carimbo da paróquia. E tudo por amor, com certeza.

Mas além de ser mera especulação infundada, a hipótese da vida depois da morte é contrária ao que sabemos ser necessário à vida e, principalmente, à consciência. Viver exige capacidades, mudança, dinamismo, energia. A vida dura enquanto se equilibra na crista de uma onda de entropia. Algo que seja imaterial e eterno será forçosamente inerte. Sem vida.

E persistir além da morte não serve de nada se não mantivermos a nossa subjectividade. Sem sentir, pensar, decidir, recordar, imaginar, desejar, e essas coisas não tem piada nenhuma. E tudo isso, ao que sabemos, precisa de um cérebro funcional.

Apesar de supostamente termos alma logo na concepção, as primeiras recordações que guardamos surgem só vários meses depois do nascimento. Nascemos com o cérebro muito imaturo, não só nas ligações entre neurónios, que demoram mais de uma década a organizar-se, como nas células em si. É durante os meses após o nascimento que os neurónios se envolvem em mielina e começam a funcionar devidamente. Sem este passo não há pensamento, memórias, e possivelmente nem há sensações nem consciência.

As lesões no cérebro mostram bem como é improvável a consciência sobreviver à morte do corpo. Um AVC pode roubar-nos a memória, a capacidade de entender a linguagem ou de decidir e um traumatismo pode transformar por completo a personalidade. A doença de Alzheimer é um exemplo dramático disto tudo, uma lenta mas inexorável degeneração do cérebro que acaba por destruir tudo o que define a pessoa. O paciente começa por ter dificuldades de memória e atenção, perde capacidades cognitivas, vocabulário e coordenação motora, torna-se apático, a personalidade desvanece-se. Eventualmente já não há lá ninguém e o corpo morre. Se a alma ainda sobrar leva muito pouca coisa.

E se a ideia de uma vida com fim é desagradável, a ideia da eternidade, se a levarmos a sério, é insuportável. Um tédio tão assustador que até fez com que inventassem o budismo para se safarem das reencarnações intermináveis a que o hinduísmo condena. Antes o nirvana, abandonar tudo para encontrar a serenidade final de deixar de ser.

Hoje, centenas de milhões de pessoas celebram a vitória sobre a morte. Disseram-lhes que um deus conseguiu ressuscitar e, para algumas, isto até talvez seja um consolo. Mas esta ideia não serve para consolar. Esta coisa da vida depois da morte serve principalmente para comprar fiado. Dá-me toda a tua vida, dizem estas religiões, que depois de morreres logo deus te paga. Pois sim… Aqui, meus senhores, fiado só amanhã.

Boa Páscoa.

1- The Big View, Past life. «I don’t know how you feel about it, but you were female in your last earthly incarnation.You were born somewhere in the territory of modern New Guinea around the year 800. Your profession was that of a builder of houses, temples and cathedrals.»

Também no Que Treta!

30 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

O pensamento ateu.

Apesar do outro post sobre o assunto (1), continuam a insistir que o pensamento ateu é pouco profundo, que o ateísmo só vive da crítica à religião, que é insensato definirmo-nos por sermos apenas contra uma ideia e assim por diante. Não sendo inteiramente erradas, estas alegações sugerem, no entanto, uma visão demasiado estreita do ateu e do ateísmo porque focam apenas um detalhe de uma atitude muito mais abrangente.

Os crentes chamam-me ateu porque não acredito no que me dizem acerca dos seus deuses. Mas, para mim, isto é como não acreditar quando me dizem que o Pai Natal traz as prendas, que há um monstro em Loch Ness ou que extraterrestres raptam pessoas. Não aceito como verdade aquilo que não for devidamente justificado. E com hipóteses tão extraordinárias o mais razoável é mesmo assumir que são falsas enquanto não haver indícios igualmente extraordinários.

Isto não é um ismo. É bom senso. Quando recebo um email de um general africano a pedir para lhe enviar 50€ para ele transferir cinquenta milhões para a minha conta não confio na promessa e nem sequer fico indeciso acerca da honestidade da proposta. A indecisão levaria a estimar 50% de probabilidade de ser verdade, um risco aceitável nesse caso. Mas o que eu concluo, como a maioria das pessoas, é que é treta. Nem com um ganho possível de um milhão para um arrisco, e quem for consistentemente crente ou agnóstico nestas coisas vai à falência num instante. Felizmente, a maioria rege-se pela regra de rejeitar alegações extraordinárias que não sejam suportadas por evidências extraordinárias.

Para perceber o tal “pensamento ateu” basta perceber que esta atitude não é excepcional. Não se discrimina um deus ou os deuses só para implicar. Por não haver termos equivalente a “ateu” para quem duvida de outras alegações duvidosas, como raptores extraterrestres ou monstros em lagos, parece que ser ateu é um caso à parte. Mas rejeitar como incorrectas as alegações de quem diz saber que deuses existem e como são deriva simplesmente da aplicação homogénea dos critérios para aceitar alegações extraordinárias.

Lamento desiludir quem procura um “pensamento ateu” único e original, mas isto é o mesmo que os crentes fazem. A diferença está só em não abrir excepções arbitrárias. Pensem no nível de evidência que exigiriam para aceitar afirmações como: Maomé é o maior e derradeiro profeta de Deus e o Corão é a palavra divina; “eu” é uma mera ilusão que devemos descartar, desprendendo-nos de tudo para quebrar o ciclo de reencarnações que nos prende a uma falsa identidade e existência; há 75 milhões de anos um maléfico imperador da galáxia trouxe milhares de milhões de extraterrestres para a Terra e chacinou-os aqui com bombas de hidrogénio; Deus encarnou como o filho de um carpinteiro para morrer por nós e agora transubstancia hóstias em pedaços do seu corpo. Qualquer crente razoável duvidará de pelo menos três destas, mesmo que seja muçulmano, budista, cientólogo ou católico. O ateísmo, enquanto rejeição de dogmas religiosos, consiste simplesmente em aplicar à que sobra os mesmos critérios que se aplica a todas as outras hipóteses religiosas, de OVNIs, de astrologia, monstros e emails suspeitos. Se exigirem da vossa religião o mesmo que exigem do resto facilmente perceberão que o “pensamento ateu” é apenas pensamento. É o mesmo de sempre e de todos.

No entanto, isto restringe a discussão ao juízo de afirmações sobre factos. Se bem que “ateu” normalmente refira aquele que rejeita explicitamente os dogmas religiosos, a distinção entre quem tem e quem não tem deuses vai além da mera avaliação de hipóteses. Um factor importante, e independente até dos deuses existirem ou não, é a disposição para a veneração, a participação numa comunidade religiosa, a oração e aquela coisa vaga a que chamam espiritualidade. Isto, talvez mais que o resto, determina se alguém se sente um crente.

Nisto já se pode apontar uma diferença radical entre crentes e ateus. Não é uma diferença de pensamento, no sentido de uma decisão racional e justificável a terceiros, mas sim uma diferença de personalidade. Há quem se sinta bem pensando que obedece a deus, que o ama e que é livre na servidão e obediência, ou coisas do género. E há quem não veja interesse nenhum nisso. Infelizmente, separar assim ateus e crentes cria o problema de classificar os que seguem os rituais da sua religião por hábito e tradição, e que professam os dogmas oficiais, mas que não sentem qualquer ligação a um deus. E suspeito que não sejam poucos.

Por isso proponho que se contorne estes problemas simplificando a discussão. Primeiro, dando menos importância ao termo e à definição de “ateu”. É mais confuso que relevante e não se define ninguém por não acreditar num deus, tal como ninguém se define por não acreditar noutra coisa qualquer. Em segundo lugar, aceitando que a religião não agrada a todos. Uns gostam e outros não. É um género de sauerkraut espiritual. E, finalmente, reconhecendo que qualquer hipótese que se proponha acerca dos deuses é como qualquer outra hipótese acerca da realidade, e deve ser encarada com tanto cepticismo quanto for excepcional.

Editado a 31-3 para corrigir umas gralhas apontadas pelo ricardodabo. Obrigado pela atenção.

1- O elefante

Também no Que Treta!

28 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 5.

Pela quinta vez o Alfredo Dinis imagina equívocos no ateísmo equivocando-se ele próprio acerca daquilo que o ateísmo é. «O maior drama do ateísmo», repete o Alfredo, é «estar estruturalmente impedido de conseguir os seus objectivos: erradicar a religião.» (1) Não sei se é da tradição religiosa de repetir o falso na esperança que se torne verdadeiro ou se é para mostrar que a religião resiste à crítica não lhe fazendo caso mas, seja pelo que for, lá tenho eu de esclarecer, também pela quinta vez, que o meu ateísmo não quer proibir a religião a ninguém. O objectivo é permitir a todos que tenham as religiões que quiserem, que não tenham nenhuma se nenhuma lhes interessar, e que possam discutir livremente os méritos de cada alternativa.

Se esta ambição parece modesta é pela sorte de vivermos em época e lugar onde se aceita estas discussões quase sem problemas. Noutro século, ou noutro país deste século ainda, a hierarquia religiosa não precisaria de procurar equívocos nem contrapor argumentos. Mandava prender o chato do ateu e pronto. E este estado afortunado do qual gozamos aqui e agora não é um trabalho acabado que dê royalties enquanto descansamos. É um filho, uma criança que precisa de carinho e encorajamento. E protecção atenta contra os que se aproveitam do poder para se impor aos mais frágeis. É sobre isto que trata o quinto equívoco do Alfredo:

«Os não crentes têm um particular gosto em apontar episódios negativos da história da Igreja Católica […]. O equívoco está em pretenderem transformar episódios lamentáveis em argumentos contra a existência de Deus.»

Admito parecer-me estranho que um deus omnipotente, justo e que ama toda a gente não se rale com a barbaridade que por aí fazem, fizeram, e certamente farão em seu nome. Se existisse devia deixar bem claro o que é a mando dele e o que é de improviso. Mas vou concordar com o Alfredo. A discussão sobre a existência de deuses não tem que ver com os problemas da religião. Por um lado porque tanto faz. As Cruzadas, matar judeus e hereges, a Inquisição, a sharia, as castas, o encobrimento de crimes e coisas que tais são hediondas haja ou não haja deuses. E, por outro lado, porque a existência de deuses é uma questão meramente académica sem aplicação prática. É como discutir se há zereminhos.

Como nunca ninguém viu, ouviu ou cheirou nem um zereminho* nem um deus, somos livres de lhes inventar os atributos. Alguns podem parecer impossíveis, como alimentar-se de coelhos marcianos ou nascer filho de si próprio e de uma virgem. Mas pode-se sempre inventar algo para que a hipótese deixe de ser testável. Uns comem coelhos marcianos noutro nível da realidade, fora do espaço e do tempo, e o outro nasceu filho de si e da virgem por milagre. E pronto. Com um pouco de imaginação inventa-se algo que ninguém pode provar que seja falso, e com uns rituais e vestes elaboradas muitos nem notarão que é ridículo.

Quando aponto “episódios negativos” das religiões – que infelizmente nem são poucos nem só históricos – não estou a apresentar argumentos contra a existência de qualquer deus. Estou a apontar os perigos da religião. Sem uma oposição constante e atenta é inevitável que a fé hierarquizada, dogmatizada e servida em pacote a cada fiel dê mau resultado. Sempre que a sociedade o permite, a hierarquia religiosa dominante usa o poder do “crê e cala” para se impor, para se elevar acima da lei e para privar a maioria dos seus direitos mais básicos. Isto não aconteceu uma ou duas vezes. Aconteceu sempre e em qualquer sítio onde deixassem a religião mandar na vida das pessoas.

A religião dá às pessoas certezas acerca daquilo que não sabem. Ou afirmando proposições desligadas de quaisquer dados, como a transmutação da hóstia e os milagres, ou forçando ignorância sobre evidências contrárias, com virgens que dão à luz, homens que morrem e ressuscitam e a Terra ter dez mil anos de idade, por exemplo. E isto é mau.

Não é mau pela fé; cada pessoa ter confiança nas suas ideias não tem mal nenhum, desde que saibam dialogar e aceitem que outros discordem. O que é mau é a religião, essa alavanca que uns espetam na mente dos outros para ter uma autoridade falsa e um poder indecente de ditar o que se há de pensar e acreditar.

Ao contrário do que o Alfredo sugere eu não aponto os podres das religiões para refutar a existência de deuses. Essa questão morre na falta de evidências que suportem qualquer especulação sobre qual deus é suposto existir, como é e o que quer. Os “episódios negativos” são preocupantes porque manifestam um problema muito mais grave que a existência de deuses. O perigo de confiar a alguns homens a escolha dos disparates em que os outros vão acreditar. Não é algo que se possa erradicar e sou contra sequer que se tente. Há quem goste que lhe digam em que acreditar, e há quem goste de o dizer. Temos de respeitar esse direito.

Mas temos também de lutar para proteger o nosso direito de apontar o ridículo e criticar os abusos. Porque quando não conseguem convencer alguém a enfiar essa alavanca na cabeça tentam enfiá-la à força. E enfiam onde calhar…

* Confirmei mesmo agora no Google…

1- Companhia dos Filósofos, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo

Em simultâneo no Que Treta!

22 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

Da lama e afins.

Os meus posts acerca dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica suscitaram algumas respostas mais emotivas (1). O António Parente disse que era nojento apresentar aquelas estatísticas, o Nuno Gaspar chamou-me charlatão pelas contas e acusaram-me de lançar lama e manchar a reputação do sacerdócio católico. Não concordo que as estatísticas devam ser escondidas. Muito menos disfarçadas como acontece nos jornais. Dizer que 10 padres indiciados é “uma minoria” esconde o facto importante de que 10 em 4000, para um crime destes, não é de desprezar.

E as estatísticas são atributos de amostras de onde se infere médias da população. Não atiram lama a nenhum individuo. Se fosse só por 4% dos padres católicos nos EUA terem abusado de crianças não ficaria manchada a reputação dos restantes. O problema é outro. É por esse outro que os cavalheiros protestam demais.

Em 2001 o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), enviou uma carta confidencial a todos os bispos da Igreja Católica estipulando os delitos reservados à CDF e que deviam ser mantidos em segredo dentro da Igreja (2). Quase todos são pertinentes apenas para os católicos, como deitar fora a hóstia ou celebrar a missa com sacerdotes de outras religiões. Mas há uma excepção importante: «Um delito contra a moral, nomeadamente: o delito cometido por um sacerdote contra o Sexto Mandamento do Decálogo com um menor de 18 anos»*.

É isto que lança lama na reputação da Igreja Católica. É isto que é nojento. Não só a carta de Ratzinger, que seguia a prática comum na Igreja. Mas também a reacção de todos os bispos a quem foi dirigida e de todos os sacerdotes que dela tomaram conhecimento.

Se isto fosse numa empresa ou universidade tinha morrido à nascença. Imaginem vir da direcção uma carta ordenando que qualquer caso de abuso sexual de menores fosse mantido secreto e remetido à direcção para ser resolvido internamente. A maioria das pessoas certamente se oporia a tal ordem e a denunciaria às autoridades. Mas os cardeais mandaram, os bispos acataram e os padres calaram. Na Igreja Católica ninguém se opôs e todos compactuaram para esconder estes crimes.

É isto que me incomoda mais nas religiões. Não me incomodo por não gostar de rituais, avés e salvés. Tolero bem que os gostos dos outros sejam diferentes dos meus. E nem é tanto por achar que as religiões se baseiam em mentiras. Se as pessoas estiverem informadas e mesmo assim quiserem acreditar, paciência. O pior, e mais preocupante, é o mal que faz às pessoas pertencer a estas organizações religiosas, que são fechadas, doutrinárias e hierarquizadas

Ao contrário do que apregoam, uma religião não torna uma pessoa melhor. As estatísticas neste caso refutam cabalmente a hipótese. E uma religião tem o poder insidioso de obrigar uma pessoa decente a agir de forma condenável. É muito improvável que todos os cardeais, todos os bispos católicos e todos os padres que participaram nestes processos sejam pessoas más. O mais certo é serem pessoas normais, decentes como quaisquer outras. Pessoas que se trabalhassem numa organização diferente e lhes dessem uma ordem destas a teriam denunciado sem hesitação. Uma pessoa normal não aceita que se esconda abusos sexuais de crianças.

Os pedófilos nas igrejas são um problema grave mas não são pessoas normais. Encontrando uma oportunidade, abusariam de crianças tendo ou não tendo batina. Se bem que tenha sido a sua religião que lhes deu a oportunidade, não se pode concluir que foi por causa da religião que se tornaram pedófilos. Mas o mesmo não se pode dizer dos outros todos. Dos outros que esconderam, disfarçaram, mandaram guardar segredo e obedeceram a essas ordens. Esses não o fizeram por serem monstros ou doentes. Esses ajudaram os violadores, sabendo bem o que faziam, unicamente por causa da sua religião.

Se querem saber porque é que os ateus perdem tanto tempo a falar de religião têm aqui um bom exemplo daquilo que nos preocupa.

* Este é o do adultério, não o do homicídio… a numeração varia um pouco conforme as fontes.

1- Fazendo as contas e Adenda ao post anterior.
2- Bishop Accountability, Ad exsequendam ecclesiasticam legem. Via As responsabilidades e a fuga, do Ricardo Alves.

Também no Que Treta!

14 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

Mais equívocos

Ou mais do mesmo. O Alfredo Dinis continua a insistir que «O maior drama do ateísmo [é] estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião» e que as críticas do ateísmo «não beliscam a religião»(1). Se o maior drama é isso estou bem, que o meu ateísmo serve-me para eu viver sem religião. Se há quem acredite em astrologia, Allah ou aparições em Fátima tenho pena. Gostaria que conseguissem livrar-se desses disparates. Mas antes eles que eu. Quando leio esta afirmação do Alfredo sinto como se me dissesse que o maior drama de não fumar é não conseguir que todos os outros deixem de fumar. O objectivo não é bem esse…

E não beliscar “a religião” não tira valor ao ateísmo. Nenhuma religião se belisca com as críticas das outras. São muito resistentes ao diálogo. Além disso a religião, no singular, não existe. Existem religiões. Muitas. Milhentas crendices, rituais, dogmas, hierarquias e superstições da mais variada espécie, cada uma das quais defendida como “A Religião®” pelos seus praticantes. Quando dou exemplos dessa diversidade, o Alfredo diz que critico caricaturas. Como o padre Gabrielle Amorth, exorcista-mor do Vaticano, segundo o qual o filme “O Exorcista” é «substancialmente exacto»(2), os exorcisados cospem pregos e vidros, e Hitler e Estaline estavam possuídos pelo diabo*. Julga este padre que a maior tragédia do século XX podia ter sido evitada com um par de exorcismos. Talvez o Alfredo não chegue a chamar caricatura a isto. Mas se fosse outra religião suspeito que não hesitaria.

E é por isto que o ateísmo não belisca nenhuma religião. Porque cada religioso acha, à partida e sem discussão, que a sua religião é que é a verdadeira e tudo o resto são imitações inferiores. Chamam-lhe fé. Dizem que a fé é a confiança que têm em deuses mas, em rigor, estão enganados. É apenas a confiança exagerada que têm nas suas próprias crenças. O que me traz ao “quarto equívoco” que o Alfredo aponta. Alegadamente, o ateu pensa que «Só os ateus têm a possibilidade de pensar livremente sem constrangimentos de espécie alguma».

Eu não. Pelo contrário. Julgo que os meus interlocutores nestas conversas são capazes de um pensamento tão livre quanto quiserem. Senão nem discutia isto, que não me interessa tentar o impossível. Também não ensino solfejo a caracóis nem dou aulas de biologia ao Jónatas Machado. E concordo com o Alfredo que o nosso pensamento está sempre sob pressões culturais. É precisamente por isso que devemos avaliá-lo tentando sair dessa perspectiva.

Eu confio no meu ateísmo porque assenta em premissas que eu consideraria igualmente válidas se tivesse nascido numa família muçulmana em Kabul, entre hindus em Varanasi ou budistas em Lhasa. Sou ateu porque não me quero submeter a deuses e porque não encontro evidência objectiva de haver algum. E isto vale aqui e vale do outro lado do mundo. Em contraste, o Alfredo várias vezes justificou a sua fé pela tradição cristã, prendendo-se precisamente àquelas restrições culturais que nos limitam o pensamento se não tentarmos ver mais além. Não por ser incapaz de o fazer. Ao contrário do que o Alfredo sugere, eu tenho confiança que, se ele quisesse, poderia pensar no problema do ateísmo e das religiões de uma forma menos constrangida pela sua cultura e formação. Mas talvez seja por isso que tem relutância em fazê-lo, reconhecendo que se tivéssemos nascido noutra parte do mundo o meu ateísmo seria o mesmo mas a religião dele seria muito diferente.

Tentando contrariar a ideia da fé como uma prisão intelectual, o Alfredo faz notar que a sua religião tem mudado ao longo do tempo. «A compreensão da doutrina e dos dogmas do cristianismo tem sido reformulada de acordo com a evolução da língua e da cultura, bem como dos conhecimentos que se vão adquirindo através da ciência.» Mas isto apenas demonstra o problema que o Alfredo apontou, que a maneira de pensar é pressionada pela cultura e educação. Como diz Dennett, as religiões adaptam-se porque precisam convencer as congregações (3). É por isso que se modificam «de acordo com a evolução da língua e da cultura» e de acordo com a percepção popular da ciência. Não mudam quando descobrem coisas novas. Mudam quando os bancos começam a ficar vazios. Mudam, ou desaparecem.

A ciência faz previsões concretas que, quando falham, a obrigam a mudar. Por isso a teorias da relatividade, da evolução e da mecânica quântica, a astronomia, a bioquímica e a cosmologia, não foram mudando ao sabor de “língua e cultura”. Pelo contrário. Mudaram perante os factos e isso fez mudar muito a nossa cultura, a nossa visão do mundo e até a nossa língua. É este o processo que o ateísmo segue. Olhar para os dados em vez de seguir crenças e tradições.

E como os dados exigem modelos para os interpretar, há que considerar vários. Quanto mais melhor. Considerar a possibilidade do universo ter sido criado por Shiva, por Cronos, pelo Homem-Aranha, por Jeová ou por processos físicos. Depois comparar o desempenho desses modelos e escolher o que melhor explica o que se observa. Esse processo, com os dados que temos, dá em ateísmo. Para se chegar a qualquer alternativa religiosa é preciso escolher essa logo à partida e ignorar o processo por completo. E, nesse caso, a escolha é provavelmente determinada pela cultura na qual se nasceu.

*É curioso que não tenha mencionado Mussolini…
1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Times online, 11-3-2010 Chief exorcist Father Gabriele Amorth says Devil is in the Vatican
3- Neste debate, por exemplo: Debate – Hitchens, Harris, Dennett vs Boteach, D’Souza, Wright, Cuidad de las ideas

8 de Março, 2010 Ludwig Krippahl

Deus e a pedra

Dizem que Deus é omnipotente. Não explicam como o descobriram nem sequer como se testa se alguém é omnipotente e não apenas muito poderoso. Dizem que é, e pronto. E a omnipotência é problemática, como ilustra o clássico exemplo de Deus criar uma pedra tão pesada que nem ele possa levantar. Se Deus é omnipotente então consegue criar um objecto inamovível. E se é omnipotente consegue movê-lo. Mas se consegue movê-lo é porque não o conseguiu criar inamovível. Ou seja, mesmo quem é omnipotente não pode fazer tudo, ao contrário do que o termo sugere.

Os defensores da omnipotência dizem que este problema se resolve restringindo a omnipotência apenas ao que é logicamente possível e definindo em seguida o âmbito dessa possibilidade. O que foge ao problema, que era precisamente ser preciso encolher a omnipotência para ser menos que “pode fazer tudo”. Mas adiante. Explicam então que se Deus é omnipotente é capaz de mover qualquer objecto. Assim, é logicamente impossível existir um objecto inamovível e, por isso, a incapacidade de Deus criar tal objecto não contradiz a sua omnipotência. Sendo esse objecto logicamente incompatível com um deus omnipotente, conclui-se que um deus omnipotente não consegue criar um objecto que não possa mover.

Como é regra nestas “explicações”, a hipótese parece razoável só até considerarmos alternativas. Por exemplo, se um objecto é inamovível é logicamente impossível movê-lo. E se um Deus é omnipotente pode criar qualquer objecto, mesmo inamovível. E como é logicamente impossível mover um objecto inamovível, a incapacidade de Deus mover tal objecto não contradiz a sua omnipotência. Demonstra-se assim exactamente o contrário do parágrafo anterior: Deus pode criar um objecto inamovível – afinal, é omnipotente – mas não o pode mover porque isso seria logicamente impossível – o objecto é inamovível, por definição – e Deus só pode fazer o que é logicamente possível.

A hipótese de haver um ser que pode fazer tudo cria inconsistências como esta entre poder criar um objecto inamovível e poder mover esse objecto. Para eliminar tais inconsistências basta eliminar uma das hipóteses. Ou consegue criar qualquer objecto mas não consegue mover os inamovíveis, ou consegue mover qualquer objecto e não consegue criar um que seja inamovível. Mas isto não resolve o problema original que é não ser possível ter poder para para tudo. É sempre preciso substituir a noção de omnipotência, que em vez “pode fazer tudo” passa a ser “só pode fazer aquilo que não torne a ideia absurda”.

Ainda assim, ficamos com duas formas diferentes mas perfeitamente equivalentes de eliminar a contradição. E ficamos sem saber se a omnipotência de Deus lhe permite mover qualquer objecto ou se lhe permite criar objectos inamovíveis. Sabemos que ambas não pode ser, mas qual das alternativas é a correcta permanece um mistério. Como tudo o resto, nestas coisas.

O problema principal é que todas estas hipóteses são gratuitas e inúteis. Não há qualquer observação que nos indique se a omnipotência de Deus permite, ou não permite, criar um objecto inamovível. Não há nada que se explique com estas hipóteses. E o mesmo se passa com a própria hipótese da omnipotência.

Há muitas hipóteses que não podemos descartar sem ficar com dados a nu, com coisas por explicar. Se descartarmos a gravitação não percebemos o movimento dos corpos. Sem o electromagnetismo não compreendemos a luz e a electricidade. Sem a evolução não se percebe a diversidade dos seres vivos, e assim por diante. Mas se descartarmos a hipótese de existir um deus omnipotente toda a nossa compreensão daquilo que observamos fica na mesma. Não perdemos nada ao rejeitar essa hipótese.

Além disso, descartar a hipótese que Deus existe resolve uma data de problemas destes. Problemas inconsequentes mas que, como os símbolos do Reiki, infelizmente muita gente leva a sério. O problema de Deus já saber tudo o que eu vou fazer ao longo da minha vida, tornando a minha liberdade numa mera ilusão. O problema de permitir que crianças sofram com doenças e acidentes. O problema de ser extremamente exigente quanto a rituais e comportamento mas não esclarecer qual dos livros sagrados, doutrinas e líderes religiosos é o certo. Todos esses problemas desaparecem, sem qualquer desvantagem, se fizermos à hipótese de Deus o que fazemos com a do Pai Natal.

É uma razão forte para ser ateu. É análoga ao que me leva a fazer contas sem me pôr a somar zero e a multiplicar por um a cada passo. Mesmo que seja logicamente consistente e mesmo que não altere o resultado é tempo perdido e não adianta de nada.

Em simultâneo no Que Treta!