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Ludwig Krippahl

23 de Fevereiro, 2011 Ludwig Krippahl

Bright

O termo bright, para referir uma pessoa com «uma visão naturalista do mundo […] livre de elementos sobrenaturais e místicos»(1), foi proposto em 2003 como um designador mais positivo para aqueles que costumavam ser apelidados de ateus, descrentes, incréus, agnósticos, desalmados, desdeusados ou o que calhasse. Infelizmente, há muita gente, como o Bernardo Motta, que percebe mal o termo. Ou faz por isso. «Alguns ateus, mais atrevidos, dão um salto em frente, e auto-intitulam-se “brights”. A ideia aqui é simples: o ateu é o tipo inteligente. O crente é burro.»(2)

O termo bright foi pensado para substituir “ateu” mas não coincide com este, porque a categoria que “ateu” refere é confusa e faz pouco sentido. “Ateu” é uma invenção dos crentes, para quem o seu deus preferido é o mais-que-tudo e, por isso, quem não tenha um é uma espécie de estropiado espiritual. Mas olhando, de forma imparcial, para as diferenças entre alguém como eu e um muçulmano, evangélico, católico ou judeu, vemos que o padrão é sempre o mesmo. Quaisquer dois concordam que quase todas as crenças acerca dos deuses são falsas, e discordam apenas da verdade de uma fracção pequena do total. Por isso, distinguir crentes e ateus com base na opinião acerca dos deuses faz pouco sentido.

E engana, porque faz pensar que o ateu é alguém que parte do princípio de que não há deuses, tal como cada crente parte do princípio de que o seu deus existe e, com base nessa premissa, procura amá-lo, louvá-lo e ter relações sexuais apenas como e quando ele aprova. É outro erro. A minha convicção de que não há deuses é como a minha convicção de que não há fadas e de que a força da gravidade decai com o quadrado da distância. Não são premissas fundamentais. São conclusões às quais cheguei depois de ter ponderado, imparcialmente, as alternativas e os dados de que disponho.

É essa atitude que bright tenta capturar. A atitude de averiguar os factos às claras, à luz da razão e do conhecimento, em vez de baralhar tudo à sombra de esoterismos de bolso ou superstições bolorentas.

É verdade que há aqui uma conotação com inteligência. Mas não como o Bernardo julga. O crente vê a sua crença como parte da sua identidade, e o seu abandono como uma traição imperdoável. Para muitas religiões, a apostasia é pior que violar criancinhas. Literalmente. Mas para alguém como eu, crer, não crer, descrer, pensar duas vezes e afins são opiniões. Há umas mais ajuizadas do que outras, mas qualquer pessoa pode ter uma num dia e mudá-la no dia seguinte.

Por isso, a conotação de bright com inteligência não se refere ao que a pessoa é mas sim às suas atitudes em casos particulares. Por exemplo, se me dizem que o criador de todo o universo encarnou como homem na Palestina, há dois mil anos, para se deixar matar pelos romanos, perdoar-me pecados que eu nem cometi, e que agora se pode transformar bolachas no seu corpo sem que as bolachas deixem de ser bolachas, parece-me claro que a atitude mais sensata é duvidar. No mínimo.

Mas isto não quer dizer que quem enfie este barrete seja burro. Mesmo a pessoa mais inteligente já foi uma criança ingénua, e todos sentimos pressões sociais, emocionais e familiares. Além disso, a inteligência não é como a cor dos olhos ou os dedos dos pés. Tem dias. Às vezes não percebemos bem no que nos metemos, outras vezes vemos as coisas com mais clareza. Mais brightly, por assim dizer.

Dito isto, e apesar de achar que bright é um termo melhor que “ateu”, este último tem a vantagem de uma longa tradição e, seja como for, prefiro esclarecer as minhas ideias em vez de pavonear o rótulo. O que me importa é o que penso, e não a categoria onde me enfiam. E este é outro ponto importante que me separa de crentes como o Bernardo, cujo catolicismo determina as suas opiniões em vez destas determinarem o ismo em que se põe: «não há católicos progressistas. Nem há católicos conservadores. Há católicos. Ponto final. E depois há católicos com problemas de identidade (ah, se os há!).» É como mandar os bois seguir a carroça…

1- www.the-brights.net
2- Bernardo Motta, 22-2-2011, O ocaso do ateísmo filosófico
3- Bernadro Motta, 9-8-2009, Progressistas e Conservadores

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11 de Fevereiro, 2011 Ludwig Krippahl

Como é que sabem?

O mês passado foi lançada uma aplicação para o iPhone para facilitar as confissões aos católicos. Tem menus fáceis de navegar, cobre os pecados mais frequentes e estipula as penitências apropriadas. Foi elaborada em colaboração como Padre Thomas Weinandy, do Secretariado para a Doutrina e Práticas Pastorais da Conferência de Bispos Católicos dos EUA, e teve o Imprimatur do Bispo Kevin Rhodes, da diocese de Fort Wayne. Segundo o National Catholic Register, já fazia falta uma aplicação séria para confissões electrónicas, contrapondo a «ofensiva aplicação Penance que saiu em Dezembro e que faz troça da Igreja»(1). O abençoado programa «providencia um exame de consciência personalizado, protegido por uma palavra passe, e um guia passo-a-passo para o Sacramento».

Infelizmente, e apesar de dizerem abraçar os novos meios de comunicação, o Vaticano torceu o nariz. Segundo o porta-voz Federico Lombardi, «é essencial perceber que os ritos de penitência exigem um diálogo pessoal entre penitentes e confessor. Este não pode ser substituído por um programa de computador.»(2)

A dúvida que isto me suscita é como conseguiram determinar que o padre é um confessor mais eficaz que o computador. Presumivelmente, quem absolve os pecados é Deus, e não o padre. E, segundo dizem, Deus sabe o que vai no coração de cada pessoa. Por isso, se alguém declara os seus pecados, os expõe à sua consciência e se arrepende deles com sinceridade, Deus devia ser capaz de perdoar mesmo pelo iPhone. Jesus, por exemplo, nunca rezava com padres, e contam que veio cá ensinar as pessoas a falar com Deus. Também não me parece que a Bíblia seja clara acerca do papel do iPhone nas confissões, e duvido ter havido tempo para o Vaticano executar um estudo de eficácia confessional, devidamente controlado e com uma amostra representativa de pecadores, para apurar as vantagens e desvantagens do iPhone.

Mais uma vez, parece que tudo converge no factor comum a estas tretas. Não é a fé, nem a religião, nem tão pouco a “espiritualidade”, o que quer que isso seja. É algo muito mais terra-a-terra. É o tacho.

1- NCRegister, First iPhone App to Receive an Imprimatur
2- Daily Mail, You can’t confess to your iPhone: Vatican bans £1.19 app for Catholics. Via Boing Boing

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6 de Fevereiro, 2011 Ludwig Krippahl

ECR 3: Ética, religião e ciência.

O quinto capítulo do livro Educação, Ciência e Religião (ECR) pergunta «Qual o papel das questões éticas na relação entre a ciência e a religião?»(1). A ideia base é consensual: considerações éticas podem abrandar o progresso científico porque a aquisição de conhecimento não é uma prioridade absoluta. É óbvio que a ética deve impor limites à actividade científica. No entanto, os autores desviam a resposta com algumas confusões.

No “aprofundamento” da resposta, uma adaptação de um texto do Miguel Panão, afirmam que «uma ética orientada para o valor fundamental da vida designa-se “bioética”.» Mas, normalmente, “uma ética” refere um sistema normativo, como o utilitarismo, o contratualismo ou o imperativo categórico de Kant, por exemplo. Nesse sentido, a bioética não é uma ética, porque o termo não designa um sistema normativo em particular; designa uma categoria de problemas éticos que surgem do uso de animais em experiências, da bio-tecnologia, do impacto sobre ambiente e questões afins. Desta confusão, defendem ser ilegítimo sacrificar embriões para curar doenças com células estaminais porque «Toda e qualquer vida vale, e esse valor é o mesmo em toda e qualquer circunstância.»

Esta premissa não é nada consensual, mesmo ignorando a restrição implícita – e problemática – de “vida” referir apenas alguns seres vivos, pois por certo não incluem as baratas ou os cogumelos nesta consideração. Criar um embrião num tubo de ensaio e depois sacrificá-lo para obter células estaminais mata esse ser humano. No entanto, se as alternativas são apenas nunca o ter criado ou deixá-lo morrer sem aproveitar as suas células, então a possibilidade de tratar alguém é um bem acrescido sem qualquer perda. Se o embrião pudesse crescer e estivesse a sacrificar a sua vida inteira justificava-se esta objecção. Mas se não tem qualquer hipótese de sobreviver e não há alternativa melhor, esta objecção não tem fundamento.

Acrescentam os autores que a sua “bioética” é necessária para «dignificar a vida humana na forma do embrião, assim como dar sentido ao sofrimento humano». Esta afirmação nem sequer errada consegue estar, porque, para isso, tinha de dizer alguma coisa. “Dignificar” esse embrião é apenas um eufemismo para nunca o criar, opção que nem serve os interesses dele nem de mais ninguém. E se bem que “dar sentido ao sofrimento” soa bem a quem está confortável na vida, não serve de nada para quem sofre. Quem sofre merece alívio em vez da promessa de um vago “sentido” para o seu sofrimento.

O problema fundamental, na raiz destas confusões, é uma percepção incorrecta da relação entre a religião, a ética e a ciência. Nas “primeiras pistas”, os autores escrevem: «Se entendermos a ciência como uma actividade avulsa […] então talvez a religião atrase a ciência. A ética coloca no cenário do desenvolvimento científico argumentos [que] podem desacelerar a aquisição de conhecimento. Mas os argumentos do lado da ética promovem o ser humano no seu todo». Ou seja, apresentam a ética como algo que vem da religião e impõe normas à ciência. A segunda parte está correcta. Como qualquer actividade, a ciência deve ser praticada em conformidade com a ética. Mas a primeira parte está ao contrário.

Cada religião tenta impor regras a todos os aspectos da nossa vida, desde o que se pode comer e que dias são feriados até regras morais acerca de quem deve casar com quem, peregrinar a Meca ou até acreditar que três é um e um são três. Em todos os casos, o fundamento último destas regras é que um deus muito poderoso mandou que assim fosse. Isto não tem nada que ver com a ética, porque a ética não se constitui com base nas ordens do mais forte. É precisamente o contrário. A ética é aquele fundamento de valores pelos quais se julgam todos, até o deus mais poderoso. Se um deus omnipotente arrasou Sodoma e Gomorra por discordar das preferências sexuais dos seus habitantes, torturou Jó por uma aposta ou deu dores de parto a todas as mulheres só porque uma comeu o fruto errado, a ética é aquilo que lhe aponta o dedo e o condena como malvado, cruel e imoral. Não importa que ele seja o Grande Chefe.

Respondendo à pergunta deste capítulo, o papel da ética é dar à religião e à ciência um fundamento normativo comum, ditando a ambas o que é legítimo fazerem. É aquilo que nos diz que não devemos torturar animais ou pessoas, quer seja para obter dados experimentais, quer seja para celebrar rituais religiosos. É aquilo que condena como desonesto o cientista que diga saber que há vida em Marte sem ter evidências disso. E é aquilo que condena como desonesto o padre que diga saber que há vida depois da morte sem ter evidências disso.

Uma grande diferença entre a religião e a ciência é que todos exigem que a ciência se guie pela ética e condenam quem viole a ética em nome da ciência. E é assim que deve ser. Mas muitos aplaudem, e muitos outros ficam indiferentes, quando as religiões atropelam a ética ou fingem que cada uma pode inventar a sua. E isso não devia ser assim.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010, pp 47-56.

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7 de Janeiro, 2011 Ludwig Krippahl

O sentido

Este termo é muito usado na apologética cristã. Por exemplo, na homilia pascal de 2009, a propósito do conflito entre a criação bíblica e a teoria da evolução, José Policarpo disse que « A narração bíblica da Criação […] é uma revelação do sentido profundo da criação e da vida e não a narração do modo como as coisas aconteceram». Acrescentou também que «o homem é a plenitude da criação e o seu sentido último», que «Em Cristo ressuscitado, todo o tempo adquire o sentido definitivo», e que «nós sabemos que o sentido radical e definitivo está em Cristo ressuscitado.»(1). Esta palavra é muito útil na apologética porque se pode equivocar facilmente vários sentidos de “sentido”.

Quando falamos no sentido da vida ou em dar sentido àquilo que somos e fazemos, referimos valores que não se podem extrapolar de uma pessoa para outra. Para um, o principal pode ser a família ou a comunidade. Para outro o que dá sentido à vida pode ser a arte, a carreira ou o desporto. Neste sentido de “sentido”, o sentido das crença acerca de qualquer deus é estritamente pessoal. Quem as tem está no seu direito e não deve satisfações por isso, mas também não tem legitimidade para as afirmar como conhecimento ou de alegar que têm alguma relevância para os outros. Isto basta para a fé individual mas é insuficiente para a religião.

A religião precisa de “sentido” num sentido mais objectivo. Aquele que referimos quando dizemos que uma explicação ou esclarecimento faz sentido, e que é mais do que uma preferência pessoal. Por exemplo, algumas espécies de formiga armazenam comida para alturas de escassez, ou para sobreviver no Inverno. Podemos explicar isto com na fábula de Esopo, assumindo que as formigas são inteligentes e precavidas. No entanto, esta explicação é inconsistente com o que sabemos da inteligência dos insectos. Faz mais sentido explicar este comportamento como um reflexo, sem propósito ou consciência, que surgiu pela eliminação gradual das variantes menos capazes de acumular alimentos e que, por isso, deixaram menos descendentes.

As religiões precisam de algo que passe por explicações que façam sentido. Daquelas que qualquer pessoa racional, conhecendo os mesmos factos, reconheça como válidas. Este é o grande trunfo da ciência: quando as explicações fazem sentido tanto faz que gostem delas ou não. As religiões precisam de imitar isto para que pareçam legítimos os seus alegados conhecimentos e as pretensões dos seus profissionais à categoria de peritos nos respectivos deuses. Mas, neste sentido, as religiões falham redondamente.

Os dogmas religiosas não fazem sentido. As histórias da criação, o suposto sacrifício de Jesus, o Corão que Allah ditou a Maomé e tantas coisas do género, são só fábulas como as de Esopo (só que sem a honestidade de o admitir). São marcos culturais importantes, revelam o pensamento de quem as inventou e mostram o que, nessa altura, essas pessoas consideravam dar sentido à sua vida. Mas não revelam nada acerca da origem do universo, de quem o criou, do propósito disto tudo, da existência de deuses ou da vida depois da morte. São apenas expressões dos anseios e crenças de quem sabia ainda menos do que nós acerca destas coisas, e quase nada acerca do resto.

É legítimo que, mesmo hoje, haja quem adopte estas crenças e valores. Cada um é livre de acreditar e julgar o que quiser, por muito disparatado que seja. Mas só é legítimo enquanto for uma opção pessoal e não prejudicar os outros. O problema de extrapolar do “eu acredito” para o “vocês devem fazer” é horrivelmente evidente nos países muçulmanos e em atrocidades várias ao longo da história. E é também um problema em países como o nosso, com o dinheiro público que se desperdiça em religiões, a educação religiosa de crianças e leis que respeitam mais o direito a crer em deuses do que o direito de duvidar disso.

Coisas como «só em Cristo se penetra no mistério do homem», «revelação do sentido profundo da criação e da vida» ou «Verbo eterno que se exprime na Palavra revelada da Escritura»(1) aproveitam o sentido que os crentes encontram na sua fé e nos seus valores pessoais para os persuadir de que estas coisas fazem sentido e de que estes “peritos” têm uma compreensão profunda desta matéria. É treta. São especulações absurdas e infundadas, porque não dizem nada de concreto nem se baseiam em evidência alguma, e são uma caricatura da sabedoria, porque o conhecimento não é algo que se obtenha pela reinterpretação demagógica de superstições antigas.

Para os ateus e agnósticos não serve de nada escrever isto. É pregar ao coro. Mas pode ser que leve alguns crentes a pensar no assunto. Pode ser que olhem para as outras religiões e vejam como os imames, rabinos, pastores e cardeais (cada um risque o que considerar a mais) mantêm autoridade sobre tanta gente dizendo saber o que obviamente não sabem. Pode ser que algum crente note a semelhança entre este truque e o negócio dos professores Bambos, dos astrólogos e cartomantes. E até pode ser que perceba que pode manter a sua crença e os valores que dão sentido à sua vida sem ter de enfiar barretes nem perder tempo com quem quer vender regulamentos para a fé.

1- Rádio Vaticano, Criação bíblica e darwinismo: relação analisada por D. José Policarpo na vigília pascal, negando contradições entre as duas “teorias”.

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21 de Dezembro, 2010 Ludwig Krippahl

A importância de ser falsificável.

Muita gente sabe que a ciência exige modelos falsificáveis. Infelizmente, muitos julgam que é uma regra arbitrária, como a do bispo andar na diagonal, e pensam que basta mudar de jogo para já se poder ter deuses invisíveis e milagres. Como não se pode falsificar essas hipóteses, defendem, então a ciência não se pode pronunciar acerca do mistério da fé. Do vale tudo, por outras palavras. Mas isto não é bem assim.

Exigir hipóteses falsificáveis não é mera mania da ciência. Em primeiro lugar, é uma condição necessária para descobrir quando nos enganamos. Não poder testar uma alegação não garante que esta esteja correcta, e uma opinião acerca de um deus invisível tem tanta possibilidade de estar errada como qualquer especulação infundada. Ser infalsificável implica apenas que o erro não pode ser detectado. Serve para enfiar barretes mas falha como conhecimento.

Além disso, só se justifica confiar num modelo se a concordância com os dados não for trivial nem houver alternativas melhores. Por exemplo, que a maioria dos criminosos come pão não justifica considerar o pão um factor de criminalidade; quase toda a gente come pão, pelo que esta observação é trivial. Em contraste, quando um modelo relativista da órbita de dois pulsares prevê que se vão aproximar a sete milímetros por dia, e a previsão concorda com medições cuja margem de erro é de apenas 0.05%, é pouco plausível que o modelo esteja a acertar por mero acaso. Uma hipótese impossível de falsificar merece tanta confiança como a pontaria de quem dispara contra a parede e pinta o alvo no sítio que atingiu.

Apesar das hipóteses não falsificáveis não poderem ser incompatíveis com os dados, podem ser incompatíveis com as alternativas. Por exemplo, a hipótese da Torre Eiffel ter sido criada a semana passada por uma magia que criou a torre, todos os registos da sua construção e memórias falsas em toda a gente, não pode ser rejeitada recorrendo aos dados. Mas pode, e deve, ser rejeitada em favor da explicação alternativa que os historiadores nos dão. Esta merece muito mais confiança e é incompatível com a hipótese da criação por feitiçaria.

Finalmente, a diferença entre falsificável e não falsificável está muitas vezes na atitude dos proponentes e não na hipótese em si. Se eu propuser que peso apenas 20Kg, quando a balança indicar 100Kg posso alegar que está avariada. E que o valor da outra balança, que deu o mesmo resultado, foi mal interpretado. E que a terceira balança foi enfeitiçada pelo mágico do parágrafo anterior. Com desculpas destas posso insistir que peso só 20Kg sejam quais forem os dados. Isto é obviamente desonesto, mas não é menos desonesto do que antecipar a marosca e formular, logo à partida, a hipótese de forma impossível de falsificar. Hipóteses dessas, na ciência ou fora dela, são sempre aldrabice.

As especulações religiosas acerca dos vários deuses sofrem destes problemas. Os seus aspectos não falsificáveis não merecem qualquer confiança porque não se lhes pode corrigir os erros e porque a sua concordância com os dados é trivial. Também não explicam nada. Dizer que Jahve criou o universo ou que Zeus cria as trovoadas deixa-nos na mesma. A mecânica quântica e a meteorologia dão descrições muito mais concretas e úteis. E esse acrescentos sobrenaturais são incompatíveis com os modelos que a ciência nos dá. Quando a física diz que pulsares a orbitar-se mutuamente dissipam energia na forma de ondas gravíticas não acrescenta “se Deus quiser”. Isso seria um modelo fundamentalmente diferente e incapaz de previsões rigorosas, deixando sempre em aberto a possibilidade de, afinal, Deus não querer.

Pior ainda, as especulações religiosas têm muitos aspectos que seriam falsificáveis a menos da atitude dos seus proponentes. A existência de um ser omnipotente e bondoso, por exemplo, é incompatível com os dados que temos. Mas continuam a insistir que tal coisa existe só porque não se pode provar o contrário. Ora também não se pode provar que eu não pese 20Kg. É possível, ainda que improvável, que todas as balanças em que me pese dêem o valor errado. Ninguém pode provar o contrário. Mas não é sensato confiar numa hipótese dessas, e não é honesto defendê-la como sendo conhecimento.

1- Science Daily, 14-9-2006, General Relativity Survives Gruelling Pulsar Test: Einstein At Least 99.95 Percent Right

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4 de Dezembro, 2010 Ludwig Krippahl

Equívocos, parte 11. A confusão da evolução.

O Alfredo Dinis considera que a incompatibilidade entre criação e evolução é um equívoco do ateísmo (1). No entanto, o equívoco é confundir a evolução com a teoria que a explica. O Alfredo começa por mencionar que a transferência genética na natureza não é unicamente vertical, de pais para filhos como Darwin propôs, mas também horizontal. Na verdade, de retrovírus e transposões à simbiose entre Bacteria e Archaea, há muitas complicações que Darwin desconhecia. Mas daqui afirma que vários autores ateus consideram que «Criação e evolução excluem-se reciprocamente» e que «O que podemos responder a esta tese é que a evolução se dá por um processo de interacção entre o acaso e a necessidade imposta pelas leis naturais». Isso não é uma resposta à tese. Isso é a tese.

A evolução é a variação que, ao longo das gerações, observamos na distribuição de características herdadas em populações. A hipótese de um criador omnipotente, que o Alfredo defende, é compatível com estes dados porque deuses omnipotentes dão para tudo e um par de botas. Sendo omnipotentes, tanto podem criar o mundo em seis dias como ir fazendo tudo em treze mil milhões de anos. Quaisquer que sejam os dados, a hipótese do Alfredo é compatível.

A incompatibilidade que existe é entre este relato do Alfredo e a teoria da evolução. Não os dados mas a explicação do processo. Estes relatos são incompatíveis entre si porque contam a história de forma contraditória. A biologia assume que não há inteligência nem objectivo na evolução porque só assim se pode deduzir a teoria da evolução que temos. Caso contrário, se assumirmos haver um plano e um deus omnipotente, nada se pode inferir porque um deus omnipotente pode fazer qualquer coisa.

O Alfredo assume que o ateu vê uma incompatibilidade entre os dados e a sua hipótese apenas por exigir que a criação divina seja um processo «unidireccional e contínuo, sem desvios nem recuos nem becos sem saída, e claramente racional e identificável pela ciência.» Refuta esta ideia contando como pode viajar, intencionalmente, de Braga a Lisboa, mas parando em Santarém para visitar um amigo e voltando a Fátima por se ter esquecido de uma coisa. Diz assim completar um percurso intencional guiado por «uma lógica não linear». Mas o problema não é esse.

Vamos imaginar que só sabemos que o Alfredo saiu de Braga, parou em Santarém, voltou a Fátima e acabou em Lisboa. Uma explicação possível é que o Alfredo queria ir a Lisboa mas lembrou-se de algo que tinha de fazer em Fátima depois de ter parado em Santarém. Outra hipótese é que estava apenas a passear, distraído e sem objectivo, e o percurso por Santarém, Fátima e Lisboa podia igualmente ter sido por Coimbra e Viseu. Apesar de ambas as hipóteses serem compatíveis com o percurso, são incompatíveis entre si. É contraditório defender que o Alfredo planeava ir a Lisboa e, ao mesmo tempo, que foi parar a Lisboa sem intenção prévia.

A evolução, o processo que observamos, é análoga ao percurso neste exemplo. São os dados. A hipótese do Alfredo é que um deus percorreu esse caminho de propósito. Pode ter tido mais ou menos aleatoriedade, mais ou menos intenção, mais ou menos revezes e becos sem saída, mas a hipótese do Alfredo é que quando a evolução começou esse deus já tinha em mente onde queria chegar. A teoria da evolução diz o contrário. Diz que não havia plano nem intenção, que a vida foi evoluindo ao sabor de cada momento, de cada mutação, de cada morte e cada nascimento.

A teoria da evolução dá uma margem apertada para o que, segundo ela, pode ter acontecido. E, até agora, tem acertado de forma notável. A hipótese do Alfredo é um fato de treino XXL, onde cabe qualquer coisa. Por isso, mesmo sendo ambas compatíveis com os dados que temos, justifica-se ter confiança na teoria da evolução mas não na hipótese do Alfredo porque esta seria compatível com quaisquer dados que surgissem. Mais importante ainda, estas explicações são mutuamente exclusivas, porque ou evoluímos de propósito ou não evoluímos de propósito. As duas coisas é que não pode ser.

No entanto, na boa tradição teológica, o Alfredo tenta escapar deste problema tornando a sua hipótese ainda mais vaga. O exemplo da viagem sugere um plano e propósito, mas o Alfredo explica a seguir como «compatibilizar criação e evolução por selecção natural» imaginando «uma infinidade de seres vivos […] em milhares de milhões de planetas em todo o universo, e que em cada um desses planetas o processo evolutivo tenha conduzido a formas de vida inteiramente diversas». Ou seja, evolução sem plano nem propósito em cada planeta. Só que, diz o Alfredo, «Deus seria ainda a condição de possibilidade e de inteligibilidade de todos os processos produtivos que se actualizariam no espaço e no tempo.»

Faz pouco sentido. A teoria da evolução descreve um processo que é possível mesmo sem deuses. Assim, para ser condição de possibilidade, o deus do Alfredo nem sequer precisa existir. Mesmo com um deus meramente fictício, a evolução é sempre possível. Quanto à inteligibilidade, essa vem das explicações. E é das explicações que a biologia nos dá, porque estas da teologia têm muito pouco de inteligível.

1- Alfredo Dinis, Décimo primeiro equívoco: a incompatibilidade entre criação e evolução

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28 de Novembro, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: telepadres

No Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, em Fátima, a ministra da saúde disse que «é preciso garantir a assistência espiritual nos tratamentos de saúde prestados em casa dos doentes»(1). O plano parece ser expandir o contingente eclesiástico que, pago pelo Estado, já há tempos prega nos hospitais públicos. Agora querem fundos adicionais para prestar este serviço ao domicílio.

O comunicado da AAP (2) aponta várias objecções a este plano da ministra Ana Jorge. Não é preciso assegurar nada disto porque religiões que venham bater à porta não é coisa que nos falte. Além disso, a assistência religiosa é uma vocação dos sacerdotes e faz parte da vivência do crente na sua comunidade. Não é nem terapia nem serviço para prestar contra reembolso pela ADSE. Finalmente, é um desperdício. Os ordenados que os serviços de saúde pagam aos padres dariam para ajudar muita gente a comprar os medicamentos de que precisam e que não conseguem pagar. A ministra deve garantir primeiro os medicamentos, e só depois se preocupar com o tal espírito que muitos dizem ter mas que ninguém vê.

Mas aqui, falando só por mim, gostava de acrescentar uma objecção importante. A assistência “espiritual” é uma mentira. Não é apenas uma questão das pessoas gostarem de ter lá o representante da sua religião. Não é assistência psicológica ou mero consolo emocional. Em geral, as pessoas sentem necessidade deste apoio porque as convenceram de que aquilo é verdade. Julgam, conforme lhes foi ensinado, que o padre, o rabino, o imã, o monge, ou o que lhes tenha calhado, sabe mesmo o que os deuses querem, tem poderes mágicos para perdoar pecados, dá impulso extra às orações e é mediador indispensável na negociação com as divindades.

Isto não é o mesmo que gostar de música clássica ou de ficção científica, ao contrário do que sugerem alguns que argumentam em favor de subsidiar os padres porque também se subsidia artes e espectáculos. A diferença é que gostar deste cantor ou daquela actriz não implica acreditar em mentiras. Não é o mesmo que acreditar em Shiva, ou que Maomé falava com o criador do universo ou que só a fé em Jesus nos pode salvar.

Este problema afecta toda a sociedade. Não temos leis no código penal punindo quem diga mal do Benfica ou da Madonna, mas “vilipendiar” religiões pode dar prisão. Não se deve troçar da religião das pessoas, segundo dizem. Só da sua afiliação política, crença na astrologia, convicção de que somos visitados por extraterrestres ou tudo o resto que não seja religioso. Alguns crentes religiosos têm a honestidade de afirmar que só a religião deles é verdadeira. Esses vemos logo que são presunçosos e prepotentes. Outros preferem dizer, condescendentes, que todas as religiões são igualmente válidas, cada uma à sua maneira. Só que não tão igualmente válidas que aceitem que os filhos escolham uma diferente da sua.

Isto tudo porque a experiência religiosa depende sempre de assumir como verdadeiros, e em exclusivo, os dogmas de uma religião específica. Ninguém é religioso genérico. É sempre de uma marca qualquer. A “assistência espiritual” é um eufemismo enganador para uma diversidade conflituosa de “assistências”: católicas, evangélicas, judaicas, muçulmanas e assim por diante, todas afirmando-se como a única virtuosa e verdadeira. O apoio estatal só incentiva esta divisão nefasta. Quer façam como agora, subsidiando apenas os católicos em detrimento dos outros, quer passem a contratar ministradores de tudo o que é religião, acabam por pagar a cada um para dizer que só ele tem razão e que os outros estão enganados.

Para mais, é pura superstição. As crenças acerca do Buda, de Maomé, de Moisés, de Jesus, de Xenu ou das placas de Mórmon são tão infundadas como o medo do dia 13 ou a confiança em amuletos. Não digo que o Estado deva reprimir estas crenças. Se alguém achar que a figa de ouro ajuda a curar uma infecção, que atribui a um mau olhado em vez de micróbios, os serviços de saúde devem limitar-se a dar a medicação e deixar a pessoa acreditar no que quiser. Mas o Estado também não deve incentivar estas parvoíces. Será um mau exemplo a ministra garantir que todos os pacientes tenham acesso gratuito a figas de ouro.

Uma objecção importante a esta medida é ser asneira incentivar estas tretas que tanto dividem qualquer sociedade. O que está em causa aqui não são apenas gostos pessoais ou sequer a fé de cada um, já de si fracas desculpas para gastar o parco orçamento do Serviço Nacional de Saúde. A crença religiosa é mais do que meramente pessoal. Quem adere a uma religião compromete-se não só a aceitar como verdade hipóteses sem qualquer fundamento, mas também a condenar como imoral a sua rejeição. Por exemplo, que o menino Jesus criou todo o universo e que quem não acreditar nisso merece uma eternidade no inferno. Não é racional investir os nossos impostos na propagação destas ideias.

1- Ecclesia, Ministra da Saúde quer assistência religiosa em casa dos doentes
2- Diário Ateísta, Serviço Nacional Religioso (SNR) Comunicado da AAP

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16 de Novembro, 2010 Ludwig Krippahl

Evolução: a hipótese nula.

O Alfredo Dinis pediu-me que explicasse «como deveria ser a evolução para que fosse compatível com a existência de um Deus criador.»(1) Não pode. É como a erosão e a escultura. Se a rocha tomou aquela forma pela acção intencional do escultor então não foi pelo efeito cego da chuva e do vento. São explicações diferentes, e mesmo que o escultor tenha poderes especiais e controle a chuva e o vento, o resultado será uma escultura e não o que entendemos por erosão. A evolução e a criação também são processos diferentes.

Para compreender a disposição da terra e pedras no solo podemos considerar a geologia da região, a forma como a água escorre pelos declives e deixa sulcos ou como o vento leva a areia fina e deixa as pedras maiores. Muitos aspectos são previsíveis devido a padrões que podemos perceber nestes processos naturais. E outros aspectos consideramos aleatórios por não os poder inferir dos mecanismos que conhecemos. Aquele seixo calhou ali como podia ter calhado um pouco ao lado, e esta pedra em cima da outra podia ter ficado por baixo.

A teoria da evolução dá-nos modelos deste tipo. Percebemos porque é que a inteligência só surgiu animais multicelulares. Seres unicelulares não conseguem a complexidade do sistema nervoso e plantas e fungos não têm neurónios. Mas os vertebrados terem todos a retina virada para o lado errado parece ter sido um acidente, uma mutação menos afortunada num antepassado distante. Não se explica pela presença de um esqueleto interno.

Se encontramos pedras em forma de ponta de seta precisamos de uma explicação diferente. A erosão pela chuva ou o azar não dão um modelo adequado. Explicamos essas pedras pela acção dos caçadores que ali viviam e que as esculpiram para caçar animais. Confirmamos a hipótese procurando vestígios de acampamentos, ossadas dos animais caçados e assim por diante. O mesmo para o milho transgénico, que não pode ser explicado pela teoria da evolução mas sim pela acção propositada de quem clonou os genes de outros organismos e os inseriu no milho, deixando no genoma vestígios dos vectores de clonagem e outros marcadores.

As teorias da evolução e da erosão dos solos são o que em estatística se chama a hipótese nula. Assumindo aquelas distribuições de probabilidade para o que não conseguimos prever, sujeitas às restrições impostas pelos processos que conhecemos, prevemos o que se deve observar. Se as pedras ou as espécies estiverem de acordo com essas previsões então não se justifica concluir que surgiram de outra maneira. Só algo como o milho híbrido ou as pontas de seta é que exige outra explicação. Nesses casos, as teorias da evolução e da erosão não servem porque não são compatíveis com actos inteligentes. Nem podem vir a ser, pois visam explicitamente descrever o que acontece na ausência de inteligência.

Portanto, a teoria da evolução que temos desenvolvido nos últimos dois séculos será sempre incompatível com a criação inteligente. Nos casos em que haja manipulação inteligente de espécies precisamos de outras explicações. Além disso, para obter essas outras explicações temos de assumir algo acerca da inteligência em causa. Quais os seus objectivos, quais os processos que usou e que vestígios haverá disso para que se possa fundamentar a explicação.

Há uns tempos ensinei aos meus filhos um feitiço poderosíssimo que faz com que todo o universo seja exactamente como é. Sem formação em teologia, riram-se logo do disparate. Mas a «a existência de um Deus criador» que o Alfredo propõe sofre do mesmo problema. Se o universo for como é porque eu fiz o feitiço, ou porque Deus o fez, então as explicações que temos estão erradas. E como estas alegações não implicam nada acerca do que podemos observar, não dão qualquer informação ou explicação. A hipótese de uma criação inteligente e propositada só faz sentido se implicar algo diferente da hipótese nula.

O criacionismo evangélico diz que todas as pedras e grãos de pó foram criados de propósito por Deus. O criacionismo católico aceita a evolução e a erosão para quase tudo mas insiste que a nossa espécie, um seixo equivalente aos outros, está cá porque esse Deus quer. Deixo em aberto se um disparate será maior que o outro mas, seja como for, ambos são incompatíveis com as teorias que temos. Se estas hipóteses forem verdade precisamos de outras explicações. Que não podemos encontrar porque estas hipóteses não dizem nada acerca do que se possa observar.

O Alfredo perguntou também se será por falta de inteligência que os criacionistas católicos dizem não haver conflito entre criação e evolução. Penso que não. Afinal, os criacionistas evangélicos também dizem que a sua interpretação da Bíblia não cria conflitos com os dados que temos, o que é obviamente falso. Julgo que o Alfredo não explicará isto por falta de inteligência dos evangélicos, quanto mais não seja porque é uma pessoa educada. O problema, parece-me, está na fé. Quem decide aceitar uma proposição por confiança perde a capacidade de corrigir erros que só o cepticismo pode dar. Inteligente ou não, condena-se a ter de defender um disparate.

1- Comentário em ECR 2: Evolução

Em simultâneo no Que Treta!.

13 de Novembro, 2010 Ludwig Krippahl

ECR 2: Evolução.

O décimo sétimo capítulo do livro Educação, Ciência e Religião (ECR) responde afirmativamente à pergunta «Pode defender-se a teoria da evolução e, ao mesmo tempo, acreditar em Deus?»(1). É evidente que se pode defender qualquer coisa independentemente do que se acredita. Basta ignorar qualquer inconsistência que daí advenha. Mas a forma como os autores respondem à pergunta revela uma compreensão imperfeita desta teoria que querem compatibilizar com a sua fé, alegando que «o nexo natural, causal e criativo dos eventos é, em si mesmo, a acção criativa de Deus. […] Uma imagem desta posição é pensar em Deus como um compositor, sendo a evolução a sua música, caracterizada por uma complexa beleza.»

Podemos calcular a distribuição de probabilidade para o número de vezes que uma moeda calha coroa em cem lançamentos, ou outras estatísticas do género, porque podemos modelar a complexidade das colisões entre a moeda, o dedo que a empurra, as moléculas do ar e a mesa considerando tudo isto como um processo aleatório. Mas só se assumirmos que o resultado não é determinado por algum ser inteligente a agir sobre a moeda. Se assim for, então o cálculo de probabilidades deixa de fazer sentido. Não poderemos tratar o resultado como uma variável aleatória, nem assumir que os lançamentos são independentes, nem nada do que precisamos para este modelo probabilístico.

Por isso, se perguntarmos a um matemático qual o resultado esperado, e o intervalo de 95% de confiança, para cem lançamentos da moeda assumindo que «o nexo natural, causal» desses lançamentos é «a acção criativa de Deus», a única resposta possível é “sei lá”. Não há forma de modelar isso.

Com a evolução temos o mesmo problema. Se assumirmos que factores como mutações, a segregação dos genes na meiose e o sucesso reprodutivo dos organismos resultam de processos naturais complexos mas sem inteligência, então podemos modelá-los como variáveis aleatórias inferindo das frequências observadas as suas probabilidades. Os modelos da genética de populações são mais complexos que o da moeda mas assentam nos mesmos princípios. E, tal como o da moeda, estarão completamente errados se a evolução for guiada por um ser inteligente. A teoria da evolução é incompatível com esse “Deus compositor”, da mesma forma, e pelas mesmas razões, que a distribuição binomial não serve para descrever o processo de escolher deliberadamente um dos lados da moeda.

Por isso, é inevitável o conflito entre a teoria da evolução e qualquer forma de criacionismo inteligente, mesmo que seja o criacionismo light dos católicos. Partindo do pressuposto que a evolução é um processo natural incapaz de pensar ou antecipar resultados futuros, a teoria da evolução consegue descrever a origem das espécies com muito mais detalhe e rigor do que qualquer alternativa. O que justifica rejeitar a hipótese de haver propósito ou inteligência na evolução, tal como se rejeita que a moeda seja controlada por extraterrestres quando se comporta exactamente como esperado de uma moeda a cair na mesa.

É certo que, para as religiões, a moeda cair por processos naturais não levanta qualquer problema. O problema está apenas na nossa origem, pela premissa alegadamente humilde de sermos a obra mais especial do criador do universo. Essa hipótese leva com um balde de água fria se, afinal, formos produto de bioquímica e selecção natural. Mas a ilusão de quem procura sentido para a sua vida no propósito de um ser imaginário é irrelevante para aferir estes factos. A verdade é que a melhor descrição que temos para a origem dos seres vivos que povoam agora a Terra depende de assumir que não há qualquer propósito ou inteligência na evolução.

Quem, por algum motivo pessoal, optar por um modelo de criação inteligente – muito pior porque, parafraseando o Ricky Gervais, não dá quaisquer detalhes (2) – adopta uma posição inconsistente com a teoria da evolução. Porque se assume «Deus como um compositor, sendo a evolução a sua música», então os modelos probabilísticos que a teoria da evolução gera não fazem qualquer sentido. Se a vida na Terra fosse uma criação inteligente, deliberada e propositada, seria incorrecto modelá-la da forma como a teoria da evolução o faz.

1- Alfredo Dinis e João Paiva, Educação, Ciência e Religião, Gradiva 2010.
2- Como podem ver neste vídeo.

Em simultâneo no Que Treta!

8 de Novembro, 2010 Ludwig Krippahl

Treta da semana: anticlericalismo.

Ontem, em Santiago de Compostela, Joseph Ratzinger lamentou que «Tragicamente, sobretudo no século XIX, cresceu na Europa a convicção de que Deus é de certa forma um antagonista do homem e um inimigo da sua liberdade», afirmando que «a Europa tem de se abrir a Deus e aproximar-se dele sem receio». Avisou também da agressividade do anticlericalismo moderno, que disse parecer o que se vivia em Espanha na década de trinta (1).

A Guerra Civil Espanhola foi um confronto sangrento que matou quase um milhão de civis (2), entre os quais padres e freiras, vítimas como os outros. Talvez se tivessem safo melhor se a Igreja Católica não tivesse apoiado Franco de forma tão explícita e entusiástica (3). Ou talvez não, que guerras como essa não são eventos ordeiros e bem planeados. Mas, seja como for, esse “anticlericalismo” da guerra civil não tem nada que ver com o que se passa hoje.

O Joseph tenta assustar o seu rebanho dando ao ateísmo umas pinceladas de nazismo se está em Inglaterra e uns salpicos de guerra civil quando vai a Espanha. A ironia deve escapar aos muitos que já não sabem em que equipa jogava a Igreja dele. Tenta que, com medo do bicho papão, deixem de se pôr a pensar. É isso que o Joseph quer evitar porque, ao contrário desses conflitos de ódio cego e burrice, o ateísmo de hoje nasce da educação, da liberdade e da tolerância.

Quem cresça na Europa contacta com muitas culturas, ideologias e crenças, tendo de praticar desde cedo uma tolerância céptica, pois tem de aceitar a diversidade de opiniões sem poder adoptar mais que uma minoria. Beneficia também de um sistema educativo que, apesar dos defeitos, é o melhor de toda a história. Nunca a educação média foi tão boa como é agora. Isto é relevante porque aprender, compreender, e ter contacto com outras ideias torna as pessoas menos religiosas. É um antídoto poderoso contra a uniformização de crenças que qualquer religião quer impor, como se vê nas preocupações que os representantes religiosos manifestam acerca da educação. Quase sempre são por se ensinar às crianças algo que eles não querem que elas aprendam e, na educação religiosa, tem de ser cada um com a sua não vão as crianças ter ideias.

Além disso, somos livres de assumir a descrença. É uma liberdade ainda rara, da qual a maioria dos povos não beneficia. E é muito recente. Eu nunca senti qualquer constrangimento social, cultural ou institucional por ser ateu, mas a minha geração é a primeira com esta liberdade. Quando os meus pais eram novos não podiam dizer que a religião é treta sem arranjar sarilhos.

É por estas razões que, na Europa moderna, muita gente protesta quando se gasta milhões de euros com as magias de um senhor de vestido e sapatos Prada. Os protestos não são motivados pelo racismo nazi nem pelo ódio que levou nacionalistas e republicanos a matarem-se uns aos outros. Por um lado, muita gente não fica convencida que o Joseph fala mesmo com o criador do universo, ou que este, depois de ter feito milhares de milhões de galáxias, agora passa os dias preocupado com preservativos ou rezas. Para muitos, o Joseph Ratzinger faz o mesmo que a Maya ou o “professor” Bambo. Inventa umas coisas e convence umas pessoas mas não é nada que se deva levar a sério.

E, por outro lado, damos valor às liberdades que o Joseph e os seus companheiros querem reduzir. A «Europa tem de se abrir a Deus e aproximar-se dele sem receio» parece um pedido de tolerância, mas é o contrário. Cada europeu é que deve decidir por si a aproximação que julgar melhor e se é ao deus do Joseph ou a outro qualquer. E, apesar de dizerem haver só um deus com a qual todos se relacionam, não é isso que revelam nos actos. Por exemplo, no século VIII os muçulmanos construíram uma mesquita em Córdoba. A mesquita passou a catedral quando os cristãos a conquistaram, quinhentos anos mais tarde, e ficou conhecida até hoje por “mesquita-catedral”. Mas agora o bispo de Córdoba quer mudar a designação só para catedral para não “confundir” as pessoas e, apesar do deus ser supostamente o mesmo, os muçulmanos não podem rezar nesse santuário da sua religião (4).

Deus não é o inimigo da liberdade pela mesma razão que o Super-Homem também não é o seu defensor. Mas dá jeito a quem quer ganhar poder tirando liberdade aos outros. A gravidez da mulher violada ou o fim prolongado do doente terminal são problemas desagradáveis de considerar. A homossexualidade, o divórcio, a contracepção e as crenças dos outros exigem de quem discorda o esforço da tolerância. Quem diz vir a mando de um deus pode aproveitar-se destes preconceitos e cobardia moral para convencer as pessoas a desligar o cérebro e confiar. A ter fé, como costumam dizer. A ter fé no testemunho do Joseph e confiar que é ele quem melhor sabe que leis que devemos ter, com quem podemos casar e se podemos mudar de ideias depois. Porque lho disse o deus dele. Quem se puser a pensar tem mesmo de protestar contra isto.

1- Deutsche Welle, Pope urges Spain, Europe to open up to God
2- Wikipedia, Guerra Civil Española
3- Franco lutou contra “o ateísmo e o materialismo”, tendo sido descrito pelo Cardeal Gomá como sendo o “instrumento dos planos de Deus para a Pátria, como citou a Palmira neste post.
4- New York Times, Name Debate Echoes an Old Clash of Faiths. Obrigado pelo email com esta notícia.

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