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Ludwig Krippahl

22 de Maio, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: mesmo que o mundo acabe, a treta continua.

Não há muito de novo a dizer sobre disto. O presidente da estação californiana Family Radio (1), Harold Camping, recorreu à sua fé (evangélica) e profundo conhecimento da Bíblia para prever que o mundo acabava ontem. No entanto, não parece ter acertado (2). Se, por um lado, é difícil crer que alguém monte uma campanha na rádio e em 2000 outdoors para anunciar o fim do mundo sem estar mesmo convencido disso, por outro lado os milhões de dólares que os totós que cairam na esparrela lhe deram (3) revelam, mais uma vez, que a fé tem facetas mais complexas que a mera crença pessoal. Mais curioso ainda, este senhor já tinha previsto o mesmo para 1994, com sucesso idêntico.

Seja por burla ou parvoíce, este tipo de coisas surge sempre do mesmo problema, transversal a todas as religiões, superstições, crendices e afins. Um tipo diz “eu sei”, por manha ou tontaria, e uma data de gente acredita que ele sabe mesmo sem lhe pedir que explique como. Por vezes o resultado é inofensivo, como quando dizem saber que Maria era virgem ou que um deus são três. Por vezes é lucrativo sem prejudicar muito, como quando dizem saber que o fantasma da Maria Clara do Menino Jesus anda no céu a interceder por nós, e compre lá a estatueta, bem em conta, para facilitar o pedido de favores. Mas outras vezes o resultado é terrível, como quando dizem saber o que é que deus manda ou proíbe que as pessoas (especialmente as mulheres) façam. Ou quando muita gente se arruína por enfiar mais um barrete acerca do fim do mundo (4).

Seria fácil prevenir estas coisas se, sempre que algum líder religioso, espiritista, astrológico – ou tretológico, em geral – afirmasse saber algo de extraordinário, lhe exigissem que demonstrasse como é que se obtém tal conhecimento de forma imparcial e isenta. Infelizmente, pensar e questionar dá muito mais trabalho do que ter fé. Quem se convence de que sabe as respostas já não se chateia com perguntas.

1- www.familyradio.com
2- International Business Times, Harold Camping’s 21st May Doomsday prediction fails; No earthquake in New Zealand
3- Yahoo Finance, May 21 End of the World: Harold Camping’s $72M business
4- Está aqui uma lista incompleta.

Em simultâneo no Que Treta!

12 de Maio, 2011 Ludwig Krippahl

Fantochada perigosa, take 2.

O post sobre a moral segundo Craig gerou as confusões do costume, que penso já serem um pouco forçadas. Apesar de eu ter escrito explicitamente que «Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má. Felizmente, muitos religiosos são pessoas decentes e com discernimento suficiente filtrar o que lhes tentam impingir as religião que lhes calham.»(1), vários comentadores me acusaram de estar a generalizar do Craig para todos os crentes.

O problema que apontei é diferente. Da premissa de que o bem moral se define pela vontade de um deus seguem duas consequências inevitáveis. Uma é que quem assume tal coisa fica, como o Craig, incapacitado de rejeitar como imoral seja o que for que esse deus faça. Até o genocídio tem de ser louvado como moralmente bom. A outra, relacionada, é que deixa de fazer sentido dizer que esse deus é bom, porque a bondade desse deus torna-se uma tautologia vazia, como ilustra o Bernardo Motta:

«A moral de Deus é boa porque Deus é bom. Deus é o sumo Bem, e o garante da moralidade (boa ou má), pois estabelece, pela sua essência boa, o que é normativo.»(1)

Este raciocínio circular deixa por justificar porque é que se considera bom esse deus. Se o deus do Bernardo for bom por algum mérito que tenha, no sentido que normalmente damos a estes termos, então tem de haver algum critério independente pelo qual o possamos julgar. Por outro lado, se é bom só por definição, então não conta para nada. Se eu definir “Bem” como querendo dizer “tudo o que eu faço”, apenas estou a deturpar o significado da palavra. Não estou a criar fundamento para moral nenhuma.

O António Fernando disse discordar de que assentar a moral num deus é uma fantochada perigosa. No entanto, justificou a sua oposição exprimindo, por outras palavras, o mesmo que eu defendo: «Todo o crente que se demitir de aferir o valor ético de qualquer norma contida na Bíblia, aceitando-a ou recusando-a, através do crivo último da sua consciência, não é crente mas um alucinado;»(2) Precisamente. Se delegamos o fundamento da moral num deus deixamos de ter uma moral de verdade. Passa a ser um fantoche. E que isto é perigoso é perfeitamente evidente na história, e no presente, de todas as religiões.

O Alfredo Dinis aponta, talvez inadvertidamente, a causa principal deste perigo: «Acredito que muitas pessoas confiam em Deus». Provavelmente, essas muitas pessoas acreditam que confiam num deus. No entanto, o que se passa é que só confiam no que outros lhes contam acerca do tal deus, um deus que ninguém vê, ouve ou cheira. Dizem-lhes que nasceu de uma virgem, que falou a Maomé, que exige isto ou aquilo, que quer que os homens casem com várias mulheres, que não se pode trabalhar ao sábado e mais o que lhes passar pela ideia. Olhando para a panóplia de normas e regulamentos religiosos, o que sobressai com regularidade é apenas que foram inventados por homens – mamíferos bípedes do sexo masculino – sem contributo sequer de membros do outro sexo, quanto mais de deuses. E o Alfredo desvia-se também do problema ao apontar que «há muitas pessoas que condenam as posições dos cristãos com demasiada rapidez e superficialidade». Até pode haver, mas eu não condeno “as posições dos cristãos”, que são muitas e diversas, só por serem dos cristãos. Umas são boas, outras são más e outras nem isso. O que critico é a ideia de que a moral vem de um deus ou de uma religião. Porque se derivamos a nossa moral de uma religião deixamos de poder avaliar a moralidade daquilo que essa religião recomenda. Passa a ser como o deus do Bernardo: bom porque é bom. E isso nem é moral nem é sensato. É uma fantochada perigosa.

1- Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.
2- Mesmo post, mas no Diário Ateísta

Em simultâneo no Que Treta!

7 de Maio, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a bem das criancinhas.

William Lane Craig é um famoso apologista cristão. Um dos argumentos a que mais recorre para provar que o deus dele existe – e que engravidou Maria, morreu na cruz e essas coisas todas, por arrasto – é que existem deveres e valores morais objectivos, e que essa tal coisa dos deveres objectivos só pode existir porque o deus dele existe. A apologética justifica esta alegação pela premissa de não poderem existir deveres morais objectivos na natureza, premissa com a qual até concordo para certas definições de “deveres morais objectivos”. Mas deixa por explicar como é que esse tal deus cria deveres morais que sejam realmente objectivos. Este é um problema bicudo, como ilustra um artigo de Craig no Reasonable Faith.

Alguns leitores pediram-lhe para justificar a moralidade do genocídio que Deus mandou cometer contra os povos da terra prometida, ordenando aos Judeus que matassem todos os homens, mulheres e crianças (Deut. 7:1-2; 20:16-18). Craig é evangélico, por isso leva a Bíblia mais à letra do que os católicos. Mas mesmo interpretando esta chacina como uma metáfora, ela não abona nada em favor do deus que a ordenou. A mensagem é clara, e nada compatível com o que consideramos ser benevolente. Uma justificação de Craig para este comando divino é que

«De acordo com a versão do mandamento divino ético que eu defendo, nossas obrigações morais são constituídas pelos mandamentos de um santo e amoroso Deus. Uma vez que Deus não emite ordens a si mesmo, Ele não tem obrigações morais para cumprir. Ele certamente não esta sujeito às mesmas obrigações e proibições a que nós estamos. Por exemplo, eu não tenho nenhum direito de tirar a vida de um inocente. Para mim, fazer isto me tornaria um assassino. Mas Deus não tem tal proibição. Ele pode dar e tirar a vida como Ele decidir.»(1)

Isto demonstra bem a inconsistência dos tais “deveres objectivos” que estes religiosos defendem, um problema já conhecido desde Platão, pelo menos. Se houvesse mesmo um fundamento objectivo para a moral, então até Deus seria julgado à luz desses preceitos, sendo bom ou mau conforme agisse de acordo ou contra o que fosse o seu dever objectivo. Mas, nesse caso, não seria preciso Deus para haver moral. Mesmo sem deuses já haveria um fundamento para os valores e deveres morais. Para que o seu deus não seja supérfluo, apologistas como Craig defendem que a moral tem de vir dos mandamentos divinos. Mas, nesse caso, a moral é um capricho arbitrário desse deus, e deixa de fazer sentido classificar Deus de bom se o bem for tudo o que lhe der na divina gana. Isto é o contrário de um fundamento objectivo para a moral.

A outra justificação é, na prática, ainda mais perigosa:

«Além do mais, se nós acreditarmos, como eu acredito, que a graça de Deus é estendida para aqueles que morreram na infância ou como pequenas crianças, a morte destas crianças era verdadeiramente sua salvação. Nós somos tão apegados à perspectiva naturalista terrena, que nós esquecemos que aqueles que morrem estão felizes por deixar esta terra pela alegria incomparável do paraíso. Então, Deus não faz nada errado ao tomar suas vidas.»

Além de reduzir a ética ao capricho de um ser imaginário, estas religiões alegam o que lhes der jeito acerca dos factos para justificarem os seus preconceitos. Se alguém matar uma criança é um assassino porque é pecado matar crianças. Tal como pode ser pecado sair à rua sem autorização do marido, cortar as patilhas ou usar preservativo. Como não há forma de testar a alegação de que algo é pecado, cada religião pode escolher a lista de pecados que mais lhe convir. Por outro lado, se é por mandamento divino que alguém mata crianças, sejam cananitas ou outras vítimas de terrorismo religioso, então pode-se inventar que essas crianças vão para o paraíso e que o homicida, afinal, é um herói que lhes salvou a alma. Almas, paraísos e mandamentos divinos são outra área de especulação fácil dada a impossibilidade de testar o que se alega.

É por estes aspectos que a moral religiosa é uma fantochada perigosa. Não quer dizer que a moral de todos os religiosos seja má. Felizmente, muitos religiosos são pessoas decentes e com discernimento suficiente filtrar o que lhes tentam impingir as religião que lhes calham. Mas estes princípios de que vale tudo o que Deus mandar e que é legítimo alegar factos impossíveis de conhecer são o contrário da ética. Em vez de ter um fundamento sólido para as regras morais, a moral passa a reflectir apenas os caprichos e conveniências daqueles que se dizem representantes dos deuses. Precisamente o que se vê nos meandros da religião profissional.

1- Tradução no blog Fé Racional do artigo de Craig no Reasonable Faith. Obrigado a quem me enviou, em privado, a ligação para a crítica no AlterNet.

Em simultâneo no Que Treta!

23 de Abril, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: alternativas.

Não me parece que haja boas opções para ultrapassar esta crise de dívida pública e, principalmente, privada. O Louçã diz que se pode usar fundos daqui e dali, e ele percebe mais disto do que eu, mas suspeito que não temos que chegue para tapar o buraco que os últimos governos escavaram, e ainda menos para o buraco criado pelos bancos, especuladores e “empreendedorismos” do género. Só me oponho à intervenção do FMI e do BCE porque me parece evidente que mais dívidas só vão agravar o problema. O default é inevitável. É preferível admiti-lo agora, enquanto o Estado ainda tem dinheiro para funcionar, negociar e controlar a derrocada, do que depois dos primeiros credores levarem o dinheiro que resta e, além de tesos, estivermos a levar com um “estímulo económico” como o que o FMI tem dado à Irlanda e à Grécia.

Mas no Portal Evangélico descobri outra forma de lidar com o problema. Foi um plano simples, como aliás estas coisas tendem ser, executado no domingo passado:

«Que em cada igreja, em cada casa, seja separado o dia 17 de Abril para um tempo de oração em jejum em favor da nossa Nação, das autoridades, da Igreja, das famílias e das pessoas em particular principalmente àquelas que neste momento mais sentem as dificuldades financeiras que afectam a vida emocional e afectiva pessoal e familiar, como é o caso dos desempregados de longa duração, os reformados e os trabalhadores de menores rendimentos.

Esta é a oração de Davi, pedindo paz para a cidade: “Haja paz dentro de teus muros, e prosperidade dentro dos teus palácios” (Salmos 122:7). Devemos pedir ao Senhor que coloque um muro de protecção em volta de cada lar, e da Igreja. […E]nquanto as autoridades terrenas têm tentado impedir que os conflitos continuem, a autoridade instituída por Deus na terra, que é a Igreja do Senhor, tem por intermédio da oração e também de acções práticas o poder para impedir que esta destruição continue e aumente repreendendo e resistindo a esses principados.»(1)

Infelizmente, parece que nem a intervenção do Nosso Senhor Jesus Cristo foi capaz de acalmar os mercados. Não se sabe quantos títulos de dívida pública Deus terá comprado, mas é evidente que não chegou para baixar as taxas de juros. E resta uma questão fundamental. O texto não esclarece se o BCE poderá aceitar euros de milagre como moeda legítima ou se irá processar, por contrafacção, o Criador, o Seu Filho e o Conselheiro Espiritual de ambos.

Este plano mostra também uma diferença entre os cristãos evangélicos e os católicos. Enquanto os primeiros querem negociar uma recapitalização de milhares de milhões de euros em troca de um dia de jejum e rezas, os últimos limitam-se a pedir. E vão mais longe. Nesta sexta-feira, a propósito da celebração do sacrifício de Jesus – torturado e morto pelos nossos pecados num acto inefável de amor e justiça – o Papa aproveitou para pedir, já agora, que Jesus fizesse também «com que morra dentro de nós o homem velho ligado ao egoísmo, ao mal e ao pecado.»(2) Uma excelente ideia, que só peca por não lhes ter ocorrido dois mil anos mais cedo.

É claro que os cristãos que se consideram sofisticados não acreditam que Jesus intervenha nos mercados financeiros ou que altere a maneira de ser das pessoas tirando um egoísmo a este, um mal àquele ou um pecado ao outro. O deus do crente sofisticado age sem intervir no espaço de liberdade de um universo em constante criação e auto-descoberta, numa relação do Outro com o Eu e do Eu com o Outro, em plena dádiva de si e outras coisas que não deixem qualquer vestígio, não vá alguém lembrar-se de testar estas alegações.

Mas, como P. T. Barnum dizia, é preciso haver coisas para todos os gostos. Se as massas associativas se revêem nestes pedidos, intercessões e trocas de favores, é razoável que a sofisticação da crença fique reservada apenas para algumas discussões mais filosóficas.

Pena, pena, é que a treta não pague imposto…

1- Portal Evangélico, CONVOCAÇÃO À IGREJA PARA UM DIA DE ORAÇÃO E JEJUM PELA NAÇÃO
2- Jornal Económico, Papa pede o fim do “homem velho ligado ao egoísmo”

Em simultâneo no Que Treta!

16 de Abril, 2011 Ludwig Krippahl

O problema não é a ironia…

Há dias o Miguel Panão escreveu um post sobre o “problema do mal”. Na apologética cristã, o problema do mal não é que as pessoas sofram. O problema é apenas compatibilizar doenças, terremotos e o sofrimento dos inocentes com a hipótese de haver um deus omnibonzinho que nos omniama a todos. A razão, sem fé, diria simplesmente para admitir o erro e deitar fora a hipótese. É o que se faz quando as hipóteses não encaixam nos dados. Mas a fé não admite tal coisa e exige o que na apologética cristã chama “reflexão”, “exegese” e “hermenêutica”, e que cá fora se chama “arranjar desculpas”. A virtude dos textos do Miguel Panão é que revelam bem como esta apologética só foge das questões em vez de as responder.

Acerca da dor, do sofrimento e da morte, o Miguel Panão pergunta se serão realmente males: «Se a dor nos torna sensíveis, [s]e o sofrimento nos torna maduros, [s]e a morte nos dá um novo olhar sobre a vida, o que é, efectivamente, um mal natural?»(1) Parece uma reflexão profunda mas, na verdade, é treta. Certamente que o Miguel não cria os seus filhos segundo estas premissas. Se queremos que as crianças desenvolvam compaixão, empatia e respeito pelos outros não lhes vamos causar sofrimento ou mostrar-lhes cenas de tortura e morte. Essa receita é para criar psicopatas. Nem é verdade que o sofrimento nos torne maduros. É o contrário. A maturidade permite-nos lidar com o sofrimento, mas o sofrimento destrói quem não consiga lidar com ele. E sofrer por sofrer não ensina nada a ninguém. Quanto à morte, deixa tristeza e saudade mas não dá nenhum “novo olhar” sobre a vida. As perguntas retóricas do Miguel ilustram bem como é inútil a resposta religiosa. A realidade é que uma criança a morrer de leucemia não aprende nada de valioso e só ensina que o universo se está a marimbar para nós. A teologia não dá resposta a isto. Apenas tenta disfarçar o problema.

Outro exemplo de fachada para esconder questões fundamentais é o “diálogo” inter-religioso. A questão mais saliente na multiplicidade inconsistente de religiões é quem tem razão. É este o problema fundamental. Mas o Miguel Panão finge que não e diz só que é «pela maior profundidade no conhecimento da experiência religiosa do outro que posso, também, aprofundar melhor a minha»(2). Ou seja, cada um ouve as descrições dos umbigos dos outros para melhor apreciar o seu, o que é muito bonito mas não esclarece nada. Por exemplo, continuamos sem saber se adorar a imagem de Jesus na cruz nos salva ou nos condena ao sofrimento eterno por idolatria. Dava jeito esclarecer estes detalhes.

Agora, a Igreja Católica está a organizar o Átrio dos Gentios para discutir com ateus «longe do ateísmo prático da banalização e da ironia»(3). Como se o problema fosse a banalização ou a ironia. Isto são desculpas para, novamente, ignorar os pontos importantes. Em vez de implicar com a forma dos argumentos ateístas ou com a natural banalização de fantasias e superstições, deviam era focar o conteúdo. Novamente, o Miguel Panão dá um bom exemplo.

«Um dos argumentos dos “novos ateus” é que acreditar em Deus é o mesmo que acreditar na Fada dos Dentes. Será? Alister McGrath […] afirmou […] que não há muita gente […] que na fase adulta da sua vida passe a acreditar na Fada dos Dentes […] enquanto que a conversão à existência de Deus não é assim»(4)

O ponto da analogia é precisamente que acreditar na Fada dos Dentes é ingénuo e incorrecto. É este fundamento consensual que mostra a necessidade de determinar porque é que é incorrecto acreditar nesse ser cuja inexistência ninguém pode provar e que faz parte da cultura humana há tanto tempo, mas ao mesmo tempo se deve acreditar num certo deus só porque ninguém pode provar a sua inexistência e muitos acreditam nele há tanto tempo. Ou o Alister McGrath não percebeu o argumento, o que é improvável, ou então finge que não o percebeu, o que é desonesto e frustrante.

O problema não é a ironia, nem o sarcasmo nem o gozo. O problema é fugirem sistematicamente às questões fundamentais. Vejam, por exemplo, o contraste entre as respostas do Sam Harris e do William Lane Craig. Ao Sam Harris um espectador pergunta como se pode explicar milagres como a hóstia na eucaristia se transformar mesmo em carne, com veias e sangue. Harris explica pacientemente que há muitas histórias assim em muitas religiões e não se pode confirmar nenhuma adequadamente. Ao William Lane Craig outro espectador diz que Deus falou com ele e lhe disse que o amor homossexual é tão belo e legítimo como qualquer outro, e pergunta como explicar isso aos crentes que não aceitam essa revelação divina. Vejam como um dos apologistas católicos mais reputados responde a uma questão sobre o problema fundamental de determinar se uma revelação divina é genuína (5).

1- Miguel Panão, O problema DSM…
2- Miguel Panão, Reciprocidade no Diálogo Inter-religioso: um exemplo a seguir
3- Zénite, Átrio dos Gentios: longe do ateísmo prático da banalização e da ironia
4- Miguel Panão, Acreditar em Deus ou na Fada dos Dentes …
5- Obrigado ao Pedro Amaral Couto pela ligação do vídeo.

Em simultâneo no Que Treta!

11 de Abril, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: experiência pessoal.

A experiência pessoal é muitas vezes apontada como evidência da existência de um deus. Mais especificamente, do deus de quem o alega, com todas as suas idiossincrasias, nascimentos virginais, ressurreições, representantes terrenos e afins. Tanto se fiam nela que o Miguel Panão até me perguntou «como fazes tu a experiência da inexistência de Deus?» (1) Como se o fundamento do ateísmo fosse alguma “experiência da inexistência”.

Quando falamos em ter uma experiência de algo, referimos dois aspectos que importa distinguir. Por um lado os qualia, os elementos subjectivos da experiência. O que sentimos quando nos pisam um dedo ou quando vemos o verde de uma folha. E, por outro lado, a coisa que nos causa essa sensação. A folha verde ou a pisadela em si. Costumamos pensar nestes dois aspectos sempre juntos – daí a expressão “experiência de”, seguida da coisa que colamos à experiência – porque há uma forte correlação entre ambos. Se não houvesse, o nosso sistema nervoso não teria evoluído assim, pois é desta correlação que depende o sucesso dos nossos genes. Mas estes aspectos não são indissociáveis.

Se esfrego os olhos fechados vejo luzes. Ou melhor, sinto que vejo luzes. Não há lá luzes nenhumas. Há apenas a sensação de luze devido à estimulação dos neurónios da retina. As multidões que acorrem ao “Doutor” Mwasapile, na Tanzania, para beber a sua tisana milagrosa também “fazem experiência” da eficácia curativa do cházinho. «É tudo uma questão de fé. Se acreditar que isto resulta, resulta mesmo. Vi muitas pessoas lá que ficaram melhor»(2). O homem em Ipu que «incorpora espírito do San e recebe “Mensagem do Além”» também “fez experiência” do espírito de Francisco San Ribeiro de Oliveira, um activista assassinado no mês passado que, segundo o possuído, veio assim pedir justiça pela sua morte (3).

Não duvido que, em muitos casos, o relato da experiência do crente num deus é tão sincero como os relatos das experiências dos crentes no espiritismo, nas mezinhas do Doutor Mwasapile e outras que tal. Mas a fiabilidade das nossas experiências pessoais é muito variável. Depende muito das condições externas e do nosso estado emocional. Na verdade, o enorme progresso do conhecimento, que nos trouxe das cavernas à Internet, foi sempre empurrado pelo progresso nas técnicas para contornar esta limitação, desde a avaliação objectiva dos resultados – problema estranho aos teólogos mas inescapável para quem fabricava utensílios ou construía pirâmides – até aos instrumentos de medição e conceitos como estatísticas e barras de erro.

Além disso, os crentes religiosos abusam da experiência pessoal. Que sintam a presença de alguém quando rezam, aceito como plausível. Que sintam que é Alguém importante, muito superior aos humanos, até pode ser. É coisa que me parece possível sentir. Mas não é plausível que sintam a presença de um deus criador do universo, que é três pessoas numa só substância e que nasceu de uma virgem na Palestina há dois mil anos atrás. Isso é demasiado detalhe para uma mera sensação.

Quando falha a confirmação independente, o mais razoável é assumir que essa experiência de algo é apenas experiência sem o algo. Se oiço um zumbido que outros também ouvem pode ser uma abelha ou algo assim. Mas se só eu oiço então é tinido e o melhor é ir ao médico. O mais provável é que a relação pessoal que os crentes religiosos dizem ter com o seu deus, e que apontam como fundamento para a sua crença, tenha origem no sistema nervoso do crente e não num deus omnipotente. Sentir alguém é uma ilusão fácil, mais ainda quando se deseja intensamente essa experiência. E até pode ser uma coisa boa, para algumas pessoas, mesmo que seja ilusória. No entanto, para bem ou para mal, a experiência pessoal de um deus está mais próxima do que vemos quando esfregamos os olhos fechados do que está do que vemos quando os temos abertos.

1- Comentário em Críticas ao lado do ateísmo, parte 1
2- NY Times, Crowds Come Over Roads and by Helicopters for Tanzanian’s Cure-All Potion. Obrigado pelo email com a notícia. E não percam os vídeos na sua página do Facebook.
3- Blog de Espiritismo, Um caso de todos os dias

Em simultâneo no Que Treta!

6 de Abril, 2011 Ludwig Krippahl

Críticas teístas ao lado do ateísmo (1ª parte).

No “Companhia dos Filósofos”, o Ricardo resumiu uma crítica que o William Lane Craig tentou dirigir ao ateísmo. O argumento do Craig é demasiado extenso para um post, e talvez demasiado aborrecido para mais que um post, mas queria focar um problema que sobressai no resumo do Ricardo (1). Já agora, agradeço ao Ricardo por este resumo, gratidão certamente partilhada por quem tentar ler o original (bocejo) (2).

Craig afirma que não podemos invocar a falta de indícios da existência de Deus para concluir que ele não existe porque esta falta de indícios só seria relevante se, da «entidade que é postulada existir, seria de esperar mais evidencias da sua existência do que aquelas que já dispomos». E, segundo Craig, «cabe ao ateu provar que se Deus existisse forneceria mais indícios da sua existência do que aqueles que temos ao nosso dispor»(2). No entanto, logo a seguir, defende que «No cristianismo o modo primário pelo qual passamos a conhecer Deus não é por indícios mas por meio do trabalho interior do seu Espírito Santo». Parece que só os ateus é que têm de provar. Aos crentes basta afirmar.

Chutar o ónus da prova dá argumentos fracos e, neste caso, desonestos. Eu prefiro não discutir quem tem de provar o quê e, em vez disso, avaliar as hipóteses pelos seus méritos. Ontem tive o prazer de conhecer o João Paiva, co-autor, com o Alfredo Dinis, do livro “Educação, Ciência e Religião”, e vou aproveitar um exemplo dele. Muitos jogadores de futebol rezam quando entram em campo. Se pedem a Deus que os ajude a ganhar, eu, o João Paiva e, provavelmente, o Ricardo, concordamos que estão a fiar-se numa hipótese errada. Dessa hipótese prevê-se que Deus ajude as equipas mais devotas, o que seria evidente nas estatísticas dos jogos. A ausência desses dados esperados justifica rejeitar a hipótese.

O importante aqui, para o argumento do Craig, é que não precisamos provar que Deus interfere nos jogos de futebol. O que está a ser posto à prova é a hipótese e, como a hipótese prevê algo que não ocorre, esta reprova no teste. É isso que acontece a quase todas as hipóteses acerca dos deuses, porque quase todos os religiosos acreditam em deuses minimamente eficazes. Que protegem os casamentos, os barcos de pesca, os caçadores que se fazem ao mato ou as colheitas; que curam (ou causam) doenças; que impedem maus olhados, e que castigam aqueles pecados, e premeiam aquelas virtudes, que cada religião define ao seu gosto. Tudo isso é obviamente refutado pela ausência das evidências esperadas.

Sobra apenas um resquício de crenças abstractas num deus que não deixa rasto. Só que esta hipótese também tem problemas. Afirma existir um deus omnipotente, omnisciente, omnipresente, que nos ama e que criou o universo para um propósito, mas que não deixa qualquer evidência concreta da sua existência. Mas, se não pode haver evidências, também não podemos distinguir esta hipótese de infinitas outras. Por exemplo, pode igualmente ser um deus omni-isso-tudo mas que tenha criado o universo só por que lhe deu para isso, sem propósito nenhum. Pode ser um deus que nos odeia; como não intervém, amar ou odiar dá no mesmo. Ou que se está a borrifar para nós. Pode haver dois deuses em vez de só um. Ou três. Ou três mil quatrocentos e noventa e seis. Há infinitas hipóteses alternativas e todas dizem igualmente nada acerca do que se observa. Portanto, a probabilidade do Craig acertar na verdadeira é infinitésima. E nem adianta de nada, porque, pela hipótese que o Craig defende, esse deus é tal e qual o que seria se não existisse.

Em contraste, a hipótese de não existir qualquer deus é falsificável e, à partida, é até muito arriscada, porque implica que não pode ocorrer nada no universo por intervenção divina. Nada. E esta hipótese tem sido posta à prova contra inúmeras explicações alternativas. Doenças, curas, as espécies, terremotos, montanhas, as órbitas dos planetas, guerras, paz, tempestades, secas e até pragas de sapos e gafanhotos já foram explicados com milhares de deuses diferentes. Em todos os casos a hipótese de nenhum deus ter causado estas coisas prevaleceu. Sempre. Há milhares de milhões de crentes, de criacionistas evangélicos a animistas e hindus, que continuam a fiar-se em hipóteses que os factos já refutaram. E mesmo aquela minoria de crentes que admite ser errado esperar indícios dos deuses vê-se limitada a hipóteses impossíveis de testar. Ou seja, especulações que não dizem nada. Em toda a história do conhecimento humano, nenhuma outra hipótese deu uma cabazada tão grande a tantos concorrentes como esta que o ateísmo deu aos milhares de religiões que os homens inventaram.

É isto que fundamenta o ateísmo. Não são truques com palavras, argumentos vácuos ou o driblar sorrateiro do ónus da prova. É um percurso inexorável, de milhares de anos, em que a hipótese ateísta prevaleceu objectivamente sobre todas as religiões que se foi inventando. É isso que me dá confiança para concluir que o deus do Craig é tão treta como os outros todos que tombaram pelo caminho.

1- Ricardo, Críticas Teístas ao Ateísmo de W. Craig

2- Em Michael Martin, The Cambridge companion to atheism. Quem estiver interessado pode procurar no Rapidshare e afins, que parece fácil de encontrar (segundo ouvi dizer…)

Em simultâneo no Que Treta!

29 de Março, 2011 Ludwig Krippahl

Ética verdadeira.

No outro post sobre ética eu defendi que esta nunca pode ser objectiva no sentido forte de ser atributo de objectos, mas apenas no sentido fraco de ser independente da opinião individual de qualquer sujeito. O João Vasco propôs «um sentido intermédio», segundo o qual a ética «é uma coisa a ser descoberta, mais do que um mero produto de uma convenção social. […] Nesse sentido é como os factos da natureza, que são o que são mesmo que todos os seres conscientes sobre eles estejam equivocados [… e …] é objectiva na medida em que [continua] a ser verdadeira mesmo que ninguém o saiba.»(1) Discordo, pela diferença na direcção do ajuste entre estes conceitos e a realidade. Vou aproveitar um exemplo da Elizabeth Anscombe para explicar a minha objecção*.

O Manuel vai às compras com uma lista do que que deve comprar. A Maria, a espiá-lo, anota tudo o que ele compra. Quando o Manuel se engana e põe no carrinho massa em vez do arroz que a lista indica, não é alterando a lista que corrige o erro. Tira a massa do carrinho e põe lá um pacote de arroz. Isto porque a direcção do ajuste desejado é da realidade para a lista. O que o Manuel quer é que a realidade se ajuste à lista. Agora a Maria nota que tinha escrito “massa” na sua lista mas, em vez de massa, o Manuel tem arroz no carro das compras. Ao contrário do Manuel, a Maria não vai trocar o arroz por massa no carrinho. Como a direcção do ajuste que ela quer é da lista para a realidade, a Maria vai apagar “massa” e escrever “arroz”.

A verdade e a descoberta aplicam-se a descrições como a lista da Maria. A Maria está a descobrir o que o Manuel compra e é a lista da Maria que pode ser verdadeira ou falsa. Porque é esta que pretende ajustar-se à realidade. A lista do Manuel não é assim. É normativa, especifica o que deve ser em vez de descrever o que é, foi inventada em vez de descoberta e não pode ser nem verdadeira nem falsa. Se o Manuel devia comprar arroz e comprou massa, então foi o Manuel que se enganou. A lista dele não passa de verdadeira a falsa.

Eu rejeito a proposta do João Vasco porque a ética é normativa, tal como qualquer moral que dela se derive. O objectivo da ética não é conformar-se à realidade mas dizer a que padrões a realidade se deve conformar. Concordo que «mesmo que escravos e esclavagistas acreditassem na moralidade da escravatura, ela continuaria a ser imoral». Eu também quero que a ética seja mais sólida do que uma lista de compras. Não pode mudar com as modas nem faz sentido aquela desculpa do “contexto histórico” com a qual tentam justificar as barbaridades na Bíblia. Apedrejar crianças, escravizar pessoas, maltratar mulheres e matar inocentes é imoral em qualquer “contexto”. No entanto, a ética não algo que se possa descobrir, nem que possa ser verdadeiro ou falso, porque estes conceitos exigem a direcção de ajuste oposta. Só uma coisa que se quer ajustar à realidade é que pode ser verdadeira ou descoberta. Quando o que queremos é ajustar a realidade a algo esses conceitos não se aplicam.

A ideia da ética como verdade que se descobre tem mais dois grandes problemas. Um é implicar que haja uma, e só uma, ética válida. Pode não ser esse o caso. Talvez seja possível criar vários sistemas éticos, todos eles universais e todos eles um bom fundamento para a moral. Não estou a defender o relativismo; defendo que muitas coisas serão necessariamente imorais em qualquer ética. Mas pode haver várias soluções para este problema. Ou não haver nenhuma. Também pode ser que aquilo que exigimos da ética seja impossível. Talvez nunca se consiga criar algo que, ao mesmo tempo, seja fiel aos valores de cada sujeito mas transcenda os valores de qualquer individuo. Parece-me que a ideia da ética como uma verdade por descobrir esconde a complexidade do problema que é criar tal coisa. Comparado com a tarefa de criar um sistema ético, descobrir verdades é canja.

E ignora a barreira entre o que é e o que deve ser, o que deixa passar uma data de tretas. Revelação divina, livros sagrados, a falsa autoridade dos sacerdote, as “leis naturais” e coisas tais são apresentadas como fundamento moral na premissa da ética ser algo que “está lá” para ser descoberto. Ou revelado. Não contentes com isso, depois de “provarem” que a moral certa é aquela porque o seu deus diz que é, fecham o círculo “provando” que o seu deus existe porque só assim a moral certa será aquela. Evitava-se a tonteira destas voltas reconhecendo, à partida, que ética e deuses são ambas criações nossas. E que só uma delas tem utilidade.

* Se bem que foi Searle quem relacionou este exemplo com o problema da direcção do ajuste entre conceitos e realidade. Mais (demais?) detalhes na Wikipedia.

1- Comentário em Mais do mesmo.

Editado no dia 30 para corrigir várias gralhas. Obrigado a todos os que as apontaram.

Em simultâneo no Que Treta!

24 de Março, 2011 Ludwig Krippahl

Mais do mesmo…

O Bernardo Motta tem-me criticado pela superficialidade com que trato o que ele chama “os melhores argumentos teístas”. Argumentos como, por exemplo, esta versão do argumento moral que o Bernardo propõe para refutar um tal de “naturalismo darwinista”.

«(1) Se o naturalismo darwinista é verdadeiro, então a moralidade humana é um produto do neodarwinismo (mutação, cruzamento, selecção natural)
(2) Se a moralidade humana é um produto do neodarwinismo, então não existem factos morais objectivos (verdades morais objectivas)
(3) Existem factos morais objectivos
(4) Logo, o naturalismo darwinista é falso»
(1)

Se o Bernardo se refere à teoria da evolução, muito diferente hoje do que era quando Darwin deu o pontapé de saída, a primeira premissa é falsa. Há factores biológicos hereditários que fundamentam a nossa moralidade, como a empatia, a noção intuitiva de justiça e a compreensão das intenções dos outros. Este atributos são evidentes também nos nossos parentes primatas mais próximos, claramente herdados de um antepassado comum. Mas a maioria dos elementos da moral, nas várias culturas, não surgiu por herança e modificação de genes. O respeito cristão pela hóstia consagrada, as formas de vestir, de se dirigir aos pais ou a poligamia dos Mórmones são preceitos morais que, em detalhe, devem muito mais a interacções sociais do que à evolução biológica.

Mesmo ignorando a falsidade da premissa, a inferência no ponto 2 é absurda. A evolução da moral humana não permite concluir nada acerca da “existência de factos morais objectivos”. Pode haver factos morais, a nossa moral ter evoluído e coincidir com esse factos; pode ter evoluído e não coincidir; pode nem existir qualquer facto moral; podemos ter sido criados por um deus mas não existirem factos morais; ou existirem mas não serem os que julgamos ser, e assim por diante. Uma coisa não tem nada que ver com a outra. O Bernardo parece também assumir, implicitamente, que a moral humana é a “Moral Verdadeira, Única e Certa®”, uma premissa difícil de aceitar com a evidência que temos.

Inaceitável também é a alegação do ponto 3, de que “existem factos morais objectivos”. Se “objectivo” quer dizer ser atributo de um objecto, então é evidente que não há factos morais objectivos. Não faz sentido falar de deveres ou direitos de algo que não seja sujeito. A gravidade é um atributo objectivo, mas o dever de respeitar os mais velhos não é aplicável a objectos. E se “objectivo” tiver aqui o sentido mais fraco de independente da opinião de qualquer sujeito, isso não levanta problemas para o naturalismo. É perfeitamente possível que essa moral seja um produto natural da interacção de sujeitos que criam normas consensuais e resistentes a caprichos individuais. Isso existe, sim, mas no sentido em que existem as regras de trânsito, a adopção e os contratos de arrendamento. Existe porque o criamos.

É verdade que, subjacente a estes preceitos morais, gostaríamos que houvesse um fundamento ético universal, algo que permitisse avaliar qualquer norma de forma idónea e independente, e que separasse as morais boas das más (e há muitas que são más). Mas, após milhares de anos de tentativas de sucesso modesto, não se justifica assumir que tal coisa existe e, ainda por cima, que tem origem sobrenatural e nos é dada de bandeja num livro qualquer. Pelo contrário. Ao que tudo indica, se alguma vez conseguirmos um fundamento destes para a moral, será à custa de o criarmos, entre todos, usando as capacidades que herdámos pelo sacrifício de todos os que a evolução condenou a não serem antepassados de ninguém.

O Bernardo até pode ter razão em queixar-se de que eu não perco muito tempo com os “argumentos” teístas. É uma opinião subjectiva. Eu até acho que perco mais tempo com isto do que devia ser necessário. Mas, seja como for, a minha análise não é breve por ignorância ou receio. O problema é simplesmente que os “argumentos” teístas não passam de umbigologia. Inventam umas premissas sem fundamento, não apresentam evidências, martelam inferências sem sentido e tudo isso só para chegar à conclusão que já escolheram à partida. Como um argumento só pode persuadir pela razão se partir de premissas aceites por ambas as partes e seguir uma linha de inferência válida e clara, facilmente se vê que “argumentos” como este que o Bernardo apresenta não servem para nada. Não é preciso uma análise muito elaborada.

PS: Na próxima sexta-feira o Bernardo Motta vai debater com o Ricardo Silvestre no bar do Helder Sanches. Para quem estiver interessado, há mais detalhes aqui e aqui.

1- Bernardo Motta, Ateísmo – homeopatia para o intelecto

Em simultâneo no Que Treta!

25 de Fevereiro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: ironias.

Segundo a revista Máxima, os ateus são «uma raça em extinção»(1). «Para os ateus é o cúmulo da ironia. A evolução, o processo que acreditam ser o único responsável por criar a humanidade, parece estar a discriminar os não-crentes e a favorecer os religiosos.» Irónico, e triste, é não perceberem o que escrevem. Parece-me que a pessoa que escreveu isto se limitou a copiar partes da versão preliminar da notícia, publicada no blog do Michael Blume (2).

O Michael Blume (e não “Blumer”), recolheu dados demográficos de comunidades religiosas e de vários países, e notou uma forte correlação entre religiosidade e o número de filhos por mulher. Em média, pessoas que participam regularmente em cultos religiosos têm mais filhos do que aqueles que não praticam qualquer religião. E estes últimos, com uma média de 1.7 filhos por mulher, estão abaixo do necessário para manter a população.

Segundo a Máxima, «em escalas de tempo evolutivas de centenas ou milhares de anos, as pessoas com fortes crenças religiosas tendem a ter mais filhos […], ao contrário dos ateus, cujas sociedades estão condenadas a desaparecer.» Mas isto assume que as crianças não se conseguem livrar da religião dos pais. É o que acontece em países com pressões legais, culturais ou económicas para que as pessoas dependam de comunidades religiosas, mas em populações mais prósperas e com mais educação há muitos ateus vindos de famílias religiosas.

Baralhando-se ainda mais, a notícia na Máxima acrescenta que «Todos estes argumentos entram em contradição com as opiniões dos biólogos evolucionistas […] que afirmam que a religião é como um vírus que infecta as pessoas.» Isto é falso, porque a religião não está nos genes. Tem de ser transmitida culturalmente. Portanto, não basta a uma religião aumentar a taxa de fertilidade dos fiéis; precisa também de se transmitir das mentes dos pais para as mentes dos filhos. Não são duas teorias contraditórias mas sim dois passos no mecanismo de propagação das religiões.

O que, se for irónico para alguém, não será para os ateus. Um argumento comum dos defensores de qualquer religião é que as suas crenças devem ser verdadeiras porque há tanta gente a acreditar nelas. À parte de haver sempre mais gente a acreditar noutras, pois nenhuma religião tem sequer 50% da quota de mercado, resultados como este revelam uma explicação mais simples. Há muita gente a acreditar nessas coisas porque são crenças que se espalham pelas populações. Não prosperam por obra e graça de qualquer divindade. Propagam-se pelos mesmos mecanismos evolutivos que nos dão a anemia falciforme e as gripes sazonais.

Mas talvez o mais irónico seja a consequência de não perceberem a evolução. Durante milhares de milhões de anos, toda a vida na Terra foi moldada e empurrada pela competição, entre os genes, por lugares nas gerações vindouras. Por sorte, o nosso ramo da família cresceu para o lado de um cérebro grande, permitindo-nos compreender este processo e libertando-nos da tirania dos replicadores e da reprodução. Somos a única espécie com o potencial para contrariar o que os genes mandam. Com a contracepção podemos planear quantos filhos temos, se os temos, e gerir o nosso impacto no meio ambiente em vez de deixar os genes carregarem-nos às cegas para um precipício malthusiano.

Estas religiões são prolíferas à custa de ignorar este mecanismo e o perigo de ser escravo dos replicadores. Sejam genes, sejam memes. É esse o maior perigo de extinção. Foi essa corrida desenfreada pela reprodução, sem plano ou inteligência, que extinguiu quase todas as espécies que já existiram neste planeta. E se todos os humanos se puserem a crescer e multiplicar-se, lá se vai a nossa também.

1- Máxima, Ateus, uma raça em extinção
2- Biology of Religion, Atheists a dying breed as nature ‘favours faithful’ – Sunday Times Jan 02 2011 – Jonathan Leake – Full Draft Version

Em simultâneo no Que Treta!