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29 de Novembro, 2006 jvasco

Mas porque é que eu faço isto!?

Num comentário a um post recente, o António Parente fez uma pergunta que merece mais que a breve resposta que dei:

«Se o Ludwig não exige que eu acredite em si porque tenta através de posts, da sátira e do humor corrosivo, da lógica aristotélica primária tentar provar que eu estou errado?»

Vejam o que esta pergunta faz: pede razões. Isto é fundamental no diálogo, e a única coisa que justifica chamarmo-nos «animal racional». Exigimos razões. Damos razões. Temos razões. E não podem ser razões quaisquer. Porque sim, porque me dá na gana, ou porque Odin mandou não justificam o que faço. Quanto muito, são razões para achar que não sou racional.

É difícil dizer o que são ou não razões adequadas em geral, mas no caso do diálogo é relativamente simples. As razões adequadas são as que os intervenientes aceitam. O cerne do diálogo é a procura destas razões comuns que permitem partilhar um raciocínio e concordar numa conclusão. Em ciência, por exemplo, o diálogo racional (com razões) transforma uma infinidade de hipóteses, modelos, opiniões, e especulações em descrições consensuais da realidade. O Bernardo Motta diz que isto é positivismo (não é), e propõe outra definição para realidade:

«O Metafísico, em última análise, é o domínio do real absoluto. E o real, como bem explicou Guénon, é o possível metafísico. O que é possível metafisicamente, é real metafisicamente (mesmo que fisicamente isso não seja notório ou nítido).»

A isto chamo mafaguinhos (referência ao tal post anterior). Cada um de nós tem as suas ideias, a sua visão do mundo, e estamos isolados nesta subjectividade. Mas temos em comum um conjunto de observações que partilhamos, e aos quais muitos chamam realidade. E é aí que estão as tais provas científicas, e é ai que encontramos a base para o diálogo e a compreensão mutua. Qualquer um pode definir a palavra realidade como quiser. É como os mafaguinhos. Mas o problema de encontrar bases comuns para o diálogo mantém-se. As razões, em última análise, temos que as ir buscar ás observações que partilhamos.

E nisto a fé é irracional, pois não precisa de razões e não aceita razões que a demovam. Dizer que a fé é uma faceta da razão é como dizer que a careca é um penteado, ou que estar morto é uma maneira de viver a vida. Se exigimos razões e estamos abertos às razões dos outros nunca podemos ter certezas absolutas, pois fica sempre alguma dúvida pela possibilidade de haver razões que desconhecemos.

E eis que finalmente chego à razão que o António me pediu. Eu faço isto porque acho que é da responsabilidade de todos dar e exigir razões. Razões assentes naquilo que temos em comum entre nós: o que observamos da realidade que nos rodeia. Ter fé, ter a certeza absoluta que Jesus ressuscitou, fechar-se às razões dos outros é bom para quem quiser viver sozinho numa gruta no deserto. Quem vota, tem filhos, participa nesta sociedade, usufrui do direito de pensar e de se expressar, e age de forma que afecta todos os outros tem a obrigação cívica de se manter aberto às razões.

E, praticando o que apregoo, fundamento esta razão numa observação: a certeza absoluta e infundada é um perigo para todos. É o factor comum na inquisição, nos actos de Pizarro, Hitler, Stalin, ou Pol Pot, nas cruzadas, na escravatura, na discriminação de crianças e mulheres, nos massacres no Rwanda, e muitos outros exemplos. Por outro lado a dúvida e a procura de razões estão por trás dos maiores avanços morais, filosóficos e científicos. De Sócrates a Bentham, de Tales a Rawls, de Arquimedes a Heisenberg, é evidente o bem que trouxe a todos esta abordagem de testar e assentar ideias na realidade que partilhamos.

Todos fazemos coisas boas e coisas más. Mas para fazer coisas terríveis é preciso estar absolutamente convicto do que se faz, e para fazer coisas excelentes é preciso estar sempre preparado para mudar e melhorar.

——————————–[Ludwig Krippahl]

28 de Novembro, 2006 jvasco

Galileu no Teatro Aberto

Infelizmente este artigo chega tarde de mais. Já não posso aconselhar uma peça que saiu recentemente de cena.

Ainda assim, não gostaria de deixar passar a oportunidade de elogiar a excelente interpretação que o Novo Grupo fez da peça de Bertolt Brecht, a respeito da vida desse incontornável cientista.

Como é natural a peça também foca o importantíssimo papel que a Igreja teve no atraso científico, tecnológico e cultural da sociedade. Ao longo do texto, é muitas vezes equacionada a oposição entre uma sociedade rica e desenvolvida e uma Igreja forte e poderosa.

Mas Bertolt Brecht foi mais longe, sendo mais profundo, na minha opinião. Optou por contrapor o obscurantismo (representado, naturalmente, pela religião) com tudo o que de reconfortante pode ter, à liberdade, com todos os desafios e lutas inerentes, associando-a ao conhecimento, à lucidez, à racionalidade. À verdade.

E creio que essa oposição é o coração de todo o seu texto.

Se porventura a peça voltar a estar em cena, não percam a oportunidade.

27 de Novembro, 2006 jvasco

Provado cientificamente

A palavra provar tem dois significados diferentes. A demonstração, como na matemática ou na lógica. E testar, como provar um fato ou prestar provas. Parece-me que uma grande dificuldade em compreender a ciência vem de confundir estes dois significados.

Um leitor deste blog (João Silveira) comentou que não posso provar cientificamente que a minha mãe gosta de mim. Engana-se. A minha mãe deu já muitas provas de gostar de mim, em muitas ocasiões que testaram o seu amor por mim. É assim que a ciência prova: testando. Está provado cientificamente que a minha mãe gosta de mim.

O problema é pensar que a ciência prova as coisas como a matemática. A prova dedutiva é útil na manipulação de modelos simbólicos (equações, proposições lógicas, e assim por diante), mas não é uma forma de adquirir conhecimento. Se todos os mafaguinhos são calafráticos, e se o Jibidim é um mafaguinho, então prova-se que o Jibidim é calafrático. Mas o que é que isso adianta?

Para tirar algum partido desta prova tenho que encontrar mafaguinhos, determinar se são todos calafráticos, e verificar se o Jibidim é um mafaguinho. E para isso preciso de provas no outro sentido. Preciso de definir os termos, especificar hipóteses, confrontar previsões com o que observo, para pôr à prova a adequação do modelo à realidade. Sem isto fiz apenas um jogo de palavras sem utilidade nem sentido, mesmo que provado por demonstração lógica. É por isso que a ciência nos dá modelos da realidade que são rigorosos, precisos, e úteis: tudo na ciência é para provar, no sentido de por à prova, e toda a ciência está provada, no sentido de ter prestado provas.

O Bernardo Motta revelou a mesma dificuldade quando propôs que a diferença entre esta abordagem e a fé (a Católica, pelo menos) é uma diferença de «visão do mundo»:

«A virgindade de Maria, para mim, é algo de perfeitamente natural e normal, porque tenho uma visão do Mundo que não é positivista. [… O] crente instruído não acredita num dado dogma “porque sim”. Acredita porque esse dogma faz todo o sentido dentro da “weltanschauung” católica. Perfaz um todo coerente de uma beleza que nos convence da sua veracidade.»

Isto é apenas um passo do processo científico: a construção do modelo. Criar uma representação simbólica coerente, elegante, mesmo bela. Pode ser o dogma Católico, pode ser a economia de Marx, pode ser a psicologia de Freud ou a mecânica Newtoniana ou a Relatividade de Einstein. São modelos; palavras e símbolos encadeados duma forma lógica e estruturada.

Mas, como disse Thomas Huxley, mesmo a teoria mais bela pode ser morta por um facto feio. Podemos dizer que o nosso modelo vem da intuição, ou é revelado, ou é metafísico, transcendente, o que quisermos. Mas enquanto não prestar provas de que corresponde à realidade não é mais que o Jibidim e os mafaguinhos calafráticos.

A crença e a ciência não se distinguem pelas suas visões diferentes do mundo. Visões do mundo tem a ciência às dúzias, e muda-as regularmente. Até o dogma Católico já fez parte da ciência ocidental, e nenhum Católico rejeitaria provas científicas da virgindade de Maria ou da ressurreição de Jesus por virem de outra visão do mundo. Apenas o faria se as provas fossem contrárias à sua doutrina. E aqui é que está a diferença. A ciência quer modelos para compreender a realidade, por isso além de os construir também os testa, corrige, rejeita, melhora, e substitui.

A religião quer modelos para acreditar que são realidade, por isso limita-se a enfeitar um modelo com palavras sonantes. Aceita tudo o que facilite a crença. Rejeita tudo o que indique erros no modelo. Como adora o modelo, nem percebe a necessidade de o pôr à prova. Não se testa; tem-se fé. Mistério. Milagre.

Treta.
——————————–[Ludwig Krippahl]

24 de Novembro, 2006 jvasco

O conflito entre Ciência e Religião

O vigia num navio de guerra avista uma luz entre o nevoeiro. Avisa o comandante, que manda o imediato ordenar ao outro navio que mude de rota. O imediato tenta várias vezes, mas pelo rádio recebe apenas um pedido idêntico. Irritado, o comandante pega no microfone: «Daqui fala o Comandante Silva. Este é um navio da Marinha, e não alteramos o nosso rumo! Saiam da nossa rota!». Do outro lado vem a resposta paciente «Aqui fala o Martins, e isto é um farol. Faça lá o senhor Comandante como achar melhor…»

O conflito entre ciência e religião faz me lembrar esta anedota. A religião traz a autoridade da tradição, duma coisa séria e importante, mas a ciência está limitada pela realidade e daí não pode sair. Se a astronomia, a geologia, ou a biologia contradizem uma certa interpretação de um dos muitos livros sagrados não é a ciência que tem que mudar. E o humor em si ilustra outro ponto de divergência. Para uma piada ter graça temos que a compreender, mas não precisamos de acreditar. O gozo de fazer ciência é essa compreensão, associada a uma dúvida que antecipa algo ainda mais fascinante. A religião é o oposto. A Santíssima Trindade ou a hóstia que se transforma no corpo de Jesus são ideias incompreensíveis, que a religião quer que se acredite sem reserva, sem compreensão. Sem humor. A ciência tem piada; a religião é séria e sisuda.

E isso vê-se nas atitudes. Em todos os laboratórios vemos piadas ou cartoons com sátiras à ciência. A prestigiosa universidade de Harvard atribui anualmente os prémios Ig-Nobel, uma crítica sardónica às argoladas dos cientistas. Mas basta um desenho de um papa com um preservativo no nariz ou de um profeta com um turbante em forma de bomba e ficam milhões de crentes ofendidos. O humor é uma forma poderosa de crítica, que suscita a exploração de outros pontos de vista. Enquanto a ciência se alimenta deste diálogo crítico, a religião não quer nada com isso.

E a maior diferença é na reacção a outras ideias. Os cientistas que discordam colaboram para determinar quem tem razão. Quando crentes discordam não há nada a fazer. Nunca Católicos e Judeus vão colaborar num projecto para determinar objectivamente a divindade de Jesus. Há quem queira resolver o conflito entre ciência e religião isolando os campos, com a ciência encarregando-se dos factos e a religião dos valores. Mas o problema não é o conflito de ideias. Há conflitos de ideias na ciência, na arte, e na filosofia sem qualquer problema. Pelo contrário, este conflito de ideias é bom porque estimula o diálogo, o progresso, e novas ideias. O problema é que certas ideologias não toleram o conflito de ideias. Os nacionalismos, ideologias políticas, e religiões tendem a reagir muito mal a ideias contrárias, e a transformar conflitos de ideias em conflitos de pessoas.

Não é o farol que tem que sair da frente, e não são as ideias diferentes que criam o conflito entre ciência e religião. O que causa este conflito é basear uma ideologia na certeza absoluta que é Verdade. Quem tem esta certeza está fechado a posições contrárias, nega a possibilidade de mudar de ideias, e não tem interesse em manter o diálogo. Interessa-lhe suprimir a oposição em vez de aprender com ela, desde a subversão do ensino científico por meios políticos até aos atentados bombistas.

——————————–[Ludwig Krippahl]

22 de Novembro, 2006 jvasco

O sobrenatural

O sobrenatural é mesmo uma treta. Não é novidade que há muita treta nesta vasta categoria. Muitos que acreditam em deuses não acreditam em fadas, os que acreditam em fadas e unicórnios já não acreditam no Pai Natal, e os que aínda acreditam são novos demais para ler blogs.

Mas o que quero aqui apontar como treta é o próprio conceito de sobrenatural, esta ideia de haver na natureza coisas que estão para além da natureza. O que quererá isso dizer?

Suponhamos que os espíritos dos meus bisavós aínda persistem, e vagueiam por aí a coscuvilhar a vida dos seus descendentes. Se for mesmo assim que as coisas funcionam neste universo, então esses espíritos são tão naturais como os seus antigos corpos. A ciência moderna até nos diz coisas bem mais estranhas. A gravidade é uma distorção do espaço-tempo. Um electrão nunca tem a posição e a velocidade perfeitamente determinadas. Todos os seres vivos neste planeta são parentes, descendendo de antepassados longínquos pela acumulação de pequenas diferenças ao longo de inúmeras gerações.

A imagem da natureza dada pela ciência moderna viola quase tudo o que há poucos séculos se pensava ser as leis da natureza. Será que toda a ciência hoje em dia é sobrenatural? Não. Uma excepção a uma regra que pensávamos ser uma lei natural não é indicativo de influência sobrenatural, mas apenas sinal que estávamos enganados. Se o diccionário diz que os corvos são todos pretos e encontramos um corvo branco, o erro é de quem fez o diccionário. O corvo não tem culpa.

É essa a grande treta desta ideia do sobrenatural, de algo que está para além da natureza, de algo que viola as leis naturais. O máximo que pode acontecer é algo violar o que nós pensamos ser as leis naturais, mas chamar a isso sobrenatural é apenas tentar disfarçar a nossa ignorância. Não sabemos porque há raios e trovões? São os deuses. Algo que prevíamos ser duma forma afinal é de outra? Foi a bruxa, o mau olhado, ou os maus pensamentos. Alguém anda a ver fantasmas? É o inexplicável, o insólito…

Sobrenatural?

Treta.

Se a natureza se porta duma forma que não esperávamos, são as nossas expectativas que estão erradas. Por ignorância, assumimos algo que não devíamos ter assumido. Infelizmente, isso é perfeitamente natural.


——————————–[Ludwig Krippahl]

21 de Novembro, 2006 jvasco

Omnisciência é impossível

Já é conhecido o argumento que demonstra a inconsistência lógica do conceito de omnipotência. «Poderá Deus criar uma pedra que não possa levantar?»

Recentemente descobri, via Ludwig, um argumento que mostra a impossibilidade lógica da Omnisciência. Baseado no teorema de Godel, é simples e elegante:

«Deus não pode saber que esta proposição é verdadeira»

Se a proposição for falsa, nenhum ser omnisciente pode saber que é verdadeira, pelo que a afirmação será verdadeira necessariamente.

A afirmação só pode portanto ser verdadeira, mas isso implica que existe algo que este alegado ser omnisciente não sabe…

20 de Novembro, 2006 jvasco

Debate sobre as atitudes religiosas dos Portugueses

O debate do passado dia 17 foi muito bom, e agradeço aos organizadores, especialmente à Filomena Carvalho, pelo amável convite, e ao meu irmão por ter sugerido a minha presença. Moderado por Fernando Catroga, participaram António Rego pela Igreja Católica, Mário Mota Marques pela comunidade Baháï, Jónatas Figueiredo pela comunidade Evangélica, e Mahomed Abed pela comunidade Muçulmana. Eu estava no panfleto como representante da «comunidade céptica», mas fiz questão de deixar claro que não representava uma comunidade, mas sim uma ideia: a ideia de viver sem religião. A descrença.

Comecei por esclarecer que descrença não é acreditar no contrário. Isso é apenas uma crença diferente. A descrença é perguntar em vez de afirmar, principalmente perguntar como é que o crente sabe que a sua crença é verdadeira. Como é que sabe que Maria era virgem? Que Jesus ressuscitou? Que Mahomed era mesmo um profeta? Estas perguntas incomodam os crentes, mas são perfeitamente legítimas.

E podemos ver o que acontece sem estas perguntas. As crenças religiosas apresentadas são fruto de um longo processo de aplicar a crença para obter respostas. Todas as religiões têm respostas, e todas têm a certeza absoluta que têm as respostas certas. Mas têm respostas diferentes. Parece que o método da crença não é o melhor. Principalmente porque a certeza absoluta dificulta o dialogo com os que têm a certeza absoluta do contrário, como podemos ver em muitas partes do mundo (nem sempre com crenças religiosas, mas sempre com certezas absolutas).

Por isso propus o método da dúvida, da questão, da descrença. Não dá recompensas, nem nesta vida nem na próxima, nem dá castigos para quem discorda. Não dá a verdade absoluta nem uma ligação directa ao criador. Mas dá a possibilidade de corrigirmos os nossos erros, e abertura ao dialogo com quem tem outras posições. Não tive oportunidade de o dizer no debate, mas acho que isso é melhor que qualquer deus ou verdade absoluta.

Da assistência veio a inevitável pergunta: sendo céptico, como posso evitar cair no relativismo moral? Como posso encontrar valores? Já estava à espera desta. Por sorte, imediatamente antes outro membro da assistência tinha comentado que todas estas religiões tinham em comum a prática do bem, o que me facilitou a vida. Se reconhecemos algum bem em todas é porque já temos uma noção de bem que é independente da religião. E crente ou descrente, o ponto final de qualquer juízo moral é sempre cada um de nós. Mesmo que um deus nos venha bater à porta a dizer o que é bom ou mau temos que decidir se concordamos ou não. O fundamental é sermos capazes de julgar as crenças e a fé de acordo com os nossos princípios morais, e não deixar que a fé dite o que para nós é certo ou errado. Esse é o caminho do fundamentalismo, e a razão para os extremismos em todas as crenças (não só as religiosas).

No final do debate o moderador lançou uma boa pergunta: há verdade na religião? Mais especificamente, se todas as religiões são verdadeiras, se só uma é verdadeira e as outras falsas, se todas são falsas, ou se há uma mais verdadeira que outras. Os outros participantes deram a resposta previsível: todas as religiões têm alguma verdade, mas há uma que é mais verdadeira. Claro que não houve consenso quanto àquela que supostamente é mais verdadeira.

Eu respondi que verdade não é aquilo em que acreditamos, mas aquilo que resiste à dúvida; para saber se as religiões são falsas ou verdadeiras temos que duvidar delas e ver o que aguenta. A audiência riu-se, mas acho que alguns ficaram a pensar. No fundo, era só isso que eu queria.

——————————–[Ludwig Krippahl]

15 de Novembro, 2006 jvasco

Ratros estará doido?

Ratros é um senhor feudal.
O seu feudo tem cerca de 300 habitantes, e ele quer que eles sejam livres.

Ratros também quer que cada um dos seus servos o adore. Em particular Ratros quer, por exemplo, que cada um deles tenha em casa um retrato seu, e que o abrace todas as noites.
Ratros pensou em dizer «cada um de vós é totalmente livre de ter ou não um retrato da minha pessoa na vossa casa. Mas terão de ser consequentes com os vossos actos: se não tiverem tal retrato, serão degolados», mas apercebeu-se que isso era absurdo. Essa situação, de lhes permitir ter ou não ter retratos nas respectivas casas, mas castigá-los severamente caso não tivessem seria indistinguível de uma proibição. Seria uma proibição. Seria uma limitação à liberdade dos habitantes do seu feudo.

Ratros reflectiu: caso ele se limitasse a castigar quem não tivesse tal retrato, todos teriam o retrato, mas por mero medo do castigo – não seriam livres. Mas se Ratros não fizesse nada, muitos poderiam nunca ter o seu retrato em suas casas e viver impunes. Então teve uma ideia.

Em vez de anunciar perante todo o feudo que degolava quem não tivesse um retrato seu na sua casa, decidiu espalhar rumores. Primeiro apareceu a Josefias, que era pastor, e pediu-lhe que espalhasse tal regra. Mais tarde apareceu a Martins, o juíz, repetindo o que tinha dito, e dando instruções adicionais.

Os rumores sobre o que dissera foram-se espalhando, mas, à medida que a palavra se espalhava eles iam sendo distorcidos. Havia quem dissesse que era importante que o quadro fosse pintado a óleo, e quem jurasse a pés juntos que seria chicoteado quem não o tivesse pintado a cera. Pior de tudo, havia vários rumores a serem espalhados que diziam que era quem não tivesse o quadro de Dromodor (um outro senhor feudal de existência incerta) que seria degolado. E cada vez foram surgindo novos e diferentes rumores. Algumas pessoas sentiam-se perante tal confusão de rumores que preferiam não confiar em nenhum, e diziam «se Ratros quisesse que nós tivéssemos o seu quadro em nossas casas, ele dizia-o claramente, espalhando pergaminhos por si assinados por todos os recantos do seu domínio, não lhe custiaria nada fazê-lo, e espalhar rumores desta forma parece uma brincadeira absurda.»

Ratros decidiu entao enviar o seu próprio filho para falar com Joel e Abel, dois carpinteiros, para lhes transmitir com clareza todas as instruções. Joel e Abel ficaram tão convictos que foram extremamente persuasivos. Desta feita convenceram quase um terço das pessoas a respeito da importância do quadro de Ratros em cada lar, se bem que, com o passar do tempo, as discussões entre os que acreditavam na importância do óleo e da cera se mantivessem constantes, e por vezes bem agressivas. Quanto aos restantes, quase um terço mantinha nas suas casas um retrato de Dromodor. Havia quem dissesse que era parecido com Ratros, e quem considerasse que era totalmente diferente.

Esta história faz algum sentido?

Não.

Porque não?
Porque, como é óbvio, Ratros não tornou as pessoas mais livres por esconder delas o castigo que pretende aplicar. Porque não faz sentido querer esconder tal castigo, supondo que tal segredo é o garante da liberdade, e depois tentar passá-lo através de rumores, vivendo com toda a confusão que isso implica.
Porque assim Ratros nem sequer vai beneficiar necessariamente aqueles que potencialmente pudessem gostar mais dele, mas sim aqueles que tiveram a sorte de ouvir os rumores certos, ou a sorte de duvidarem dos errados e não dos certos – a sorte de não ter espírito crítico face a esses.
Esta atitude de Ratros seria totalmente absurda do princípio ao fim. Só um louco agiria desta forma.

Querem-nos convencer que Deus, alegadamente infinitamente justo e cheio de amor, age desta forma. Que o Deus omnipotente não envia um anjo seu para cada um de nós; ou pelo menos para a ONU em directo para as câmaras de todo o mundo; que não escreve a história de Jesus na Lua para todos vermos que é verdade; que se esconde de tantos de nós; por não querer que façamos a sua vontade apenas por medo do Inferno, a que alegadamente nos destina caso não o adoremos.
Isto é totalmente absurdo.

13 de Novembro, 2006 jvasco

Sam Harris e os crentes «moderados»

Sam Harris contradiz imensas imensas afirmações que oiço repetidas acriticamente. Ele fá-lo com bons argumentos, que importa reter. No último vídeo do youtube que coloquei no meu anterior artigo, Sam Harris começa por criticar o facto dos crentes moderados darem cobro à crença fundamentalista, visto que estes criam um tabu no que respeita a creiticar crenças alheias, tabu esse que é totalmente injustificado e patético. Sam Harris também alega que as justificações que os crentes moderados dão para a crença, baseando as suas razões em desejos e anseios, são um flagrante Non Sequitur, que torna tal crença frágil do ponto de vista da consistência intelectual. E continua:

«Outro problema da crença religiosa moderada é que ela não é apenas inconsistente do ponto de vista intelectual, mas também do ponto de vista teológico. É que os fundamentalistas leram os respectivos livros sagrados, e estão certos a seu respeito: eles são tão intolerantes, divisivos, como os Osamas deste mundo sugerem.

Uma vez dignificada a alegação de que a Bíblia ou o Corão são fundamentalmente diferentes de outros livros – sejam as peças de Shakespeare, seja a Ilíada – que estes livros não são literatura, são os melhores livros de que dispomos em termos morais; uma vez dignificada tal alegação, ficamos reféns do conteúdo de tais livros.
O criador do Universo realmente odeia homossexuais.
Se lerem a Bíblia, lerão que, no mínimo, o sexo homossexual é uma abominação aos olhos de Deus – é dito com todas as letras em Levítico, é rectificado em Romanos.

Muitos cristãos imaginam que o Novo Testamento fundamentalmente repudia toda a barbárie que pode ser encontrada no Antigo Testamento: livros como Levítico, Deuteronimo, Samuel II, Éxodo, etc. Isso não é verdade. Podemos apanhar Jesus em metade das suas disposições e podemos deparar com belas palavras e conselhos eticamente válidos, como a regra de ouro.
Mas o mesmo Jesus também disse coisas como, em Lucas 19, ‘Tragam aqui os meus inimigos, que não aceitam minha autoridade, e matem-nos à minha frente’.

Eu garanto-vos que os inquisidores da idade média, que quiemaram hereges vivos ao longo de 5 séculos, tinham lido todo o Novo Testamento – leram o sermão da montanha – eles encontraram uma forma de enquadrar o seu comportamento com o exemplo de Jesus.

Não é acidental que as referências teológicas da Igreja, S. Tomás de Aquino, S. Agostinho […] fossem a favor da morte e tortura de hereges. […]
Nós olhamos para trás, pessoas a serem queimadas vivas, académicos a serem torturados até à loucura por especularem acerca da natureza das estrelas, da nossa perspectiva enviesada do XXI século e pensamos ‘eram lunáticos’.
Não é verdade. Este era um comportamento perfeitamente razoável, tendo em conta aquilo em que se acreditava.
[…]

Outro problema com a crença religiosa moderada é que estes crentes tendem a ser cegados pela sua própria moderação.
É muito difícil para os moderados acreditar que as pessoas acreditam realmente nestas coisas. Quando vemos nas notícias um Jihadista a dizer coisas como ‘amamos mais a morte que o infiel ama a vida’ e então rebenta consigo, os religiosos moderados (não os fundamentalistas) tendem a não acreditar que a crença foi a razão pela qual ele se fez rebentar. ‘Não tem nada a ver com religião: há causas económicas e sociais, a questão da educação, …’

Não sei quantos engenheiros e arquitectos têm de se fazer rebentar para nós entendermos que as causas não são só económicos-sociais. É muito mais sinistro.

É realmente possível ser tão instruído que se saiba fabricar uma bomba nuclear, e ainda assim acreditar nas 72 virgens.»

10 de Novembro, 2006 jvasco

Sam Harris e as razões para acreditar

Neste espaço tanto eu como a Palmira colocámos alguns vídeos de Sam Harris disponíveis no you tube.
No entanto, à medida que acompanho as conversas entre os comentadores, sou levado a crer que muitos passaram ao lado de tais videos, talvez por serem longos. Assim sendo, tomei a iniciativa de traduzir alguns trechos, neste caso a respeito do respeito que se deve ter, ou não, pelas crenças alheias:

«Nós não respeitamos as crenças das pessoas: nós avaliamos as suas razões. Se as minhas razões forem boas, um indivíduo racional tenderá a concordar com elas.

Se eu vos dissesse que acredito que existe um diamante gigante, do tamanho de um frigorífico, enterrado no meu quintal, pode ocorrer-vos perguntar ‘porquê?’. Se em resposta eu dissesse ‘esta crença dá muito significado à minha vida’ ou ‘não gostaria de viver num universo em que não existisse um diamante gigante enterrado no meu quintal’, seria bastante claro que respostas deste tipo seriam profundamente desadequadas. Pior: seriam as respostas de um lunático ou de um idiota. Respondendo dessa forma, desqualificar-me-ia para qualquer posição de responsabilidade na nossa sociedade.

Mudamos de assunto para a religião, para as exigências morais de uma alegada super-inteligência invisível, para o que acontece depois da morte, e subitamente já tudo é possível.»

«Nós não respeitamos as crenças de outros. Em todos os assuntos nós avaliamos as suas razões. Se eu chegasse aqui e dissesse ‘o holocausto nunca existiu’, vocês não teriam qualquer obrigação de respeitar a minha crença a respeito da história da Europa.
Nós não respeitamos os negacionistas do holocausto, os negacionistas não se tornam reitores de universidades; as pessoas que acreditam que o Elvis está vivo não se tornam senadores. Nós não aprovamos leis contra a adoração do Elvis ou a negação do holocausto, mas marginalizamos com sucesso tais pontos de vista.

Em qualquer aspecto da nossa vida, estar muito certo de algo com um número reduzido de provas ou indícios, ou em contradição com um enorme número de provas ou indícios é sinal que algo está errado com essa mente, é sinal de que não se pode confiar nessa pessoa.
E no entanto, no que respeita à Fé, nós adulteramos as regras completamente. […]

Quando acreditamos que algo é verdadeiro, estamos a esforçarmo-nos por representar a realidade nos nossos pensamentos. É a diferença entre crença e desejo […] E ou temos boas razões para as nossas crenças, ou não temos.
Em todas as áreas da nossa vida, nós exigimos boas razões e desconfiamos de quem não tem boas razões para as suas crenças fundamentais.

Realmente existe um conflito entre religião e ciência.
Tem havido muita produção académica a respeito de tal conflito. Realmente existe um conflito aqui. Porque em última análise o que está em jogo é ter boas razões ou más razões. Todas as religiões fazem alegações a respeito de como o mundo funciona, todas elas descrevem como é que a realidade funciona.
Ou Jesus vai voltar, ou não. Se ele voltar, vindo das nuvens, o critianismo perdurará revelado enquanto ciência. Será a ciência do cristianismo. E qualquer cristão que quiser poderá dizer ‘bem te avisei – aqui está ele, olha para os seus poderes mágicos’, e qualquer cientista mentalmente são será convencido por uma demonstração suficiente de poderes mágicos. Estas alegações parecem ser factuais.»