Loading

jvasco

19 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – V

«Imaginemos uma aldeia isolada onde vivem cerca de 300 pessoas.

Uma delas é Gunther, um poderoso feiticeiro dotado de enormes poderes de presciência.

Na verdade, Gunther é tão poderoso, que até se sente capaz de criar vida humana, livre, do nada. Como sempre foi totalmente respeitador da Liberdade alheia, se as criar, cria-las-á livres, sem qualquer intenção de que estas vão fazer isto ou aquilo.

No dia 17 de Junho ele decide usar este seu poder. Ocorre-lhe criar o cego Matias, ou então a Maria, ou então o Alberto.

Devido à sua presciência, Gunther sabe que se criar o cego Matias, este cego, livre, usará a sua Liberdade para matar 100 aldeões. Se criar o cego, Gunther não terá esse propósito, mas ele sabe que isso é o que se sucederá.

Gunther também sabe que se criar Ana ou Alberto, eles não matarão ninguém. Poderão fazê-lo, claro, porque são livres, mas Gunther sabe que escolherão livremente não o fazer.

Gunther escolhe criar o cego Matias, e este mata 100 aldeões. Os aldeões que sobraram, desgostosos com a morte de seus familiares, juntam-se e arrastam-no para Tribunal: dizem que a sua decisão de criar Matias resultou na morte de 100 pessoas.

E o leitor? Acha condenável a decisão de Gunther?»

Decorre da mitologia cristã que o criador do mal não pode ter sido outro senão o próprio Deus. Ele terá criado um anjo que se terá tornado o Diabo, a representação metafórica do mal. Sendo Deus omnisciente, sabia que da criação deste anjo decorreria a criação do mal.

Nós julgamos os actos das pessoas pelas suas consequências previsíveis. Não há nada de intrincecamente errado em contraír o dedo indicador, mas se este estiver no gatilho de uma pistola apontada para alguém, é previsível que disso resulte uma morte.

Mas os crentes consideram que Deus, omnipotente e omnisciente, não é responsável pelas consequências (conhecidas!) do seu acto, do qual resultou a criação do mal.

E o mesmo que se aplica às metáforas da criação do Diabo ou da tentação de Adão, poderá aplicar-se a qualquer mal existente. A verdade é que, apesar de todas as considerações a respeito da liberdade, o exemplo dado com Gunther é claro: se um ser omnipotente e omnisciente criou tudo, este ser não poderá deixar de ser responsável pelo mal.

14 de Dezembro, 2006 jvasco

Fait divers no mundo da religião

A controversa igreja da Cientologia recebe um subsídio governamental de 270 mil libras (cerca de 400 mil euros)

Conselheiro Baptista acusado de crimes sexuais

Menino de 11 anos suicida-se por não ter dinheiro para fazer 1ª comunhão

E agora, a publicidade:

Se tem uma promessa para cumprir e o não pode fazer, ou se simplesmente quer agradecer a N.ª Sr.ª de Fátima as Boas Graças recebidas ao longo da vida, Carlos Gil
Percorre por si, o caminho de Fátima a pé, e transporta com ele o pagamento da sua promessa ou o seu agradecimento a N.ª Sr.ª de Fátima. Acende, em seu nome, o nº de velas prometido no Santuário.

14 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – IV

Um pai tem um filho de 8 meses, e vê que este vai tocar na ficha eléctrica. Em pânico, impede o filho de o fazer. Isto parece absolutamente normal, e ninguém ficaria escandalizado com tal atitude.

Pelo contrário, se um pai dissesse que tinha deixado o seu filho tocar na ficha, sabendo que ele morreria dolorosamente, mas que não o tinha impedido de fazer isso por «respeitar a liberdade do filho», qualquer um consideraria monstruosa essa atitude. Nem adientaria o pai dizer que amava muito o filho e que tinha lamentado imenso a sua perda, mas que não podia desrespeitar a sua liberdade: todos achariam que uma pessoa tão desequilibrada nunca deveria ter sido pai.

O que é que nos faz achar tão legítima a atitude do pai, e tão criminosa a sua potencial omissão?

Nós consideramos que o pai, por conhecer melhor o mundo, sabe melhor do que o filho aquilo que é melhor para este último. Também sabemos que o pai tende a agir, geralmente, no interesse do filho, por causa desse laço de sangue.

Até que ponto é que este tipo de argumentos pode ser válido em relação a um adulto? É complicado…

Apesar do tanto que eu prezo a liberdade, suponho que não hesitaria em impedir o suicídio de um amigo meu, ou mesmo de um anónimo – mesmo que tivesse de invadir o seu espaço. Apesar de acreditar que cada pessoa deve ser livre para se suicidar, o risco de que uma pessoa ao pé de mim o vá fazer por estar num estado psicológico tal que não saiba bem aquilo que é melhor para si próprio é tal que eu sinto que a invasão da sua liberdade com vista a impedir o seu suicídio seria justificável do ponto de vista ético – a opção correcta.

Será assim? Muitos acreditam que o instinto de sobrevivência é tal que um ser humano dificilmente cometeria suicídio se não tivesse num estado tal que não pudesse avaliar convenientemente aquilo que é melhor para si próprio. E que isso legitimaria o impedimento de tal acto.

Se um louco quer cortar as suas próprias pernas por ter medo dos anões vermelhos, devemos deixá-lo cortá-las, ou devemos impedi-lo de o fazer? Sabemos melhor do que ele aquilo que é melhor para ele? Estaremos a agir no interesse dele?

Parece que quem valoriza a liberdade o faz por acreditar que cada pessoa sabe melhor que nenhuma outra aquilo que é melhor para si própria. A partir do momento em que um indivíduo não invade a liberdade dos outros, ninguém deve interferir, pois esse indivíduo sabe, melhor que nenhum outro, aquilo que é melhor para si próprio.

As diferentes excepções – o pai que impede o filho de tocar na ficha eléctrica; o enfermeiro que força o paciente suicida a vomitar a caixa de comprimidos contra a vontade deste; os médicos que não deixam o louco cortar suas pernas – serão justificadas na medida em que realmente não restarem dúvidas que quem invade a liberdade age no interesse do outro, e sabe melhor que este aquilo que o favorece. Que estas condições se reúnam, é algo que pode ser questionado no caso do louco e do suicida, mas dificilmente no caso do bebé de 8 meses.

Quando falo no paradoxo do mal, uma das questões que costumo colocar é a seguinte: «Como pode um Deus de amor ter criado o Inferno? Um lugar de imenso sofirmento por toda a eternidade?» Praticamente todas as respostas que me dão focam a escolha do condenado: quem vai para o Inferno, de certa forma escolheu-o. E Deus respeita essa escolha.

Existe quem não acredite no Inferno; quem acredite que, a existir, estará vazio; e quem acredite que o Inferno não é mais do que a morte simples, perdendo a possibilidade da vida eterna. Este argumento não é dirigido a nenhuma destas pessoas.

Quanto aos outros, gostaria que se detivesse um pouco sobre o problema. Se o Inferno correspondesse de facto a uma eternidade de sofrimento imenso, ninguém o escolheria em plena consciência. Qualquer que fosse a decisão que levasse alguém ao Inferno, seria uma decisão notoriamente inconsciente. Muito mais absurda do que a de qualquer louco.
Se Deus nos amasse, e fosse omnisciente, então a decisão de alguém de ir para o Inferno seria perfeitamente análoga à do bebé de 8 meses que quer tocar na ficha eléctrica – ele não tem noção das consequências do seu acto.
Se Deus não impedir tal acto cuja consequência será o Inferno, a sua atitude é tão injustificável como a do pai que respeita a liberdade do seu filho de 8 meses deixando-o morrer electrocutado. Com a diferença que morrer electrocutado é infinitamente menos grave do que passar uma eternidade a sofrer intensamente.

11 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – III

Imaginemos um pai que tem dois filhos de 6 anos: o Joel e o Augusto. Ele diz o seguinte: «brinquem à vontade no quarto, eu não vou intervir. Mas não se portem mal.»

Eu encaro agora duas possibilidades.

a) o Joel parte uma jarra chinesa muito cara.

Seria comum a situação em que o pai iria ter com os filhos e lhes perguntaria: «quem foi?». Como que cada um dos filhos acusasse o outro, o pai resolveria castigar os dois. Poderá não ser a opção mais justa, mas é a melhor forma do pai lidar com a ignorância a respeito da indentidade do culpado: pior seria que quem cometeu o acto ficasse sem castigo. Quanto à gritante injustiça que o pai comete para com o inocente, este tem esperanças que numa outra situação parecida em que o culpado é o outro filho e ele não o souber e for forçado a agir da mesma forma, as contas fiquem saldadas.

Mas se o pai tivesse visto que o Joel era o único responsável por ter partido a jarra, seria absurdo e terrivelmente injusto castigar também Augusto.

É um marco civilizacional, uma conquista, que os sistemas penais actuais apenas penalisem quem tem responsabilidade numa determinada transgressão à lei. Nem sempre foi assim: bem sabemos que já existiram sistemas penais em que o castigo de um indivíduo passava para os seus descendentes.
Temos alguma condescendência com essa forma bárbara de encarar a justiça: que indigno que é responsabilizar um filho, uma pessoa independente e autónoma, pelos actos do pai. Entendemos facilmente que tal responsabilização constituiria uma flagrante injustiça.

É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal. Aí, temos quem justifique as crianças que morrem em sofrimento 48h depois de nascer com os pecados dos pais, temos quem justifique terramotos, tsunamis, cheias, com vários pecados de outros indivíduos que não os que sofreram tais catástrofes.
Mas a derradeira prova de que a mentalidade da punição alheia prevalece está na obscena metáfora que é o episódio da criação – as doenças e as mortes que nos asolam são consequência do homem ter optado pelo mal. Mas o facto do mal atingir o homem em geral e não os pecadores em particular deveria salientar um ponto em particular desta metáfora: Deus castiga todos os descendentes de Adão pelos actos deste.
O rapazinho que morre em dois dias não tem culpa – se Deus fosse omnisciente, omnipotente e benevolente, salvá-lo-ia. Como existe quem morra nestas condições, nunca Deus poderá reúnir a benevolência à omnipotência. Não reúne porque não existe.

b) o Augusto pega numa faca e vai matar Joel.

Parece uma cena horrível, mas com crianças pequeninas nunca se sabe. É algo que pode acontecer.

Nenhum pai que se preze hesitará. Com a maior velocidade que pode (e o coração nas mãos) interromperá a brincadeira dos meninos e impedirá, pela força, o Ausgusto de matar o Joel.

Um pai que deixasse Joel morrer, dizendo «Eu prometi que não intervinha na brincadeira deles, e não queria faltar à minha palavra» seria visto como um louco patético, quiçá criminoso na sua loucura.

Isto não se passa apenas em relação a filhos de 6 anos, em relação aos quais se pode alegar não serem responsáveis. Se o leitor estiver a passar na rua e vir dois desconhecidos adultos, um dos quais está prestes a matar o outro, dificilmente tomará a opção eticamente errada se impedir qualquer morte de acontecer. Se conseguir fazê-lo sem se arriscar, mais obrigação terá de impedir a morte eminente.

Ninguém compreenderia que discordasse dizendo «Se o fizesse, estaria a interferir na esfera de liberdade daquele grupo. Estaria a impedir o presumível assassino de agir em conformidade com a opção livremente tomada, negando-lhe o livre arbítrio. Aquele grupo de duas pessoas seria menos livre, e eu prezo mais a liberdade que a vida.»

Alguns (poucos) poderiam concordar consigo se o segundo quisesse morrer, se a morte deste fosse voluntária. Mas se não fosse esse o caso, se o segundo quisesse viver, por mais que o leitor valorizasse a liberdade, nada justificaria a sua passividade: ao agir, estaria obviamente a negar a liberdade ao assassino de matar quem quisesse, mas estaria a dar a liberdade à vítima de não morrer, quando esta o não queria.

O saldo da sua intervenção teria sido o de uma vida humana, mas não teria havido quaqluer contrapartida em termos de liberdade humana. Aquele grupo não se tornou menos livre devido à sua intervenção (mesmo eventualmente com o assassino atrás das grades, a possível vítima viva é mais livre do que morta).

Suponho que até este ponto, poucos terão discordado das minhas considerações, bastante consensuais. É engraçada a forma como esta clareza se some quando se fala do paradoxo do mal.
Quando um assassino tenta matar alguém, Deus poderia intervir, impedindo a morte de acontecer. Certamente que isso negaria ao assassino a liberdade de matar, mas daria à possível vítima a liberdade de viver.
Se nós valorizamos a liberdade do assassino ao ponto de não querer a intervenção de Deus, porque tentamos negar-lha com a polícia, o sistema de justiça, as celas onde o prendemos? Será por considerar que ele ainda tem a liberdade de matar, mesmo que sofra as consequências? Então que direito temos nós de usar vidros e coletes à prova de balas, e um sistema de segurança que faz com que muitas pessoas não possam matar quem querem, mesmo que estejam dispostas a morrer por isso?

Nós não consideramos que uma intervenção que impeça o assassínio seja um atentado à liberdade. Em boa verdade é isso que tentamos criar com a polícia, o sistema de justiça, o sistema prisional, os sistemas de segurança, os colectes e vidros à prova de balas. Estes sistemas falham, há inocentes condenados injustamente e homicídios impunes, mas nós não somos mais livres quanto mais falharem: é o contrário.

Se eu encerrasse o artigo com estas considerações, certamente alguém me lembraria o «Minority Report»: «será que é esse o mundo que eu desejo?». Mas este filme fortalece o meu argumento. E como é que o faz?

Ao termos um sistema que pretende impedir os assassínios (o que, em si, não nega liberdade ao homem), temos de vigiar esse sistema, pois ele é feito por homens. Que podem ser ambiciosos, gananciosos, e partilhar muitas das falhas daqueles de quem pretendemos que nos protejam. É bom que a sociedade esteja vigilante, impedindo os abusos. É bom que a sociedade não dê poderes ilimitados a quem gere estes sistemas. Estas questões são colocadas a nível prático em relação a leis como o patriot act, mas no filme é feita uma metáfora: neste caso dá-se um poder de semi-omnisciência ao sistema que pretende impedir os homicídios. E a ganância humana materializa-se em Lamar Burgess, que tenta imediatamente aproveitar-se de tão grande poder para os seus fins pessoais.

Assim sendo, negar ao um assassino a possibilidade de matar não afecta a nossa liberdade. Dar a um ser humano que promete impedir os assassinos, plenos poderes para o fazer, já pode bem afectar…

Assim sendo, quando Deus, que pode impedir qualquer homocídio sem se arriscar, não o faz, no mínimo ele mata por omissão. Qualquer pessoa decente se sentiria culpada se, podendo evitar um homicídio sem se arriscar, o não tivesse feito. Ninguém diria a si próprio: «não, eu fiz bem. Dei liberdade ao assassino e à vítima para resolverem os seus problemas sem a minha intervenção. Não lhes neguei a liberdade de agirem conforme as suas escolhas livres.»

Será que um mundo em que Deus impedisse alguns dos homicídios e violações que não impede neste seria necessariamente pior? Será que seria impossível impedir qualquer das milhões de violações que acontecem no mundo sem que este piorasse?

Só acreditando que sim é que faz sentido acreditar num Deus benevolente, omnisciente e omnipotente. Mas o leitor dificilmente responderá afirmativamente à última pergunta que fiz. Estarei enganado?

9 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do mal – II

A refutação mais simples da ideia que o mal é causado pelo livre arbítrio é lembrar os males que não o são.

Terramotos, tsunamis, cheias, além de grande parte das doenças que vão matando as pessoas.

A este argumento, muitos crentes respondem com a ideia de castigo. Muitas vezes a discussão não evolui a partir desse ponto – é frequente que a pessoa que os oiça dar tal resposta fique demasiado indignada para manter um tom frio e sério. Afinal, pode parecer monstruoso acreditar que as pessoas que morrem de cancro «mereciam-no», tal como outras doenças que envolvem muito mais sofrimento e dor. Pode parecer um tanto monstruoso considerar que quando milhares de pessoas numa determinada região do mundo morrem em cheias, tsunamis ou tremores de terra, estas o mereciam.
E quanto mais se pensa no sofrimento concreto que esses males infligem, mais mesquinhas, insensíveis e abjctas podem parecer tais considerações. Mais indignação tendem a provocar.

Mas indignação não é argumento.

É por isso que pretendo, ao invés de me indignar, responder com um contra-exemplo. Tomemos um feto, no útero de uma mãe, que tem uma doença. Ele nasce e, devido à sua doença, passa dois dias em sofrimento no hospital até que morre. Não é um exemplo impossível: já aconteceu, continuará a acontecer.
Em que medida é que este mal foi resultado da escolha de quem o sofreu?

Que livre arbítrio teve esta criança com dois dias de vida? Que liberdade é que Deus lhe terá dado? Deus, que alegadamente respeita a liberdade, respeitou a escolha desta criança, que era não sofrer, que era viver? Ou todas estas crianças escolhem morrer em sofrimento?
Deus teria criado um mundo em que o livre-arbítrio desta criança não foi respeitado, em que ela não teve liberdade, nem escolha, em relação ao que lhe aconteceu. E o mal não deixou de lhe acontecer.

Podemos entrever aqui o meu argumento, portanto. Notemos que, neste caso, a ausência de liberdade da criança foi, em si, um mal. Nós gostamos de ser livres e sofremos quando não o somos, então a ausência de liberdade é um mal.

Se um Deus for benevolente, ele apenas optaria por nos dar liberdade na medida em que o mal que dela resultasse fosse inferior ao mal que representa a ausência de liberdade. Assim sendo, com um Deus benevolente, o mundo seria necessariamente o melhor mundo possível. Qualquer mundo diferente (por exemplo um em que Deus interviesse mais, com a limitação à liberdade que cada intervenção implicasse) seria pior.

Notem que, sendo Deus omnipotente e omnisciente, ele poderia criar qualquer mundo concebível. Isto quer dizer que, para Deus ser benevolente, omnipotente e omnisciente, não poderá existir nenhum mundo concebível melhor que este – o que é notoriamente falso: basta conceber um mundo em que, apesar dos pecados do homem, o bebé do exemplo não morreu ao fim de 2 dias.

8 de Dezembro, 2006 jvasco

O paradoxo do Mal – I

A formulação clássica do paradoxo do mal, da autoria de Epicuro, é a seguinte:

«Quer Ele [Deus] impedir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Não quer nem pode? Porquê adorá-lo? Será que pode e quer? Então não pode existir mal»

Já que o mal existe, e já que a impotência é incompatível com a omnipotência, este paradoxo demonstraria que a crença num Deus como o da mitologia judaico-cristã, alegadamente benévolo e omnipotente não faria sentido.

A teologia cristã deu uma resposta a este aparente paradoxo. Alegadamente o mal surge porque Deus nos dá liberdade. E nós, seres humanos, muitas vezes usamos essa liberdade para o mal.
Neste caso, Deus pode mas não quer intervir, não porque seja malévolo, mas sim porque respeita a nossa liberdade.

Peço a todos os leitores que notem algo a respeito deste argumento. Existe uma premissa implicitamente assumida, necessária para a coerência da refutação, que seria interessante analisar.
Estas considerações não rebateriam o paradoxo de Epicuro se fosse possível a um Deus respeitar a liberdade humana e evitar o mal. Sendo Deus alegadamente omnisciente e omnipotente, o facto de encarar essas duas condições como inconciliáveis quer dizer algo de muito profundo a respeito da liberdade! Quer dizer que se encara um mundo livre como algo que não pode ser conciliado como um mundo onde o mal não existe. Nem um Deus omnipotente poderia conciliar essas duas realidades.
Quer dizer, não apenas que se considera a liberdade como a fonte do mal por razões conjunturais, mas que se considera que essa é de tal forma a natureza intrínseca da liberdade, que nem um Deus omnipotente poderia criar um mundo em que isso não fosse assim.

Realmente as religiões sempre foram inimigas da liberdade, mas é curioso observar que, a par de tantas declarações explícitas dos teólogos e Papas cristãos contra a liberdade e o livre-pensamento, nas próprias crenças a respeito da origem do mal se encontra esta inimizade implícita.

Com todas estas considerações não rebati o argumento. Eu creio que o paradoxo apresentado por Epicuro faz sentido, enquanto que crença num Deus omnipotente e benévolo não. Mas não é por mostrar que a refutação mais comum a esse paradoxo tem implícita uma ideia extremamente negativa a respeito da liberdade, que ela deixa de fazer sentido.

Por esta razão, pretendo escrever quatro artigos com argumentos diferentes que pretendem demonstrar, cada um por si, que esta refutação é falha. Que o paradoxo de Epicuro permanece irrefutável, e que a crença num Deus omnipotente e benevolente não é racional.

7 de Dezembro, 2006 jvasco

E eles não se importam?

Anteontem estávamos a falar dum baptizado de um primo enquanto os meus miúdos brincavam por perto. Mais tarde, um deles veio-me perguntar porque é que os meninos choram nos baptizados, e eu expliquei que se deviam assustar com a água. Os padres deitam água na cabaça dos meninos? Sim. E não se importam?

Esta é uma daquelas perguntas que só uma criança de cinco anos pode fazer. Engasguei-me um bocado, e lá dei uma resposta vaga acerca de tradições e assim, que já nem eu me lembro, e que decerto não satisfez a curiosidade do pequeno. Não queria dizer «Não, querem lá saber se assustam o miúdo ou não. E muita sorte tem o puto não ser duma daquelas que cortam o prepúcio…». Mas fiquei a matutar. Eles não se importam?

Eles, não só os padres, mas a família, a sociedade, todos nós. Se queremos que uma criança aprenda a ser tolerante e a respeitar a fé dos outros, era boa ideia mostrar mais respeito pela sua liberdade religiosa. É certo que depressa se esquecerá do baptizado (a menos que lhe cortem o prepúcio), mas vão lembrar-lhe sempre que foi baptizada, e por decisão de outrém. E em muitos casos irá à catequese ou ter instrução religiosa desde tenra idade, antes de poder decidir se quer ter religião ou não. E vão lhe ensinar que deverá criar os seus filhos da mesma maneira, entregando-os à sua religião.

E depois querem que aprenda a respeitar os que têm outras fés…

——————————–[Ludwig Krippahl]

1 de Dezembro, 2006 jvasco

Sorte ou injustiça?

Há quem diga que devemos agradecer a um deus aquilo que temos [..]. Eu tenho muito porque estar satisfeito com a minha vida. Vou ao supermercado e compro o que me apetece, gosto do meu trabalho, tenho saúde, e uma grande família de malta porreira. Tive muito mais sorte que os milhões de doentes, famintos, desabrigados, estropiados, órfãos, que sofrem por todo o mundo. E admito: não é justo. É injusto que uns corram cem metros em menos de dez segundos e outros nasçam sem pernas, ou que uns sejam compositores geniais e outros surdos. Mas ao menos é uma injustiça cega, como a lotaria. Calha a uns como podia ter calhado a outros.

Mas se a lotaria está viciada é uma injustiça terrível e maldosa. Se é por cunha que uns são corredores exímios e outros paraplégicos, que uns vivem felizes e outros sofrem, é revoltante. Se eu vivo bem enquanto outros morrem de fome e doença porque um deus puxou os cordelinhos do universo para me beneficiar à custa deles não estou nada grato. Nem percebo como se pode estar de boa consciência pensando que é assim.

——————————–[Ludwig Krippahl]