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29 de Agosto, 2007 jvasco

O contexto

Charles Darwin afirmou:

«Supor que o olho com todos os seus dispositivos para ajustar o foco a distâncias diferentes, para admitir quantidades de luz diferentes, e para a correção de aberração esférica e cromática, podia ter sido formado pela seleção natural parece, confesso livremente, absurdo no mais alto grau.»

Muitos criacionistas utilizam esta citação para alegar que nem o próprio Darwin acreditava na sua teoria da selecção natural.
Para lhes responder, os seus interlocutores não se limitam a afirmar que a citação está fora do contexto. Eles mostram-no:

«Supor que o olho com todos os seus dispositivos para ajustar o foco a distâncias diferentes, para admitir quantidades de luz diferentes, e para a correção de aberração esférica e cromática, podia ter sido formado pela seleção natural parece, confesso livremente, absurdo no mais alto grau. Quando foi dito pela primeira vez que o sol estava parado e o mundo girava à sua volta, o senso comum da humanidade declarou que essa doutrina era falsa; mas conforme todos os filósofos sabem, em ciência não se pode confiar no velho lema Vox populi, vox Dei. A razão diz-me que se for possível mostrar que existem numerosas gradações desde um olho simples e imperfeito até um olho complexo e perfeito, cada gradação sendo útil para o seu possuidor, como certamente é o caso; se, além disso, o olho alguma vez variar e as variações forem herdadas, como certamente também é o caso; e se tais variações forem úteis para qualquer animal sob condições de vida em mudança, então a dificuldade em acreditar que um olho perfeito e complexo podia ser formado por seleção natural, embora insuperável pela nossa imaginação, não devia ser considerada como subversiva da teoria.»

Quando se cita um texto, por forma a dar a entender que o seu autor afirma algo, quando na verdade ele pretende afirmar o oposto, ou algo muito diverso, isso é grave. Quem considera que a citação trai a mensagem do autor deveria tentar esclarecer os leitores, referindo em que medida é que o contexto desmente a ideia que se tentou passar através da citação.

Há casos em que isto não se sucede. Quando nada no contexto em que uma afirmação foi feita desmente o seu sentido, torna-se muito complicado sustentar a acusação de retirar a citação do contexto com informação, provas, ou razões sérias que sustentem essa acusação.
Em vez disso fazem-se acusações vagas, apela-se a informação que se deseja desconhecida da audiência, sem nunca a concretizar, para que a audiência acredite na acusação, mesmo sem nenhuma razão para o fazer.

Isto obviamente acontece em vários domínios do debate público. Políticos que desejariam não ter dito uma asneira qualquer, apelam ao contexto, mesmo quando nada no contexto os desculpa. Desde afirmações racistas, até afirmações sexistas, homofóbicas, intolerantes, existe sempre a justificação do contexto.
Mas essa justificação é vazia quando nenhum esclarecimento é dado sobre em que medida é que o contexto demonstra quanto a citação pode ser enganadora.

Mas se escrevo este artigo neste blogue, não é por acaso. É porque não há nenhum domínio do debate público – nenhum! – no qual tantas vezes surja a acusação injustificada das citações retiradas do contexto, como o tema da religião.

Suponho que isso aconteça porque a mensagem do livro sagrado dos cristãos é flagrantemente incompatível com os valores humanistas que as nossas sociedades dizem abraçar. A Bíblia exorta os crentes a matar quem trabalha ao Sábado, quem comete adultério, quem tem outra religião, etc… Não há nada no contexto literário, histórico-cultural, nenhuma alegação de erro na tradução, nada que desminta tais exortações.

Assim sendo, muitos cristãos foram sendo habituados a defender a mensagem do seu livro sagrado fazendo alegações vazias a respeito do contexto e da interpretação. E de tanto fazerem tais acusações, já as fazem levianamente a respeito de tudo. Um Papa disse que a democracia é incompatível com o catolicismo, não há problema, isso tem um contexto. A menorização da mulher, a luta contra o divórcio, os ataques à laicidade, o que quer que seja, nunca preocupa tais crentes: há sempre um contexto.

Até o Mein Kampf tem um contexto, mas isso não justifica que eu deixe de considerar que Hitler era um racista intolerante, mesmo sem ter lido essa obra. Se um racista qualquer me vier acusar de «estar a ver as coisas fora do contexto», exijo-lhe que sustente tal afirmação.

O mesmo posso dizer a respeito das obras daqueles que directa ou indirectamente lançaram as fundações da inquisição. Conheço muitas passagens que revelam intolerância, obscurantismo, confusão intelectual. Serei eu que estou a entender mal? Estarei a ler essas passagens fora do contexto? Mostrem-mo.
Até lá são acusações vazias.

29 de Agosto, 2007 jvasco

Religião e obscurantismo VI

«O bom cristão deveria estar atento aos matemáticos e a todos aqueles que fazem profecias vazias. Existe o perigo de que os matemáticos tenham feito um pacto com o diabo para obscurecer o espírito e confinar o homem no inferno.»

Santo Agostinho, De Genesi ad Litteram, livro II, xviii, 37

(Outros artigos desta série: I, II, III, IV, e V)

28 de Agosto, 2007 jvasco

Ateísmo na Blogosfera

  1. «O primeiro sinal de patranha e hipocrisia intelectual e emocional é o erguer de muros que visam proteger algo da crítica — não se pode usar a crítica aqui porque é “redutor”, porque a realidade ultrapassa o pensamento, porque o sentir é uma “dimensão outra” do ser humano, porque é blasfemo pôr em causa a tradição religiosa secular, porque o método científico é muito limitado, porque a racionalidade está ultrapassada, etc. Trocando por miúdos, o que isto quer dizer é: «não me venham com perguntas difíceis, que me lixam o meu sistema de crenças, confortável e seguro, pois eu quero que isto seja verdade — afinal, não era tão bom que fosse mesmo verdade?»»(«Verdade e crença: uma confusão filosófica comum», no De Rerum Natura)
  2. «Um descrente não põe em causa que um crente sente o que diz sentir por um deus ou outro. O descrente põe é em causa que tais sentimentos sejam adequados, por pôr em causa a existência do objecto de tais sentimentos. O que está em causa não é a existência de tais sentimentos, mas a sua razoabilidade e adequação. Um louco também tem sentimentos, igualmente reais enquanto sentimentos, relativamente ao fantasma do Napoleão, que o acompanha sempre e lhe sussurra segredos ao ouvido.

    […] o sistema de funcionamento das religiões não obedece a procedimentos de virtude epistémica: não há sistemas de controlo de erros, procura activa de contra-provas, de objecções, de testes cegos, liberdade de argumentação, acolhimento do debate frontal. Pelo contrário, as religiões caracterizam-se por partir dos conceitos de blasfémia e opinião herética, aceitam que determinadas ideias não devem sequer ser debatidas, e que quem as defende tem de ser excomungado. E por isso nenhuma crença pode racionalmente basear-se nas instituições religiosas.

    […] Mas não me parece aceitável, e é a isso que eu chamo hipocrisia e desonestidade intelectual, fingir que temos argumentos sólidos a favor das nossas crenças religiosas quando na realidade não os temos e nem estaríamos dispostos a abandonar tais crenças caso encontrássemos argumentos irrespondíveis contra elas. Isto seria como um fumador recusar-se a reconhecer que o tabaco não é saudável, só para poder manter a ideia falsa, mas reconfortante, de que é uma pessoa razoável, reflectida e racional. »Será razoável acreditar em deuses sem provas?», no De Rerum Natura)

  3. «O cientista considera que vivemos uma nova era de obscurantismo, que dura há aproximadamente 30 anos. Uma era em que “a verdade deixou de ser importante, e os dogmas e a irracionalidade passaram outra vez a ser respeitáveis”. Uma era em que as pessoas são “iludidas a pensar que serão recompensadas com o paraíso por se suicidarem matando outros”, em que bispos atribuem as recentes cheias em Inglaterra à vingança de uma divindade e em que “professores de ciências começam a acreditar que a Terra foi criada há 6000 anos”»O Sono da Razão: haja velas para tanta escuridão», no De Rerum Natura)
20 de Agosto, 2007 jvasco

Ateísmo na Blogosfera

  1. « A confusão entre as duas coisas parece aliás estar presente em algumas formas de pensamento e vivência religiosa: a ideia por vezes parece ser que a própria crença de que Deus existe torna real a sua existência, o que é um disparate infantil.»(«Verdade e crença: uma confusão filosófica comum», no De Rerum Natura)
  2. «Ehsan Jami, membro do PvdA (centro-esquerda) e Loubna Berrada do VVD (centro-direita), criaram o Comité Central para Ex-Muçulmanos como forma de defender os direitos dos apóstatas muçulmanos. Ehsan Jami foi alvo de agressões por parte de marroquinos e o seu objectivo é tornar a apostasia do islamismo tão aceitável quanto a do cristianismo.»Apoio aos apóstatas do islamismo», no Speakers Corner Liberal Social)
  3. «Segundo os estudos dos historiadores, o sistema de castas foi introduzido há cerca de 3000 anos quando raças arianas do norte impuseram às raças com peles mais escuras uma estratificação baseada na cor da pele e profissão. Um sacerdote chamado Manu escreveu em 200 a.C. um dos livros mais importantes do hinduísmo, registando as leis das castas como leis sagradas declaradas por Deus (As Leis de Manu), concedendo privilégios às castas dominantes com consentimento dos deuses. Assim as leis humanas tornaram-se palavra de Deus.
    O sacerdote supracitado justifica o sistema de castas colocando as questões retóricas: “Foi escrito por Deus, quem pode apagá-lo? Se não houver mais grande e pequeno como é que o sistema funciona?”.»
    Foi escrito por Deus, quem pode apagá-lo?», no Crer Para Ver)
18 de Agosto, 2007 jvasco

Observação

Acreditar na existência de sereias pode ser menos comum do que acreditar na ressurreição de Jesus, mas não é menos razoável.

Não existe qualquer indício a favor da ressurreição de Jesus mais forte que os indícios a favor da existência de sereias.

16 de Agosto, 2007 jvasco

Ateísmo na Blogosfera

  1. «Por exemplo, o presidente do Conselho de Educação do Kansas, o religious right Steve Abrams que aprovou em 2005 a introdução do neo-criacionismo nos curricula de ciências do estado e rejeitou ser a ciência uma explicação natural de fenómenos observáveis – aprovando a redefinição de ciência proposta pelo templo do neo-criacionismo, o Discovery Institute – considerou que alguns directores de escolas do seu estado, curiosamente os mesmos que se recusaram a vender religião por ciência, promoviam “pornografia como literatura”. Recordando que as minhas aulas de Português mais memoráveis, com um daqueles professores que nos marcam, passaram pela dissecação literária do «1900» de Bernardo Bertolucci, tenho alguma dificuldade em perceber como alguém minimamente razoável pode considerar que, por exemplo, o relato de uma epidemia de Ebola é pornográfico, não obstante o título The Hot Zone (A zona quente).»(«Polícia da Palavra», no De Rerum Natura)
  2. «As figuras mais marcantes desta geração, conhecida como a “geração de 70” e que provocou uma polémica contra os românticos em 1865 empreenderam uma intensa campanha anti-clerical, em textos literários e ensaísticos de grande divulgação: os romances realistas daquele que é provavelmente e ainda hoje o maior prosador da língua portuguesa Eça de Queirós (1845-1900) – ‘O Crime do Padre Amaro’ e ‘A Relíquia’ – , os poemas satíricos de Guerra Junqueiro (1850-1923) – ‘A Velhice do Padre Eterno’ – , e as crónicas de Ramalho Ortigão (1836-1915) e de Fialho de Almeida (1857-1911) são os exemplos mais marcantes. Mas houve outros, como Antero de Quental (1842-1891), o poeta e filósofo que, nas ‘Causas da Decadência dos Povos Peninsulares’, incluiu a influência nefasta da Igreja, e Oliveira Martins (1845-1894), o historiador autor de ‘Portugal Contemporâneo’. Todos eles defendiam uma sociedade laica e progressista, em que a razão, a ciência, a moral social substituíssem completamente os dogmas e a pedagogia religiosa.»A DESCRENÇA EM DEUS NA LITERATURA PORTUGUESA», no De Rerum Natura)
  3. «O prefácio da novissima The New Encyclopedia of Unbelief em que o Carlos colaborou ficou a cargo de um dos mais proeminentes ateístas da actualidade, Richard Dawkins, que tem feito correr rios de tinta com o seu último livro, “A ilusão de Deus”.»(«Escravos da Superstição: os Inimigos da razão», no De Rerum Natura)
15 de Agosto, 2007 jvasco

Motivação religiosa, novamente…

«Pelo menos duas centenas de pessoas morreram, na terça-feira, na sequência de quatro atentados no norte do Iraque e que tiveram por alvo uma minoria religiosa e que arrasaram por completo pelo menos 70 casas.

O atentado teve por alvo pessoas da seita pré-islâmica dos yézedis e foi um dos mais sangrentos ataques realizados no Iraque desde a queda de Saddam Hussein há quatro anos, revelaram responsáveis locais», de acordo com a TSF.

Muita da violência que acontece no Iraque tem motivações religiosas. E mesmo no que respeita à invasão que em grande medida a originou, o factor religioso foi muito relevante.

Muitos iraquianos, tal como tantos outros seres humanos ao longo dos tempos, pagam em sangue as crenças religiosas, supersticiosas e falsas.

6 de Agosto, 2007 jvasco

Ateísmo na Blogosfera

  1. «No caso dos hindus, existe um sistema de castas e aqueles que pertencem à casta inferior (os dalits, […]) não podem tocar nos membros de outras castas, nem na água, instrumentos ou lugares que acedem (nem sequer os templos). É como se tivessem uma doença grave altamente contagiosa (é isso que parece significar ser impuro). Chega ao ponto de as sombras serem consideradas um meio de transmitir impurezas.
    Um senhorio disse sobre os seus servos dalits (que limpam os excrementos humanos e animais no chão): «Como posso deixá-los entrar na minha casa? Falamos com eles e damos-lhes o que precisam lá fora» … «Há uma enorme diferença entre mim e eles que remonta há muitos anos atrás. Eles são pequenos e sujos. Pertencemos à casta elevada e eles à mais baixa. Como podemos socializar com eles? Trabalham, damos-lhe o nosso dinheiro e desaparecem. Não falamos muito com eles.» Usou como ilustração os dedos (como as parábolas), que não são todos iguais, e justifica o tratamento e desprezo pelos dalits com a tradição: “sempre foi assim”
    »(«Intocáveis em nome da tradição», no Crer Para Ver)
  2. «Mas concordo com a preocupação do Carlos Pinto. É infundada neste caso, porque uma manifestação por ano não vai ter grande efeito na criança. Mas preocupava-me se fosse todos os domingos. Se os pais convencessem os filhos que há um grande Gay no céu a vigiá-los constantemente. Se, do púlpito, um representante do omnipotente Gay ameaçasse com sofrimento eterno meninos e meninas que sequer sentissem atraídos pelo sexo oposto. Se todos os dias rezassem a este Gay, se todos à sua volta falassem Dele como se existisse. Aí concordava com o Carlos que isto era mau para as crianças. Não por fazer fosse o que fosse à sua orientação sexual, mas pelo sofrimento desnecessário que estes disparates lhes iriam causar por toda a vida.»Muito grave…», no Que Treta!)
  3. «Sir David Attenborough não defende a violência. Não é racista, não discrimina as mulheres. E quando se mete na vida dos outros é só para nos mostrar como é, não para lhes dizer como deve ser. Apesar destes defeitos o canal evangélico Holandês Evangelische Omroep (EO) transmitiu a série «The Life of Mammals». Mas Attenborough tinha ido longe demais. Nesta série, o conhecido naturalista mostra a natureza como ela é. Não pode. A EO teve que intervir.»(«David Attenborough Censurado», no Que Treta!)