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João Nascimento

30 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Humilde Hipocrisia das Ovelhas de Deus

Criado com o DALL-E

Religião e humildade são duas palavras que só coexistem em relativa harmonia na mente dos mais ingénuos, dito da forma mais suave possível. Na realidade, tratam-se de forças antagónicas, conceitos incompatíveis e irreconciliáveis, ideias opostas numa batalha fútil e violenta por um meio-termo metafísico que nunca poderá realmente existir.

E isso não pode, nem vai acontecer, porque, quando confrontados com a espantosa imensidão do universo — com cerca de 14 mil milhões de anos, repleto de biliões de galáxias que reduzem a humanidade e o nosso solitário planeta a meros grãos de poeira insignificantes — os crentes insistem que tudo isto foi concebido com eles, e apenas eles, em mente. Uma proposição bastante peculiar, atrevo-me a acrescentar.

Para aqueles que não ousam questionar, que não conseguem perceber a ácida ironia desta embaraçosa contradição, ouvir uma pessoa religiosa afirmar-se como o ser mais humilde do universo pode parecer razoável, até lógico. Afinal, não é isso que sempre lhes foi dito e levado a acreditar?

As pessoas religiosas são vistas como devotas e puras, austeras tanto por fora como por dentro e, claro, intrinsecamente boas. Sim, boas por defeito, o que é um conceito bastante curioso, perpetuado ao longo de milénios por velhos castos e cínicos. No entanto, basta um pouco de reflexão para perceber que os crentes, muitas vezes, consideram-se tão humildes que acabam por não ser humildes de todo.

Pergunto-te agora, a ti, ao leitor — crente ou não —, se alguma vez alguém te disse sentir repulsa pela religião organizada precisamente por esta razão: pela evidente falta de humildade nos textos fundadores de todas as grandes religiões da actualidade e pela arrogância descarada de tantos dos seus seguidores — sejam eles famosos ou não — que não fazem qualquer esforço para parecer minimamente humildes. Certamente consegues lembrar-te de uma situação assim, em algum momento da tua vida.

Talvez tu sejas um deles, um daqueles religiosos que abomina a religião organizada, mas sente-se preso, ancorado à pegajosa ideia de que é necessário algo sobrenaturalmente maior do que nós para se ter sequer uma razão para querer existir, quanto mais gostar de viver. A vida humana é demasiado frágil, e não é fácil, eu sei — todos sabemos, de uma maneira ou de outra. Posso garantir, ainda assim, com alguma certeza estatística, que não estás sozinho neste dilema cósmico.

Considera agora, a título de grandes exemplos de auto-abnegação em nome do divino, os nacionalistas cristãos americanos: a sua humildade, como seria de esperar, não existe, é nula, e mesmo assim afirmam, em voz alta e ameaçadora, ser o epítome dela. Quantos milhões de americanos partilham desta ideologia? E quantos outros cristãos, espalhados pelo mundo, partilham desta magnífica concepção de humildade?

Acredito que a minha alma encontra prazer na ideia de uma ironia cósmica. Deleita-se especialmente com as manobras metafóricas circenses executadas pelas milhares, senão milhões, de religiões inventadas pela humanidade ao longo dos séculos — e que continuam a surgir diariamente — para justificar a sua ligeira insanidade.

Quando eu era criança, rodeado por tantas ideias aterradoras e absurdas, vendidas como verdades absolutas, a hipocrisia evidente de todos aqueles adultos incomodava-me profundamente. Desde o padre, de aspecto cadavérico, que afirmava ter uma linha directa com Deus e que, supostamente, falava com Ele em público em nosso nome, até às pessoas que se reuniam para o ouvir, sem achar nada de estranho na audácia de tal afirmação.

E depois havia os acólitos, os oradores e os leitores, cuidadosamente escolhidos ou que se ofereciam para ler nas missas, quase sempre os mesmos, que repetiam as escrituras diretamente do púlpito e, como os outros, transpiravam humildade em abundância.

É importante salientar também o papel que o cinema — e outras formas de arte e entretenimento, incluindo a literatura — têm desempenhado na promoção da ideia aparentemente atraente de que temer a Deus torna alguém automaticamente humilde. Nos filmes, por exemplo, a personagem religiosa é sempre o herói, o perseguido, o verdadeiro crente, o mártir. E, claro, todos parecem saber que submeter-se intelectual, mental e, atrevo-me a dizer, espiritualmente a um ditador celestial resulta, naturalmente, em pessoas genuinamente boas.

Pessoas dignas, virtuosas e, claro, supremamente e quase inevitavelmente humildes.

Contempla agora o cristão, que se vê, de maneira relativamente suspeita, como uma ovelha ansiosa por ser guiada por um pastor. Com uma mão, ergue orgulhosamente a bandeira branca da modéstia e declara a sua profunda insignificância perante os ilimitados e mágicos poderes do seu criador. No entanto, com a outra mão, a transpirar de antecipação, gesticula vigorosamente e afirma, com inabalável convicção e em tons ameaçadores, que faz parte do seleto grupo capaz de interpretar os planos de um ser que, por definição, deveria estar além de qualquer entendimento humano.

Não será a humildade religiosa o exemplo perfeito de como palavras e ideias erradas podem distorcer completamente o verdadeiro significado de um termo? Quanta vaidade deve ser disfarçada — muitas vezes de forma pouco convincente, como qualquer observador atento notaria — para alguém afirmar ser o escolhido de um plano divino? E quanta dignidade pessoal precisa de ser sacrificada para se viver num estado perpétuo de auto-recriminação, constantemente obcecado pelos próprios pecados?

A contradição torna-se ainda mais flagrante e amarga quando consideramos a encantadora doutrina do Inferno — introduzida pelo manso e incrivelmente humilde Jesus do Novo Testamento.

Como pode alguém reconciliar a ideia de um deus de amor infinito que, subtilmente, também cria um lugar de tormento eterno e concede apenas a uns poucos eleitos o poder de decidir quem merece ir lá passar o resto da eternidade? É difícil imaginar a arrogância necessária para acreditar num conceito tão nefasto como este. Espero, com algum otimismo, não ser o único a pensar que dizer a uma criança — ou a qualquer outra pessoa, na verdade — que está destinada ao Inferno não é apenas uma violenta afronta à ética mais elementar, mas também uma contradição flagrante da humildade que tanto afirmam possuir.

Satisfeitos com a fragilidade da sua quebradiça virtude, os fiéis insistem em aborrecer-nos a todos e dispensam salvação com entusiasmo. Contudo, e sem surpresas, escorregam na imunda poça de narcisismo que deixam pelo caminho, completamente alheios às evidentes contradições naquilo que pregam. Esta mentalidade está tão impregnada de auto-importância que faz o antropocentrismo tradicional parecer humilde, em comparação.

Insisto que a modéstia religiosa não passa de uma pantomima de integridade, uma expressão de superioridade disfarçada, incapaz de olhar para o seu reflexo sem se deslumbrar com a sua própria imagem moral distorcida.

A mentalidade religiosa regozija-se no brilho vacilante da sua própria virtude em decadência, e a luta constante no interior do crente, entre a auto-glorificação e a auto-negação, revela uma das mais perturbadoras contradições da condição humana. Não se deixem enganar, nem os deixem escapar impunes.

15 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Premissa Filosófica de um Mundo sem Deuses

A Religião Envenena a Ética e a Moralidade

Criado no DALL-E

Sinto sempre um moderado incómodo quando alguém, um crente, um temente a Deus, me pergunta como é possível eu ter algum conceito de moralidade e ética sendo ateu. Pior ainda, insultam-me quando ficam incrédulos por eu não me levantar todos os dias com a magnífica ideia de deambular pelas ruas de Lisboa, a pisar grávidas, a matar idosos e a violar tudo o que me aparece pela frente.

Sem grande surpresa, parecem ficar mais tranquilos quando lhes digo que não, que não ando pelas ruas, seminu e a conduzir um jipe com cabeças humanas como bandeiras, a matar pessoas aleatoriamente numa busca eterna por mais gasolina. No fim, e se fizerem um esforço real para me conhecer, são sempre confrontados com a crua ironia das perguntas que me fizeram. E, provavelmente, perguntar-se-ão de onde veio essa ideia.

Esta genial proposição é uma falácia antiga que persiste. Um mito disseminado por mentes incautas ao longo dos milénios. Uma história que insiste em afirmar que o ser humano só não faz exatamente o que lhe apetece, quando lhe apetece — como torturar, matar, mentir, cobiçar, invejar ou semear o caos — porque um ou mais criadores, ou criadoras, decidiram dotar os seus brinquedos de carne preferidos com certos mecanismos de moralidade espiritual.

Agora, tu, se achas que a moralidade não pode existir sem fé num ou mais deuses, não estás apenas profundamente enganado; estás também a aproximar-te, e sorrateiramente, da ignorância.

Os crentes argumentam fervorosamente que, sem Deus, esse suposto modelo de bondade, justiça eterna e compaixão, não pode haver moralidade. Contudo, ignoram uma verdade simples e, arrisco a dizer, inegável: os seres humanos possuem um sentido inato de empatia e de humanidade partilhada. Imagino-o como uma bússola interna que nos guia, sem necessidade de divindades rancorosas a interferir de maneira suspeita nas nossas consciências.

Olhemos para os infiéis, os agnósticos, os ateus. Eles não precisam de mandamentos divinos gravados em pedra na Idade do Bronze para agir com bondade; fazem-no por genuíno altruísmo, não achas? Mesmo quando há uma agenda mais egoísta por detrás de um acto de compaixão, isso apenas reforça a ideia de que este é um mecanismo que evoluiu com a nossa espécie. Há vantagens em ser bom.

As boas acções não necessitam de recompensas divinas nem de promessas de uma vida após a morte repleta de prazeres celestiais; são valiosas por si mesmas. A moralidade e a ética não são reflexos das doutrinas religiosas, como alguns crentes podem tentar fazer-te acreditar. Estão profundamente enraizadas no nosso ADN, produtos de instintos sociais e intelectuais que evoluíram ao longo do tempo.

Assim como as árvores antigas têm raízes profundas, o Homo sapiens prosperou através da cooperação e do altruísmo — virtudes que existiam muito antes de a religião organizada surgir. Atribuir, portanto, a moralidade humana a uma fonte divina é, claramente, uma ideia não só perigosa, mas também incrivelmente estúpida.

Consideremos o conceito de Inferno, introduzido apenas no mais afável Novo Testamento. Este é um exemplo evidente de como a religião pode distorcer a moralidade de formas cada vez mais bizarras. A ideia de uma condenação eterna no pior lugar do cosmos por se desviar de uma crença, ainda que irrelevante para o mundo secular, não é apenas moralmente contraditória; é uma flagrante violação da razão e da justiça.

A ética humanista considera este conceito não só ridiculamente ultrapassado, mas também completamente absurdo. Indigno de ser levado a sério. Porém, os crentes continuam a agarrar-se a esta macabra fantasia medieval, ainda hoje defendida acerrimamente por grande parte do clero. 

Até alguns descrentes aceitam esta genial ideia, e acreditam que os seus filhos precisam de temer um demónio com cascos, chifres e um tridente para se comportarem adequadamente. A estes digo: pensem melhor.

Pondo de lado as verdadeiras teocracias que ainda existem no mundo, a maioria das religiões de hoje apresenta-se de forma mansa, amável e alegre, oferecendo, com floreados metafóricos, consolo e elevação espiritual. Mas não devemos esquecer o comportamento bárbaro que exibiram quando detinham verdadeiro poder, impondo as suas vis crenças das quais ninguém podia escapar — ainda há poucas décadas atrás, aliás.

A Bíblia, por exemplo — e apenas para evitar referir todos os manuais oficiais das diversas religiões que têm assolado a humanidade desde sempre, e continuam a fazê-lo — reflete práticas sociais e morais de tempos antigos, quando se sabia muito pouco sobre o mundo, quanto mais sobre o cosmos. Justificava acções como a escravatura e a limpeza étnica, que hoje são naturalmente consideradas profundamente imorais e criminosas.

À medida que o nosso entendimento do cosmos e de nós próprios evolui, também evolui o nosso sentido de moralidade e ética. Nunca foi tão claro que os ensinamentos religiosos procuram impedir este progresso, impondo dogmas rígidos, arcaicos e trancados pela inefável e austera palavra de Deus.

A fé, como nos ensina a história da humanidade, conduz à mesquinhez, ao egoísmo e à ignorância, promovendo a obediência cega em vez de uma verdadeira responsabilidade moral e intelectual.

A verdadeira moralidade não se encontra em textos sagrados, mas na nossa capacidade inata de empatizar com o nosso semelhante. Consiste, fundamentalmente, em respeitar e dignificar todos os seres vivos, guiados pelo nosso Daemon interno, como diria Sócrates

Esta é a ética de um mundo sem deuses, que abraça o humanismo secular e que se dedica ao máximo bem-estar de todos os seres vivos, através da ciência, da razão e da nossa própria humanidade.

13 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Peculiar Natureza da Redenção por Proxy

Criado com o DALL-E

Penso que não será injusto afirmar que o cristão comum orgulha-se da curiosa ideia, frequentemente distorcida, de que o cristianismo e o Novo Testamento realizaram, de forma altamente misteriosa, um milagre que redefiniu a personalidade do Deus do Velho Testamento.

O Deus dos Judeus. Um Deus ciumento que castiga, que cobiça, que não perdoa, que mata e manda matar indiscriminadamente.

Um Deus que ordena violar, escravizar, aniquilar e conquistar tudo e todos – e a ferro e fogo – aqueles que se atravessem no caminho da tribo escolhida por Ele; ou assim dizem eles. Um Deus que brinca com a sua criação como se fosse o dono de um casino, mas reservado apenas para autistas profundos.

Não será imprudente da minha parte assumir, com a mesma convicção, que a grande parte do mundo cristão vê a sua versão deste mesmo deus dos Israelitas – Yahweh –, como sendo mais empática, tolerante, amorosa e, acima de tudo, dotada de eterna compaixão e benevolência pela sua criação. As incríveis metamorfoses desse mesmo Deus, que, pela sua natureza omnisciente e omnipresente, deveria ser imutável.

Pergunte-se a qualquer cristão quais são os principais preceitos religiosos que, sendo minimamente digno da Sua graça, é obrigado a acreditar. Este não será um artigo exploratório sobre a obscura escatologia cristã – já lá estive, e não, obrigado – mas um desses preceitos será, sem dúvida, o conceito de redenção vicária, ou expiação por proxy ou representativa, como eu gosto de chamar.

A base deste conceito é a transferência de responsabilidade moral. É como se alguém pudesse cometer um crime – de qualquer gravidade – e, em vez de ser punido, outra pessoa sofresse a penalidade no seu lugar, libertando o verdadeiro perpetrador de todas as consequências – espirituais, morais e quiçá físicas.

Novamente, não seria de má fé da minha parte afirmar que isto constitui um desafio direto à nossa noção básica de justiça, e subverte claramente a verdadeira importância da responsabilidade individual, algo essencial para uma sociedade moderna e ética.

A suposta chegada do Jesus do Novo Testamento na história da humanidade – apresentado como amável, dócil e gentil, com uma mensagem de amor eterno e universal – veio, na minha humilde opinião, apenas mascarar de moralidade aquilo que, por natureza, não pode ser moral. Foi também Ele quem trouxe ao mundo a fantástica ideia do Inferno e sofrimento eterno.

Ele é a figura central desta história. Sem o simbolismo do suposto sacrifício Dele, o cristianismo não existiria. Não assim, não como o conhecemos, muito menos sem a ideia de que os pecadores arderão para sempre nas profundezas do pior sítio do cosmos.

Para um cristão, é igualmente necessário acreditar que este mesmo Filho, enviado por um Pai agora mais manso – supostamente sem as conhecidas características psicopatas –, foi torturado de uma maneira verdadeiramente cruel. Foi escoltado, arrastado, exibido pelas nauseabundas ruas de uma Jerusalém antiga, repleta de superstição e miséria humana, até ao seu suposto e mortal fim.

Um culminar meticulosamente planeado, orgulham-se os cristãos ainda hoje. Um fim horrível arquitetado pelo Pai, agora um Ser mais piedoso e tolerante. Parte integrante de uma profecia lunática que tinha de ser concretizada – a necessária morte do Filho, do Seu Filho. E este, segundo as escrituras do cristianismo, morre lentamente, com sérias dúvidas quanto à parca capacidade do seu gentil Pai em fazer planos.

É interessante, diria eu, que durante milénios, e ainda hoje, tenham existido intensos debates sobre se Jesus é o filho – fisicamente humano, mortal –, o Filho – uma mescla de carne divina e física –, ou Deus em si. Perdoem-me, mas dispenso discutir o papel do Espírito Santo nesta já amálgama esquizofrénica de entidades.

Não será possível, no entanto, concluir que o Cristianismo, uma religião que prega amor universal, compaixão e justiça, baseia-se numa narrativa de sofrimento e sacrifício? Como pode, então, uma fé que valoriza a a bondade e a moralidade fundar-se num acto que, em qualquer outro contexto, e visto sob qualquer outra perspectiva, seria considerado brutal, desnecessário e inumano?

Temos o dever de relembrar ao mundo que o Cristianismo celebra a crucificação como um acto supremo de amor divino, mas que, na sua essência, não deixa de ser um sacrifício humano – algo que normalmente condenaríamos com profunda repulsa.

Qualquer um de nós, se estivesse presente, teria a obrigação de impedir tal demonstração de injustiça e estupidez. Não há nada que justifique a suposta crueldade infligida a Jesus – um evento para o qual não existem evidências concretas de ter acontecido, nem sequer da existência da pessoa em questão.

Não há problema algum que tenha alguma vez incomodado a humanidade para o qual o sacrifício humano tenha sido a resposta certa, ou sequer uma resposta para seja o que for. Jesus, a ter existido, morreu efectivamente em vão, como tantos outros milhões antes dele, e biliões depois.

Até o cristão moderado devia perceber que este conceito de redenção vicária não encontra eco algum na realidade que experimentamos. Na vida real, as acções têm consequências directas e tangíveis. Não desaparecem porque alguém sofreu horrivelmente no nosso lugar há aproximadamente 2000 anos.

A moralidade, tal como a entendemos na ética moderna, exige que cada indivíduo enfrente as consequências dos seus próprios actos. A ideia de que estas consequências possam ser simplesmente transferidas é uma ilusão demasiado perigosa, e uma das sementes mais venenosas que inspirou as maiores atrocidades da história da humanidade.

No mundo secular, onde cada vez mais valorizamos a autonomia e a responsabilidade individual, a ideia de que podemos ser absolvidos dos nossos piores erros através do sofrimento de um semelhante não é apenas incrivelmente ultrapassada, mas um verdadeiro horror moral. Em vez de procurar escapatórias mitológicas, deveríamos enfrentar as nossas falhas de frente, aprender com elas e melhorar.

Será que a moralidade cristã, construída sobre a ideia de que o sofrimento de um pode redimir todos, é realmente bela? Divina? Justa? A ironia é difícil de ignorar: uma fé que prega a justiça e a compaixão baseia-se, paradoxalmente, num acto que subverte esses mesmos princípios. Tinha, e continua a ter, tudo para correr bem.

Acreditar no Cristianismo, e inevitavelmente nesta mensagem de redenção vicária do pecado original – outro conceito maravilhoso –, onde podemos ser ilibados da responsabilidade pelos nossos actos mais cruéis, macabros, bizarros e inumanos através da tortura e morte de um rabi excêntrico, provavelmente epiléptico, na antiga Palestina, não me parece ser a melhor maneira de viver.

Refutar ideias religiosas como esta é um passo decisivo rumo à verdadeira emancipação do espírito humano. É um esperançoso impulso para um caminho que nos libertará das algemas mentais que nós próprios criámos, permitindo-nos finalmente respirar o ar puro de uma vida vivida sem ilusões.

12 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Religião e do Sequestro da Alma Humana

Gosto de pensar que fui aluno de Carl Sagan, embora isso seja algo que muitos outros como eu poderão também facilmente afirmar. Cresci a ler os seus livros, a ver os seus documentários — Cosmos, por exemplo —, e apaixonei-me, tal como tantos outros, pela beleza da ciência por causa dele.

Arrisco a dizer que Carl Sagan foi quem me mostrou pela primeira vez o que era o numinoso, o que significa, o que representa e quão importante é. Senti-o pela primeira vez com ele.

No seu livro Pale Blue Dot, o Carl Sagan oferece ao mundo uma reflexão profunda, inspirada por uma fotografia que ele mesmo propôs que fosse tirada pela sonda Voyager 1, em 1990.

À medida que a sonda se distanciava para além das gélidas fronteiras do nosso sistema solar, a câmara foi então ajustada para capturar uma imagem da Terra. O resultado foi uma fotografia que nos revelou não mais do que um minúsculo ponto azul claro na escuridão cósmica. Acredito que este gesto aparentemente simples tornou-se uma sinopse visivelmente crua da nossa fragilidade, e da nossa poética insignificância no panorama universal.

Olha novamente para aquele ponto. É aqui. É o nosso lar. Somos nós. Nele, todos aqueles que amas, todos os que conheces, todos aqueles de quem já ouviste falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram, viveram as suas vidas. O agregado do nosso júbilo e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançosas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as “superestrelas”, todos os “líderes supremos”, todos os santos e pecadores na história da nossa espécie viveram ali — num grão de pó suspenso num raio de sol.

A Terra é um palco muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensa nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem tornar-se os senhores momentâneos de uma fracção de um ponto. Pensa nas crueldades sem fim cometidas pelos habitantes de um canto deste píxel sobre os habitantes de algum outro canto, quão frequentes são os seus mal-entendidos, quão ávidos estão em matar-se uns aos outros, quão fervorosos são os seus ódios.

— Carl Sagan, Pale Blue Dot

Quando fui confrontado com esta incongruência entre o nosso solipsismo inato, e a ínfima impressão que deixamos no cosmos pela primeira vez, cresci.

Lembro-me do momento preciso, pois senti que esta discordância era um alerta valioso sobre a futilidade dos nossos conflitos terrenos, sobretudo quando ponderados à luz da escala incomensurável do universo. A revelação foi um momento de exaltação intelectual, um Eureka pessoal que potenciou e inspirou positivamente uma já irreversível e eterna viagem por mais conhecimento. 

Acredito não ser o único primata a ter sentido o mistério do transcendental, a ter experimentado algo maior que eu, mais importante e fantástico. Tenho a certeza disto.

Há mesmo momentos especiais nas nossas vidas em que o cosmos parece alinhar-se de forma quase mágica, e muitas vezes a nosso favor. Um breve instante em que a realidade deixa de ser o que parece e revela algo que ultrapassa o mundano e o habitual. Faz-nos sentir grandiosos, especiais, únicos, poderosos, extasiados, ansiosos, como tendo sido o melhor dia da nossa vida. O melhor evento, o quadro mais trágico, a canção mais lírica, o poema mais emocional, o livro mais bem escrito, etc.

Muitos, ao longo de milénios, têm interpretado estes vislumbres do transcendental como carícias divinas. Empurrões espirituais que levam muitos a percorrer caminhos ditos sagrados — seja pelo sacerdócio, pela conversão ao Islão, ao Hinduísmo, ao Judaísmo, ou por qualquer outra senda delineada pelo desonesto carimbo da religião.

E é precisamente aqui que a religião comete talvez a sua maior afronta: a audaciosa presunção de que apenas através dela, com os seus rituais, dogmas e insanidade em geral, é possível ao ser-humano experimentar o numinoso e sentir-se parte de algo maior e mais magnífico.

O transcendental, o numinoso, é aquela sensação que nos liga ao sublime, um grito trovadoresco que nos expõe a algo incrivelmente profundo. Desafia por vezes a lógica e leva-nos a confrontar uma realidade vasta em nuances e, por vezes, indescritível. E, ao contrário do que as religiões têm pregado há milénios, não são necessários mediadores, sacerdotes ou símbolos e rituais religiosos para o experienciar.

Este radar que temos para o detetar e sentir é intrínseco, uma parte essencial de todos nós, independentemente da fé — ou da ausência dela. Ao longo do tempo, a religião apoderou-se desta experiência profundamente humana da pior maneira possível. Ao sequestrar a nossa sensação de esplendor, a religião não só a conspurca continuamente e desde sempre, como também nos faz crer, de forma insidiosa, que apenas através das suas más ideias e práticas arcaicas poderíamos ter acesso a esta dimensão essencial da nossa existência.

Mas será que Michelangelo, o famoso pintor, ao criar as suas obras-primas sob a tutela financeira do Vaticano, estava realmente a expressar inspiração oriunda de fé fervorosa? Ou terá sido simplesmente a sua genialidade, a sua ligação natural ao numinoso, que brilhou apesar das imposições religiosas? Sabemos sequer se este artista era realmente devoto? Ou estaria ele apenas a tentar ganhar a vida?

A mente religiosa afirma ser impossível criar arte majestosa, música inspiradora ou escrever algo verdadeiramente belo e puro sem uma ligação íntima, e de forma altamente suspeita, com um ou mais deuses. Discordo.

Reivindicar algo tão humano como seu é nada menos que uma mentira, uma narrativa construída por homens prepotentes, cínicos, virgens e moralistas, para manter o seu domínio sobre as nossas vidas — aqui, no mundo real e mortal, onde conseguem verdadeiramente exercer o seu poder sobre as mentes mais incautas e controlá-las. Talvez seja esta a razão pela qual está tão profundamente enraizada na nossa psique colectiva, e tão difícil de erradicar ou domesticar.

Um ateu, um agnóstico, qualquer descrente, qualquer pessoa com cérebro e neurónios relativamente activos, tem tanta capacidade de sentir a beleza numinosa como qualquer devoto. A verdade é que esta manifesta-se de inúmeras formas que nada têm a ver com a institucionalização do sagrado.

Está presente na ciência que revela os mistérios do universo, na arte que expressa a profundidade e dificuldade da experiência humana, e nos actos de coragem e altruísmo que nos mostram o melhor da essência do ser humano.

A arte, a ciência, a exploração do desconhecido — todas estas são formas legítimas e poderosas de experienciar o numinoso, muitas vezes de forma mais pura e direta do que qualquer conjunto de regras ou dogma religioso permitiria. E, por conseguinte, com maior e melhor utilidade a curto e longo prazo.

Quando a religião — qualquer uma delas — afirma possuir o monopólio do transcendente, está apenas a tentar, de uma maneira extremamente venenosa, controlar a nossa relação com o mistério e a beleza do universo.

Acredito que chegou a hora de a resgatarmos, assim como a poesia da existência, das garras da religião, e de a reclamarmos como nossa, como parte da nossa herança humana universal.

O numinoso é livre.

3 de Agosto, 2024 João Nascimento

O Lamento da Existência

Gerado por Dall-E.

Porque é que existe maldade humana no mundo? Porque é que as pessoas sofrem? Porque é que as crianças suportam o horror inimaginável de serem violadas pelos próprios pais, depois mortas, desmembradas e descartadas como lixo?

Porque é que a vida é tão incrivelmente injusta? Porque é que nós, seres humanos, muitas vezes morremos miseravelmente e sozinhos?

Enquanto os apologistas cristãos tentam encontrar maneiras cada vez mais surpreendentes de desviar estas perguntas prementes sobre a frágil existência humana, nós, os descrentes, os ateus, os humanistas seculares, oferecemos uma resposta mais direta: somos primatas. Primatas superiores, mas ainda assim apenas mais um ramo na árvore da evolução, com um longo caminho pela frente, espero eu.

Como Charles Darwin escreveu, carregamos, todos nós, a humilde marca da nossa origem, e isto permanece uma verdade incontestável, quer gostemos ou não. As nossas glândulas supra-renais são demasiado grandes, os nossos lobos pré-frontais demasiado pequenos, e os nossos órgãos reprodutivos parecem ter sido construídos por um comité administrativo com objetivos claramente mal delineados.

Uma combinação que, sozinha ou em conjunto, levará certamente a alguma infelicidade, desordem e inevitável caos. Somos demasiado apaixonados por ideias, e normalmente só sabemos se são más ou boas quando já é tarde demais para refletir antes de agir.

Todos temos a habilidade de reconhecer padrões, e usamo-la desde o princípio em praticamente tudo. Em tudo o que nos rodeava, descobrimos uma maneira, subtil e automática, de construir realidades, à nossa medida, que nos ajudaram a compreender os vários ciclos da natureza, incluindo os nossos. 

Ajudou-nos a interpretá-los e a tirar ilações tão necessárias. E, permitiu-nos dar uma utilidade prática ao aparente caos à nossa volta. Aprendemos a construir a nossa realidade, que tem aquela tendência chata de ser um bocado diferente em cada um de nós.

Já houve uma altura em que a religião e a dimensão do sobrenatural poderiam ter tido uma palavra a dizer. Um género de filosofia insana, solipsista, carente, temente, ignorante, que tentou fornecer-nos as respostas que ninguém tinha, mas as quais todos ansiavam ter.

A doença e tudo o que assolava a humanidade, os fenómenos naturais, eventos geológicos, eventos humanos, políticos; tudo podia ser explicado recorrendo ao obscurantismo religioso. Não havia grande distinção entre a dimensão do sobrenatural e a realidade.

E, também, segundo estudiosos daqueles tempos mais antigos, se algumas pessoas morriam num povoado qualquer derivado a surtos de atacantes microscópicos, por exemplo, foi porque os judeus envenenaram os poços.

Quando uma catástrofe natural, como o terramoto que atingiu o Haiti em 2010, tira milhares de vidas, nós, ateus, entendemos que não se deve a qualquer interferência divina. Reconhecemos que vivemos num planeta ainda em fase de arrefecimento, e que atribuir tais eventos a uma causa sobrenatural não é boa ideia, no mínimo.

Atrevo-me a dizer, também, que culpar um evento natural na homossexualidade das pessoas não é só incrivelmente estúpido, como também se desvia descaradamente do tão amado conceito de livre arbítrio.

Considera isto: se Deus nos deu o livre arbítrio, não será matar-nos com catástrofes naturais uma violação dessa liberdade, mesmo que nos envolvamos em comportamentos pecaminosos? Se Deus está realmente a punir as pessoas causando tais mortes em massa, tem de haver algo extraordinariamente de errado com Ele.

Não concordas?

Outra pergunta, e esta eu fazia constantemente a mim próprio há umas décadas: será que o tão amado livre-arbítrio não perde o significado quando é dado? Quer dizer, “Deus, o Senhor dos Senhores, deu-me livre-arbítrio”. Detectam a ironia aqui, ou sou só eu?

Se Ele interfere, contradiz o pacto com a humanidade, destruindo qualquer noção de livre arbítrio. Como justificas então a morte de um recém-nascido às mãos de um dos seus pais? Ou a morte de um bebé sob os escombros de uma casa, após um terramoto? Se ainda consideras que estas tragédias são causadas pelos majestosos poderes de Deus, não terás tu também uma problemática a resolver na tua mente?

Usar Deus para explicar o mundo natural foi um dos grandes erros da humanidade. No entanto, seria arrogante da minha parte vilificar o desgraçado do Homo sapiens que nasceu com tudo contra ele. Sozinho, entregue às intempéries de um cosmos que nem sequer sabe que ele existe. Não quereria saber se deixasse de existir.

Contudo, já não vivemos na pura ignorância, e existem certas técnicas lógicas que nos fornecem as ferramentas de que necessitamos para nos protegermos das algemas mentais criadas por nós. Acredito que a religião seja apenas a principal dessas algemas.

A Navalha de Ockham, por exemplo, ajuda a libertar a mente para encontrar soluções reais para os verdadeiros problemas. Christopher Hitchens afirmava que este conceito filosófico era a morte da religião. Tendo a concordar.

Afirmar que Deus, ou a suposta imoralidade da sociedade, é a culpada por eventos naturais trágicos é apenas uma forma de ignorar as verdadeiras causas do sofrimento humano e animal, e permitir que persistam de formas cada vez mais variadas e, por sua vez, mais insidiosas.

Não há nada no mundo natural ou no nosso comportamento que exija uma explicação sobrenatural. Novamente: Deus é responsável por todo o mal, ou não é. Ele é indiferente ao nosso sofrimento, ou é a entidade mais sádica do cosmos.

A questão é que não tens de escolher entre nenhum destes extremos.

Pensa nisso.

30 de Julho, 2024 João Nascimento

Da Insanidade das Coisas

Image gerada com o Dall-E

Então, és uma cristã, ou um cristão conforme o caso, e és uma pessoa devota que vive de acordo com os mandamentos do Deus das escrituras. Quiçá grites em alto e bom som que tens uma relação pessoal com o teu Deus, com o teu Jesus, tão chegada, tão confortável. Afirmas ser isso que o diferencia de todas as outras religiões. Falsas religiões, dizes tu.

Alguma vez te perguntaste, no entanto, se estás de facto à altura do título de verdadeiro cristão, de verdadeiro fiel? Já te questionaste sobre o que realmente tens de acreditar, dizer e fazer para merecê-lo? Já leste as Bíblias de capa a capa? Alguma vez te debruçaste, de corpo e alma, sobre os escritos dos primeiros santos?

Se o tivesses feito, saberias que a moderação religiosa não passa de uma tendência moderna. Ser um cristão de cafeteria não é realmente o que se espera de ti na tua religião. No fundo, deves saber que tens de ser mais louco do que pensas para acreditar nas coisas ridículas que te foram ensinadas pela igreja. Pelos teus pares, pelos teus pais, pelos teus professores.

Sei, de igual forma, que estás ciente de que o compromisso exigido é muito maior, e as crenças muito mais radicais do que o que a sociedade moderna frequentemente apresenta.

Nos primeiros dias do Cristianismo, quando havia apenas algumas pessoas muito estranhas a auto-flagelar-se com talheres enferrujados, a passar fome voluntariamente porque era assim que Deus gostava, e a alucinar ao lado do fantasma de Jesus desde o amanhecer até ao cair da noite, este tipo de fanatismo não era propriamente assunto para conversas familiares à hora do jantar.

Muito pelo contrário, os primeiros cristãos eram desprezados e ridicularizados, usados como anedotas nos ensaios dos grandes pensadores do mundo clássico que tiveram a ousadia de sobreviver. Eles, os que outrora ensinaram o mundo, tiveram a audácia de olhar o verdadeiro mal nos olhos e publicamente ridicularizá-lo.

Estas pessoas, eventualmente, tornaram-se hooligans vorazes e verdadeiras ferramentas de opressão usadas para subjugar os seus semelhantes, percorrendo as ruas a conduzir inquisições sagradas em nome de um Deus que exige absolutamente tudo de ti, e nada te dá.

Pior, cria-te originalmente e inescapavelmente doente, e ordena-te que fiques bem.

Pergunta-te, agora, se o Cristianismo teria sobrevivido até hoje, pelo menos na sua forma atual, se não fossem os traços violentos e mentalmente perturbados daqueles primeiros cristãos, e considera a seguinte proposição:

Se não fossem as pessoas com real poder na altura, com dinheiro e verdadeira influência, a usarem os dotes daqueles primeiros devotos para intimidar, extorquir, invadir, destruir, matar, e conquistar – e a verem a verdadeira utilidade de um tipo de pensamento assim -, não existiria Cristianismo como o conheces, muito menos Catolicismo ou outra qualquer variante.

Antes desta mudança de paradigma, os primeiros cristãos eram apenas mais um grupo de tolos excêntricos e fanáticos a deambular pelas iluminadas cidades do mundo clássico.

Alguma vez ouviste falar de Pacómio? Este senhor construiu um dos primeiros mosteiros cristãos, e esta citação de Catherine Nixey no seu livro Heresia, acredito ser, entre muitas, a essência da Igreja Católica:

Um dos primeiros mosteiros cristãos tinha nascido — e começou a encher-se, rapidamente. Ano após ano, mais e mais homens cristãos (e, mais tarde, mulheres) reuniram-se em torno de Pacómio para dedicar as suas vidas ao trabalho e à oração. A sua vida era de rigor religioso regimentado. Como as regras bastante austeras do anjo ordenavam, cada homem deveria ‘rezar doze vezes por dia, doze vezes à noite, e na nona hora, três vezes’, num total de trinta e nove orações por dia. Tão poucas? Pacómio perguntou. É necessário, explicou o anjo, fazer concessões para os fracos. Aqueles que se juntaram a Pacómio — e, talvez surpreendentemente, muitos o fizeram — assumiram uma vida de austeridade notável. O descanso, a conversa e a liberdade individual foram todos reduzidos. Nas refeições, os monges comiam em silêncio; enquanto trabalhavam — cavando, talhando e tecendo cestos — recitavam versos bíblicos, para que as suas mentes não divagassem; quando dormiam, dormiam em cadeiras verticais feitas de tijolo, para que não se tornassem demasiado confortáveis. Todos eram atletas de austeridade, torturando-se nesta vida para que pudessem saborear a glória na próxima. E, no entanto, apesar das suas intenções divinas, é claro que, por vezes, uma discórdia demasiado humana ameaçava a paz. O primeiro rascunho das leis monásticas de Pacómio, entregue por aquele anjo, pinta uma imagem idealista da vida dos monges. Os homens de Pacómio deveriam, explicava o documento angelical, realizar os seus deveres abertamente e com ‘uma expressão radiante’. É uma imagem bonita.

A ilusão da religião moderada só aparenta ser real porque o pensamento religioso, este, ali acima naquela citação de Nixey, foi domesticado pela maior parte do mundo secular, esmagado pelo pensamento crítico e pela Filosofia, e quase vencido pela ciência. Este lado fofinho que a igreja ostenta hoje em dia, este andar de pantufas, de fininho, é uma mera máscara, e sendo que deviam defender a verdade em qualquer circunstância, evidência da sua cobardia.

A verdade para mim importa.

Seria imprudente esquecermos quando a igreja católica, o Vaticano, os padres e as freiras, e todos os membros de todos os cleros, de todas as religiões do mundo alguma vez já inventadas pela mente humana, tinham realmente o poder. Eles afirmavam responder somente perante Deus, sem humanos como pares, sem autoridade senão a do altíssimo.

Esta mensagem nunca mudou, nunca irá mudar, só irá moldar-se, adaptar-se, e colar-se ao paradigma social, corrompendo-o para além do compreensível, normalizando-o.

Nisto, toda a religião tem a sua culpa, à sua especial maneira, não ficando só para a católica o prémio de maior cretina dos milénios já vividos. A religião deturpa as relações humanas, envenenando-as e à nossa integridade ao mais alto nível; quebra-a, espezinha-a, e transforma-a em algo odioso, agressivo, solipsista, carente, infantil, malicioso, invejoso, e capaz de tudo para marcar a sua posição.

Um dos primeiros exercícios mentais que fiz em criança, sendo doutrinado no Catolicismo, foi perguntar repetidamente a mim mesmo se eu também deveria ter o QI de um bocado de granito, ou se todos aqueles adultos estavam enganados, ou a mentir-me e a eles próprios. Não conseguia reconciliar isto de forma positiva e tornei-me agnóstico muito cedo na minha vida.

Agora sou um humanista secular, e um infiel, um descrente, um ateu. Apenas mais um sapiens entregue às intempéries do cosmos, e como diria Christopher Hitchens, somente um primata, a meio cromossoma de distância de ser um chimpanzé.

Eu não tenho vergonha do passado da minha fraternidade. E tu, fiel, consegues dizer o mesmo?