Loading

João Monteiro

8 de Dezembro, 2024 João Monteiro

Guy de Poças Falcão

Acabámos de tomar conhecimento, com tristeza, do falecimento do nosso associado Guy Alberto Fernandes de Poças Falcão.

A nível profissional, Guy era licenciado em Economia, pela Faculdade de Economia do Porto e exercia como Revisor Oficial de Contas (ROC) desde 1973. Exerceu a atividade de economista em regime liberal, foi professor assistente na Faculdade de Economia do Porto, consultor económico de empresas, ROC suplente na Portugal Ventures, entre outras atividades. Para além de ter sido membro da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, foi também um dos seus pioneiros e fundadores.

Em nome da Associação Ateísta Portuguesa, gostaria de deixar um abraço sentido, neste momento de pesar, aos seus familiares, amigos e colegas que com ele privaram de perto.

Para quem estiver no Norte do país, e se quiser juntar para uma última despedida, informamos que as cerimónias fúnebres decorrerão domingo, 08 dez, das 15h às 20h, e segunda-feira, 09 dez, das 12h às 17h, no Tanatório de Paranhos, Rua Dr. Roberto Frias, Porto, seguindo-se a cremação.

27 de Novembro, 2024 João Monteiro

Poesia de António Gedeão – Filosofia

Talvez entre os poemas mais conhecidos de António Gedeão se encontre a “Pedra Filosofal”, publicado no livro “Movimento Perpétuo”, em 1956. O poema viria a ser musicado anos mais tarde por Manuel Freire e, posteriormente, cantado por grandes nomes da música portuguesa e também pelas tunas académicas. Por ter sido inicialmente cantado na televisão, fez com que se tornasse ainda mais conhecido do grande público e de várias gerações. Hoje é quase um lugar-comum dizer que o “sonho comanda a vida”, aludindo à última estrofe do poema.

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara graga, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão (1956)

26 de Novembro, 2024 João Monteiro

Poesia de António Gedeão – Química

Continuando na senda de homenagens ao professor e divulgador de ciência Rómulo de Carvalho, hoje trago um poema de António Gedeão, pseudónimo com que assinava as suas obras poéticas. Um dos poemas que mais admiro é “Lágrima de Preta”, pela capacidade de entrelaçar com mestria a química com os princípios da igualdade e do humanismo. Este é, pois, um poema anti-ódio, anti-preconceito e anti-racismo. Um poema que merece ser recordado e divulgado nos dias conturbados de intolerância que vivemos.

Este poema encontra-se no livro “Máquina de Fogo”, publicado em 1961.

Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão

24 de Novembro, 2024 João Monteiro

Dia Nacional da Cultura Científica

Imagem do website Página a Página

Assinala-se hoje, dia 24 de novembro, o Dia Nacional da Cultura Científica. Esta efeméride calha na data de nascimento de Rómulo de Carvalho, personalidade que se quis celebrar por ter sido um professor de ciências físico-químicas, pedagogo, divulgador de ciência e da história da ciência. Para além de autor de vários livros onde pretendeu disseminar o conhecimento científico, foi também poeta sob o pseudónimo de António Gedeão – destaques para as obras “Movimento Perpétuo” (1956) e “Máquina de Fogo” (1961). Também na sua poesia, a ciência e a filosofia estavam presentes.

Esta efeméride foi instituída em 1996 por José Mariano Gago, Ministro da Ciência e Tecnologia à época.

Atendendo aos importantes contributos dados para a promoção da cultura científica, foi agraciado com prémios e condecorações, alguns já a título póstumo.  O seu nome (tanto o homónimo, como o pseudónimo) ficou para a posterioridade em ruas, escolas e num Centro de Ciência Viva em Coimbra.

Também a AAP pretende homenagear este homem das ciências e, por isso, o tema da Tertúlia Livre-Pensar deste mês será a ele dedicado. Caso queiram conversar sobre este tema, inscrevam-se no website da AAP para participar. Será no sábado, 30 de novembro de 2024, às 10h.

29 de Julho, 2024 João Monteiro

Livro: “O universo das seitas destrutivas”

Foi recentemente publicado o livro intitulado “O universo das seitas destrutivas: descubra o mundo secreto do engano, da manipulação e do controlo mental”, pela Arena, uma chancela da Penguin Random House. O autor é António Madaleno, que regressa ao tema das seitas depois da publicação, em 2020, do livro “Apóstata! Porque abandonei as testemunhas de Jeová”.

O livro está dividido em 10 capítulos:

Prefácio
Introdução

1- Estou numa religião ou numa seita destrutiva?
2- A psicologia das seitas destrutivas: compreendendo o apelo e as tácticas usadas.
3- A nova personalidade criada à imagem do líder e do grupo.
4- Porque é tão difícil para alguém reconhecer que está numa seita destrutiva?
5- Sinais de alerta: como reconhecer um grupo potencialmente nocivo.
6- Liberte-se! Estratégias para deixar uma seita destrutiva e começar uma nova vida.
7- Supere o trauma! Como curar-se do abuso emocional e psicológico.
8- Como reconstruir um sentido de identidade e comunidade após deixar o grupo.
9- Como ajudar um ente querido que está envolvido com uma seita destrutiva.
10- Prevenção: educar a sociedade sobre os perigos das seitas destrutivas e grupos de alto controlo.

Conclusão
Posfácio
Agradecimentos
Notas finais
Bibliografia
Apêndice (entrevistas e recursos)

António Madaleno tem sido bastante ativo nos últimos anos a sensibilizar o público para o que designa de seitas destrutivas e grupos de alto controlo. Salienta que apesar da maioria das seitas serem de cariz religioso, há outras instituições que têm o mesmo tipo de características e de comportamento, e que se podem encontrar no meio empresarial, profissional, político ou até familiar.

O autor consegue apresentar definições claras dos conceitos que apresenta, e acompanhá-las de exemplos que ilustram a sua ideia. Longe de ser um trabalho teórico, este livro é um manual prático que ajuda qualquer um de nós a identificar uma seita destrutiva ou um grupo de alto controlo, a tentar compreender o que leva uma pessoa a ser aliciada por tal grupo, e apresenta sugestões de como atuar caso um familiar ou amigo tenha passado a integrar um desses grupos.

Nesse livro, o autor demonstra uma enorme empatia, posicionando-se no apoio à vítima e às pessoas que a rodeiam, e nunca fazendo críticas ou juízos de valores. O facto de ter feito parte de uma seita, com o desempenho de funções hierárquicas, e de se ter conseguido libertar dela, decerto que contribuiu para esta sua capacidade de compreender quem está do outro lado.

Este é um livro útil para quem está numa seita, para quem esteve, ou para quem conhece alguém que esteja, de modo a conseguir reconhecer e ajudar a abandonar esses grupos de alto controlo. Aqueles que nunca passaram por nenhuma dessas experiências, também poderão ficar aqui a conhecer alguns sinais e características desses grupos, de modo a reconhecerem a sua presença na eventualidade de se cruzarem com algumas dessas situações no futuro. É também um livro de grande utilidade para psicólogos e terapeutas que já se cruzaram ou venham a cruzar com pacientes que estiveram envolvidos nestes grupos.

Dada a pertinência, este livro deveria ser lido por um número grande de pessoas, e o tema deveria ser alvo de debate público na sociedade. Felizmente, tem tido muito mediatismo (tanto na televisão, como na rádio, ou ainda em podcasts) e tem recebido o apoio de psicólogos, psicólogos sociais, psicólogos clínicos, investigadores na área da psicologoa, psiquiatras e outros profissionais.

Fica a sugestão para mais uma leitura de férias.

17 de Abril, 2024 João Monteiro

Dinossauros cristãos

Nota: Texto da autoria de Daniel Ramalho.

Em 1890, na sua obra Princípios da Psicologia, o psicólogo Americano William James escreveu: ‘A melhor maneira de entender a natureza humana é estudá-la nas suas expressões mais extremas.’ Doze anos mais tarde, na compilação de 20 palestras dadas na Universidade de Edimburgo intitulada Variedades da Experiência Religiosa, viria a reafirmar esse princípio fundamental do seu pensamento relativamente à nossa compreensão da espiritualidade nas suas várias formas. Nessa obra, William James explorou as expressões mais extremas da experiência religiosa (incluindo o êxtase, a santidade, a conversão, e a culpa perante Deus) como forma de compreender o que é a vivência normal do comum religioso.

Sendo um princípio manifestamente tão útil e fértil, dei por mim a aplicá-lo espontaneamente no meu estudo do extremo representado pela tribo Pirahã, que existe em quase total reclusão no Amazonas. É uma tribo actualmente com pouco menos de 500 indivíduos e que teria permanecido em total obscuridade não fosse o facto de a sua língua ser a única restante no mundo da família a que pertence, e de causar em igual medida fascínio e dores de cabeça a filósofos e linguistas desde os anos 70, período em começou a ser estudada. Alguns aspectos da sua língua são simplesmente alienígenas para nós, como por exemplo o facto de terem uma consoante apenas usada por homens, e não terem termos fixos para números nem cores, mas apenas expressões aproximadas para ambos (i.e. não têm “um” e “dois,” mas “pouco” e muito,” e não têm terminologia cromática abstracta para além de “claro” e “escuro,” ou apontar para uma cor presente diante dos interlocutores).

Outras das suas peculiariedades são-nos sintacticamente incompreensíveis, como não terem recursividade (i.e. há um limite para o tamanho das frases que podem ser gramaticalmente formadas), nem terem cláusulas subordinadas (i.e. em lugar de dizerem “gostava de comer aquilo que estás a comer,” dizem “estás a comer, quero comer também.” Outros aspectos da sua cultura ligados à língua são considerados talvez primitivos por nós. Por exemplo, a língua dos Pirahã tem partículas gramaticais que ligam cada nome comum ao presente imediato, pelo que não têm história para além daquela que pode ter atestada por pessoas vivas. Por esse motivo, não têm contos de fadas para contar às suas crianças, não têm mitos de criação e, mais relevante para este fórum, não têm qualquer crença num Criador omnipotente. Acreditam em entidades sobrenaturais, mas apenas aquelas que conseguem ver nas diversas encarnações da Natureza, seja nas sombras e ilusões ópticas que esta cria.

 Faço referência a esta cultura tão extrema relativamente à nossa no mesmo sentido de William James pelo modo como permite iluminar a nossa própria normalidade, que à luz dessa comparação não será, como pretendo demonstrar, menos extrema do que a normalidade Pirahã.

Os Pirahã não têm palavras para graus de parentesco mais remotos do que dos avós. Isto acontece porque dada a longevidade média dos seus membros, não têm em geral experiência imediata de bisavós, e como vimos, nada fora da sua experiência imediata tem existência para eles. Isto parece a nativos da nossa civilização a epítome da miopia histórica. Contudo, todo este intróito teve como objectivo demonstrar que as limitações impostas à percepção temporal dos Pirahã não são diferentes em certo sentido às que foram impostas pelo Cristianismo à civilização Ocidental.

O debate contínuo entre cristãos e ateus baseia-se em grande medida na distância cronológica que nos separa de Jesus, por ser demasiado extensa para que possa garantir qualquer certeza relativa aos seus supostos feitos. O dia-a-dia de ambos é medido nessa mesma escala, e pensamos em 2024 anos como uma quantidade de tempo enorme por usarmos a mesma referência temporal, quer sejamos crentes quer não. Esta referência é tão universalmente aceite como “a medida do homem” que mesmo os ateus usam como argumento comum relativamente às afirmações cristãs as semelhanças entre as afirmações de fé do Cristianismo e as daquelas muito mais “remotas,” quanto as de Platão 350 anos antes, de Buda 550 anos antes, ou dos Egípcios mil anos antes. Estas medidas de tempo são consideradas gigantescas. Poderíamos dizer que assim é pelo tempo médio da vida humana ser tão curto, mas se assim fosse seria arbitrário dizer 2000 anos, ou 3000, ou 7000, ou 10.000, por excederem esse tempo de forma tão extrema. O tempo bíblico em geral e o início do Cristianismo em particular parece ser de facto para todos nós, crentes e ateus, um ponto de referência fundamental, que determina a medida do tempo que os Pirahã diriam na sua linguagem anumérica ser “pequeno” ou “grande.”

Talvez em nenhum outro campo isto seja mais evidente do que na arte. Pensemos em qualquer dos grandes artistas universais, mesmo anteriores ao Cristianismo. Qual deles dedicou o seu génio a representar algo anterior ao tempo bíblico, ou na Antiguidade a deuses ou demiurgos que não fossem antropomórficos de algum modo, ou a qualquer forma de eternidade que não seja em certa medida sobrenatural? Quem procurou extirpar da sua criação artística toda a linguagem religiosa para procurar representar o tempo na sua inimaginável magnitude e sublime magnificência de formas e beleza que engendrou? É certo que isto seria difícil de concretizar antes de Darwin, mas não teria um Darwin surgido séculos antes se o tempo “A.D” “D.C.” não fosse “normal”? Não teria o mundo natural sido dignificado como merece na produção pictórica e escultórica? Todos conhecemos o famoso fresco da Capela Sistina intitulado a Criação de Adão. Muitos dirão que sem religião, a Humanidade teria perdido esta imortal obra de arte e nada teria preenchido o seu vazio. Mas que teria Michelangelo ou um génio do seu calibre produzido se tivesse tido acesso à total dimensão da pré-História? Na imagem acima deste texto vemos um fóssil de um Psitacossauro a ser atacado por um Repenomamus, um pequeno mamífero do Cretáceo. Que metáfora melhor poderia haver para o erguer dos mamíferos do que esta imagem – real, não imaginária –, de um humilde mamífero, nosso “Adão,” a atacar e a devorar um representante da espécie dominante do planeta da altura, um dinossauro? Seria uma escultura destas inferior à de David antes de enfrentar Golias, menos rica na sua simbologia? Não. Apenas estamos limitados pelo facto de considerarmos 2000 anos uma quantidade de tempo extrema, além da qual nada pode ser de alguma forma ligado a nós enquanto humanos feitos à imagem de Deus. Não podemos nesse enquadramento considerar algo emoldurado em cinza vulcânica há 125 milhões de anos com metáfora de nós, ou algo digno de reflexão quiçá espiritual. Mesmo esquivando milhões de anos desde esse tempo, fomos incapazes de pensar em termos artísticos nos vários encontros que terão acontecido entre as várias espécies humanas que existiram muito antes de termos sido a única que sobrou. Ou na honra que deveria ter sido feita aos primeiros artistas que se dedicaram a pintar paredes de pedra num momento em que, ao contrário de qualquer artista conhecido depois deles, não estavam no topo da cadeia alimentar e no entanto decidiram dedicaram tempo da sua curtíssima vida a imortalizar uma imagem das suas vidas apenas por ser bela.

Que Capelas Sistinas do Paleozóico poderíamos ter tido sem o grilhão da temporalidade cristã? Que Capitólios do Triássico? Que frescos do apocalipse da grande extinção Permo-Triássica? Que Pietàs dos grandes líderes do planeta, os dinossauros, no dia do impacto desse asteróide que foi, enquanto mamíferos, o nosso verdadeiro Salvador? Que histórias a enfatizar que vivemos na Terra uns meros 0.09% do tempo que os grandes répteis reinaram? Onde estão os grandes murais a representar as nebulosas que originaram a nossa galáxia? Quem esculpiu o momento da morte do último Neaderthal? Quem honrou o enorme sacrifício dos nossos antepassados, anatomicamente e intelectualmente nossos pares, que sofreram de forma inimaginável para morrerem aos 20 anos, mas que procriaram a tempo de serem antepassados de todos nós? Quem escreveu o épico dos mamíferos do Paleoceno, a ode aos triápsidos, a epopeia dos Ardipithecus, o soneto ao primeiro anfíbio? Ninguém, porque tudo o que se passou antes de nós aconteceu há demasiado tempo, há mais de 2000 anos. É compreensível: essa escala de tempo não é só facilmente envolta para pelas nossas mentes espartilhadas, mas ajuda-nos a lembrar de que tudo antes dessa época, todos os milhares de milhões de anos e quintiliões de formas de vida que viveram e morreram nesse longo entretanto, foram apenas prolegómenos ao tempo abraâmico. E até para ateus isto parece natural.

Em 1978, o psicoanalista francês Dominique Laporte escreveu uma breve mas genial obra intitulada sem pudores História da Merda. No centro de gravidade entre a seriedade e a sátira, Laporte afirma peremptoriamente que o momento crucial da história da Humanidade foi nada menos que a invenção da sanita. Isto porque todas as outras espécies do planeta convivem com as suas próprias excreções corporais, urina e fezes, e estas humilhantes provas da sua fisicalidade e mortalidade fazem parte do seu mundo. Apenas para os humanos há a possibilidade de carregarem no botão do autoclismo e verem num instante estas lembranças de que a nutrição não é apenas um prazer desaparecerem da sua vista para sempre, como se se transportassem para um plano etéreo. Diz Laporte que a partir desta gloriosa invenção, o humano pôde considerar-se verdadeiramente um ente divino, acima de qualquer outra criatura, porque na verdade já não excreta senão durante breves segundos. Apenas se alimenta, e num piscar de olhos todo o sub-produto da sua digestão e função renal desaparece como que por milagre. O Cristianismo, de certa forma, fez o mesmo relativamente a todo o tempo pretérito a si próprio. Puxou o autoclismo da pré-História e assim criou o mito de que apenas o homem pós-Bíblia existe – mesmo para aqueles que se dedicam a criticar a Bíblia. Tudo o resto, aquilo que foi animal e repugnante, como peixes, anfíbios, répteis, mamíferos, e hominídeos, desapareceu debaixo do turbilhão sugador das águas da Bíblia sobre as quais pudemos então todos andar como Jesus andou.

Numa prateleira da minha biblioteca pessoal mantenho um fóssil de uma trilobite. Este singelo artrópode que agora ali existe ladeado de autores clássicos morreu talvez há 300 milhões de anos. Mantenho-o lá para me lembrar constantemente que toda a sabedoria dos autores que venero e cuja sabedoria me alimenta diariamente não passa de um grão de pó num enorme edifício cujas forma e dimensão somos incapazes de imaginar. Para que não me encontre um dia a rodopiar no puxar do autoclismo que foi talvez o maior sucesso da história do Cristianismo. Para me lembrar de que os “primitivos” Pirahã, que não têm palavra para “bisavós,” não são tão diferentes de nós quando consideramos que só temos a palavra “antepassado” para nomear toda a enorme variedade de humanos – melhor dizendo, pessoas – de outras espécies, que nos deixaram em legado quem somos hoje. Para que esses homens e mulheres extintos não seja nunca, jamais, aos meus olhos, dinossauros cristãos.

31 de Janeiro, 2024 João Monteiro

Pedir perdão

Em 2016 o presidente dos EUA, Barack Obama, visitou Hiroshima. Foi a primeira visita de um presidente norte-americano ao Japão depois da Segunda Grande Guerra (durante a qual, em 6 de Agosto de 1945, os EUA lançaram uma bomba atómica sobre Hiroshima destruindo a cidade e matando, instantâneamente, mais de 70.000 pessoas. Destruição atómica que se repetiu dias depois, em Nagasaki, causando mais de 60.000 mortos).

Estranhou-se que Obama não pedisse desculpa pelo facto de os EUA terem enlutado o Japão. Perguntado pelos jornalistas se pedia perdão ao Japão, Barack Obama respondeu que o objectivo daquela sua visita era “honrar todos os que morreram na Segunda Grande Guerra Mundial”.

Era aqui que eu queria chegar para dizer que pedir perdão por actos cometidos no percurso da História, se pode parecer um acto de contrição com alguma positividade pelo arrependimento demonstrado, já não me parece ter cabimento quando não passa de “uma acção puramente teatral”… e, no caso, também sem ressarcir o Japão pelos actos cometidos há mais de 70 anos… o que seria mais do que “teatro”… seria “fita”!

Também seria um pedido hipócrita, já que os actos bélicos dos EUA continuaram a ser praticados provocando sofrimento nas populações, como a História regista!

Os pedidos de perdão não eliminam os males provocados. O que é preciso é que aprendamos com a História e tenhamos inteligência e sensibilidade suficientes para não repetirmos tantos erros através do percurso que fazemos pelo mundo, escrevendo uma História da Humanidade nada dignificante.

Também a Igreja Católica, no seu Jubileu do ano 2000, pela voz do Papa João Paulo II, dirigiu dezenas de pedidos de perdão (a Deus!… Não à memória dos ofendidos!) dos quais destacarei uns poucos, respigados da imprensa da época: “pelos males provocados pela Igreja aos Judeus por parte do Papa Pio XII; pelo anti-semitismo no tempo de Mussolini; por todos os crimes cometidos pela Inquisição; por todas as vítimas abandonadas pela Igreja; pelos actos praticados pelo Vaticano contra os cientistas; por queimar vivos Giordano Bruno e João Hus; pelas divisões no seio das várias sensibilidades cristãs; pelas repressões aos Protestantes e Ortodoxos; pelos pecados cometidos contra o amor, a paz e os direitos dos povos, e pelos pecados cometidos com as mulheres, os pobres e os marginalizados; e, até, pela inoperância da Igreja perante o Ateísmo” (!). 

A Igreja Espanhola pediu perdão pela atitude nada evangélica demonstrada perante os elementos da ETA, e a Igreja da Argentina pediu perdão pelos pecados por ela cometidos durante a ditadura do general Videla. (Curiosamente a Igreja Católica Portuguesa não pediu perdão algum!… Nem, sequer, pelo mal que fez ao poeta Bocage).

Desde o início de 2000 até Junho de 2001, contabilizei 94 pedidos de perdão. E numa cerimónia litúrgica celebrada no Vaticano, o Papa pediu perdão pela soma de todos os pecados.

Pedidos de perdão que me parecem patéticos!

A Igreja, que se considera modelo moral, não devia tê-los cometido… mas cometeu-os! São factos históricos que o perdão panfletário não elimina. 

O importante é termos consciência do mal cometido e emendarmos procedimentos para que não tornemos a cometê-los.

Se assim se fizer, jamais haverá necessidade de se pedir perdão, vivendo-se em paz e de consciência tranquila.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

30 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O DEUS ANÓNIMO

De Jesus a Shakespeare

O seguinte texto é da autoria de Daniel Ramalho

Mesmo sem saber quem está neste momento a ler estas linhas, arrisco afirmar que é nelas que lerá pela primeira vez o nome de Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney. Digo-o com quase absoluta certeza porque o seu anonimato chega ao ponto de o dia do seu aniversário, 3 de Fevereiro, ser conhecido como “Nobody’s Day” – o dia em que por algum inexplicável desígnio do destino alegadamente nenhuma personagem histórica de relevo nasceu.

Que é uma injustiça relegar de Volney à vala comum da História é facilmente justificável. Os seus contributos como arabista, filósofo e político (nomeadamente pelo seu envolvimento na Revolução Francesa) são demasiados em número e interesse para que procure aqui resumi-los. Direi apenas que não será tempo perdido pesquisá-los. Contudo, refiro-o aqui em particular à sua magistral obra As Ruínas, ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios (1817), por ter sido a primeira a popularizar muitos dos argumentos mais comuns no arsenal argumentativo daqueles que defendem a teoria do “Mito de Cristo.”  Apesar de então ter inaugurado a dúvida sobre a existência do Jesus histórico, de Volney foi sem dúvida o mais importante dos seus divulgadores entre a intelligentsia iluminista, em particular após o referido livro ter sido traduzido para Inglês por Thomas Jefferson, seu amigo próximo. Poucos sabem que de Volney existiu, mas o problema histórico e teológico que nos deixou em legado é hoje, em grande medida graças a si, lugar-comum.

A teoria do mito de Cristo foi amplamente discutida nos últimos dois séculos e não é minha intenção abordá-la aqui, mesmo porque a posição de que o Jesus histórico existiu é quase consensual entre historiadores. Mais do que a questão em si, interessa-me como é possível que tenha surgido – ou por outras palavras, como pode ser que não saibamos com absoluta certeza se a personagem mais importante da História é ou não fictícia. A forma mais simples de um cristão responder a estas objecções consiste em apontar para o facto de se tratar de alguém que viveu há 2000 anos, numa sociedade predominantemente analfabeta e antes de haver imprensa, e que este abismo cronológico faz com que seja fácil para os cépticos questionar se estas figuras tão distantes no tempo chegaram a nascer (como acontece, por exemplo, com o ainda mais remoto Sócrates).

Será então que a distância temporal justifica duvidar da existência de Jesus, e que se estivéssemos apenas mais perto do tempo e espaço em que ele viveu teríamos dados suficientes (orais e escritos) para saber sem sombra de dúvidas que ele de facto existiu e que fez milagres? Será por miopia histórica que não vemos o que é evidente para todo o cristão?

Não, e sabemos que assim é pelo exemplo de uma outra figura central da história ocidental historicamente muito mais próxima de nós. Refiro-me ao caso de William Shakespeare.

O culto de Shakespeare atingiu ao longo dos séculos proporções tão desmesuradas que George Bernard Shaw sentiu necessidade de criar uma designação para quem padece dessa condição clínica: “bardólatra” – da qual me confesso paciente crónico. Quase dois milénios passaram até que alguém pusesse em causa a existência do Jesus histórico. Com Shakespeare, apesar de ter vivido na Inglaterra isabelina que era obcecada com registos de toda a espécie, foi preciso apenas um século. O espraiar da bardolatria pela Europa foi acompanhado por uma crescente desconfiança sobre quem seria realmente o mítico “Bardo.” Ninguém questiona que alguém chamado Shakespeare existiu entre 1654 e 1616.  Poucas certezas há sobre o homem – alguns até questionam que tenha sido um homem –, mas entre elas estão a de que era actor, filho de um luveiro (provavelmente analfabeto), que não deixou indicação de ter viajado para lá de Londres, que saiu da escola aos 15 anos, e que nunca frequentou uma universidade. Destas certezas uma outra foi extraída por vários ao longo da História: a de que este retrato simplesmente não pode ser o do autor do corpo literário 100.000 palavras mais longo que a Bíblia do King James, e que Harold Bloom designou de “bíblia secular.” Além disso, de todas essas incontáveis palavras que escreveu – muitas das quais cunhadas por si, entre as quais a palavra “incontável” – apenas seis nos chegaram escritas à mão: todas elas assinaturas, de autenticidade duvidosa, e todas escritas de forma diferente (nenhuma delas “Shakespeare” como escrevemos hoje).

Os que não acreditam que o Shakespeare de Stratford-upon-Avon foi o autor da obra que lhe é atribuída consideram que está provado de forma decisiva que o autor foi outro, muito provavelmente Edward de Vre, Conde de Oxford – de onde deriva a designação de “Oxfordianos” atribuída a quem defende esta hipótese. Foram várias as celebridades ao longo do tempo que se incluíram no número dos Oxfordianos, como Sigmund Freud, Henry James, Walt Whitman, William James, Ralph Waldo Emerson, Mark Twain, Orson Wells, Charlie Chaplin, e muitos outros. Diana Price, uma das mais famosas Oxfordianas da actualidade, afirma que “se escrever peças fosse crime, não haveria provas suficientes para condenar Shakespeare em tribunal.” Alexander Waugh, outro anti-Stratfordiano contemporâneo, está convicto de que uma enorme conspiração foi engendrada para proteger a identidade de Edward de Vere, verdadeiro autor da obra “Shakespereana,” com pistas espalhadas aqui e ali que uma vez identificadas provam sem margem para dúvidas que o Shakespeare histórico não foi mais do que um actor e astuto homem de negócios que provavelmente nunca escreveu uma linha na vida por nunca ter aprendido sequer a escrever. Há aqui um interessante paralelismo com o conde de Volney, que propôs a hipótese de ter havido uma obscura figura histórica correspondente a Jesus transubstanciada em Cristo pela religião até pouco ou nada restar da pessoa que realmente existiu.

Mas o paralelo vai mais longe do que isso. Tal como especialistas em crítica textual procuram extrair dados sobre o Jesus histórico dos Evangelhos, também os bardólatras fazem o mesmo com a obra de Shakespeare. A cena do festival da tosquia na peça As You Like It leva os Stratfordianos a crer que o Shakespeare de origens humildes e poucos estudos foi de facto o autor, pois um aristocrata nunca saberia tanto sobre um festival de camponeses. Um outro bardólatra foi a todos os locais de Itália referidos por Shakespeare nas suas peças e concluiu que as descrições feitas dos mesmos só poderiam ter sido escritas por quem tenha lá estado, o que reforça a posição Oxfordiana porque Shakespeare, que se saiba, nunca saiu das fronteiras britânicas.

E há ainda dilemas textuais, como acontece com a Bíblia. Por exemplo, no final da peça King Lear encontram-se em diálogo Edgar e Albany, dois candidatos à coroa, nenhum dos quais a quer. Tradicionalmente, no teatro isabelino e jacobino, as palavras que concluem a peça são proferidas por quem fica no poder. Nos últimos versos do King Lear, um destes dois acaba por ter de aceitar ser rei, mas numa edição (1623) quem o faz é Edgar, e noutra (1632) é Albany. Ora, Albany é o legítimo sucessor, pelo que a mensagem de Shakespeare é diferente consoante quem ascende ao poder no final. E apesar dos rios de tinta que correram sobre a questão, a verdade é que não se sabe. Stephen Greenblatt, um famoso estudioso de Shakespeare da actualidade, diz sobre esta questão que provavelmente nem Shakespeare sabia qual das personagens devia ascender ao trono no final, e que a indeterminação em que nos vemos hoje a esse respeito é tão nossa quanto foi dele.

Ou seja, tanto no caso de Jesus quanto no de Shakespeare, temos uma personalidade histórica que sabemos ter existido mas que é identificada pela tradição com uma personagem rodeada de uma aura de divindade de tal modo ofuscante que não conseguimos perceber se são ou não a mesma pessoa. E este é o ponto para o qual pretendo chamar a atenção. Estando nós na posse quando um milhão de palavras na “voz” de um autor, atribuídas a uma personalidade que sabemos sem sombra de dúvida ter existido, separada de nós por uns meros 400 anos, ainda assim não nos livramos de uma “dúvida razoável” relativamente à sua identidade igual à da do Jesus Cristo dos Evangelhos. Em ambos os casos a dúvida é suscitada pelo carácter “sobrenatural” dos textos que nos chegaram dessas figuras, com a diferença de que no caso de Shakespeare o texto na origem da discussão não lhe atribui milagres mas é em si o milagre que lhe é atribuído.

A hipótese Oxfordiana mais popular aponta, como referido, para uma conspiração que alegadamente visou escudar a real identidade do autor dos textos “Shakespereanos.” Autores como Bart Ehrman defendem algo semelhante em relação a Jesus, i.e. que foi um profeta apocalíptico falhado, cuja mensagem os discípulos desiludidos alteraram para justificar o facto inesperado e traumático de verem crucificado aquele que esperavam vir a ser seu rei terreno, tornando o seu reino sobrenatural. É verdade que houve uma “conspiração” nos casos de Shakespeare e de Jesus? Não sabemos. Apenas sabemos que qualquer medida de tempo tem solo fértil que chegue para a teoria da conspiração germinar.

Então, se a dúvida relativa à identidade de uma figura considerada sobre-humana pode surgir com a mesma pertinência em relação a alguém nascido há 2000 anos e há 400 anos, poderia surgir relativamente a alguém que morreu ontem? Estamos convictos de que os registos audiovisuais que conseguimos captar hoje protegem a identidade histórica dos nossos génios, mas se Shakespeare tivesse morrido ontem, após receber o Nobel da Literatura e três ou quatro Óscares, e com infindáveis entrevistas gravadas ao vivo em programas televisivos e podcasts, seria impensável que a questão da autoria das suas peças se tornasse tópico de debate no ano 2424? Seria impossível que uma franja de intelectuais desconfiados atribuísse a sua fama literária à inteligência artificial, ou a uma conspiração de autores, ou a outra coisa qualquer, de forma plausível?

Caso a resposta seja “não,” o mesmo pensamento é aplicável com igual propriedade a Jesus. Estaríamos em melhor posição para julgar a veracidade dos eventos relatados nos Evangelhos se Jesus tivesse morrido há 400 anos? Ou em Inglaterra no século XVII? Ou ontem? Talvez. Afinal, temos câmaras e microfones. Mas poderia essa certeza manter-se incólume historicamente? O caso de Shakespeare indica que não. Mais século menos século, a dúvida razoável surgirá nas franjas académicas e a posição céptica deixaria de ser absurda. O tempo acumula-se nas figuras que endeusamos como um sarcófago, até que finalmente dos lábios dourados alguém ouve as famosas palavras de Iago: “I am not what I am.”

Se de facto assim for, se o milagre for sempre mais absurdo do que a conspiração independentemente do registo histórico, se a existência do Cristo bíblico não fosse mais certa hoje tivesse ele sido contemporâneo de William Shakespeare, é tarefa de todo o céptico responder à questão a que assim fica exposto perante o Cristianismo: “Ateu, que Evangelho, ainda que em formato audiovisual, te converteria?”

21 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo!

Neste texto, Daniel Ramalho explica as motivações que levaram a que diminuísse o tempo dedicado a escrever sobre ateísmo.

Escrevi sobre ateísmo com frequência e de forma disseminada durante mais de metade da minha vida, de tal modo que muitos dos meus conhecidos (em particular nas redes sociais) pouco mais conhecem de mim para além dessa faceta. Há relativamente pouco tempo, e quase de repente, parei, o que levou a que alguns desses conhecidos me perguntassem porquê. A esses, aqui deixo a minha resposta.

Não foi por ter passado a achar que é tempo perdido argumentar com fanáticos que me calei, nem por ter deixado de considerar o tema importante ou interessante, nem por me ter convertido. Apenas cheguei à conclusão de que o ateísmo está finalmente completo. Quero com isto dizer que chegámos a um ponto em que não já existe argumento teológico algum que não tenha um contra-argumento demolidor. Por não ser um sistema de crenças independente, o ateísmo precisa da vitalidade da religião para sobreviver, e há já muito tempo que não surge um argumento teológico com pretensão de originalidade que dê aos ateus alguma coisa que fazer. Houve tentativas como a do Plantinga, mas tão exangues e fáceis de rebater que podem ser consideradas nados-mortos. A religião chegou ao limite do que pode dizer em sua defesa, e já não pode haver dúvida razoável que faça pender o fiel da razão a seu favor.

O ateísmo chegou à sua última página. Nada do que possa ser dito daqui em diante em resposta aos velhos argumentos teológicos mesmo dos mais sofisticados católicos (que sempre gostaram de se considerar mais espertos do que a concorrência) poderá ser mais do que a repetição de um argumento também ele já vetusto ao qual nada de importante precisa de ser acrescentado para que seja fatal. Tanto do lado da física, cosmologia, biologia, geologia, etc., quanto da história, antropologia, filosofia moral e crítica textual, todos os “bolsos de ignorância” onde se poderia adivinhar a presença de um deus foram ou iluminados para se revelarem vazios, ou se verificou que enfiar lá deus apenas multiplicaria os problemas. Chegámos a um ponto em que os nossos melhores teólogos (e note-se que a completude do ateísmo implica o fim da teologia) não têm como discordar de grande parte da argumentação avassaladora com que agora se deparam. Resta-lhes refugiarem-se nos únicos dois redutos em que tal ainda é possível: ou na fé esvaziada de razão que se assume como tal, ou na deprimente afirmação de que o valor cultural e utilidade social da religião a justificariam ainda que fosse falsa – e é incrível o número de apologetas cristãos derrotados que segue esta última linha.

Por tudo isto não tenho muito mais a dizer acerca de ateísmo excepto que está lá para quem o quiser visitar, em exposição num mausoléu. Ser religioso neste momento é, como sempre será doravante, um imperativo psicológico dos doutrinados desde tenra idade, daqueles com demasiado investimento social/profissional na sua crença, seduzidos emocionalmente pela estética religiosa, ou que simplesmente não aguentam a ideia de que um dia deixarão de existir. Ironicamente, estes sempre existirão (de forma colectiva), mas é um facto que toda a argumentação de que tentem socorrer-se para defender a sua crença de forma discursiva já tem resposta suficiente escrita algures. Nada mais podem fazer do que desviar os olhos e acreditar porque sim.

O trabalho do ateu militante não terminou, claro. A religião continua e continuará a ter de ser empurrada diariamente e sem descanso para a esfera privada, a que pela sua natureza nunca se confinará de forma voluntária. No que diz respeito à questão da sua veracidade ou falsidade, o trabalho está feito. E por isso vou lendo, vendo e ouvindo sobre ateísmo como quem contempla uma estátua: em silêncio, deleitando-me com um prazer que é agora apenas estético.

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo.