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16 de Julho, 2005 fburnay

O que a História devia ensinar

É de tempos de crise que os tiranos se servem para impôr as suas doutrinas,as soluções que os que os seguem vêem como as únicas disponíveis para pôr termo ao caos que assola a sociedade.

Em 1994 a Rússia atacou um país separatista. A Chechénia viu assim começar uma guerra que ainda não terminou.

Nos três anos que se seguiram ao cessar fogo de 1996, eis que do cadáver da decadência civilizacional se vem servir o habitual abutre: o fanatismo religioso. Apesar de contrárias à identidade chechena, começaram a alastrar a sharia, as flagelações públicas e a jihad. Da Arábia Saudita importou-se o wahhabismo para as mentes dos jovens chechenos. O separatismo sempre foi visto como uma oportunidade para os proselitistas do terrorismo, que encontraram em Shamil Basaiev um móbil para crimes como o da Ossétia do Norte.

As religiões sabem como e quando devem servir-se da miséria humana. Os fiéis, habituados a vê-las como sinónimo de paz, é que por vezes não se apercebem.

8 de Julho, 2005 fburnay

O medo da secularização

São muitos os católicos que não gostam de menções à Inquisição, ao fanatismo ou à intolerância da sua religião porque essa religião que conhecem (ou julgam conhecer) lhes foi apresentada numa forma secularizada. A catequese de que foram inocentes vítimas, apesar de retrógrada e por vezes contraditória em muitas matérias, deixa emergir uma mensagem generalizada de amor, paz e respeito, dado o ambiente cultural da nossa sociedade.

Porque nem todos concordam com tudo o que o Papa diz, nem com o que diz padre fulano na sua homilia. Assim não fosse e não ouviria tantas mulheres dizerem-se católicas. Porque não sabem que o livre-pensamento é castigado com o fogo do Inferno. Inferno esse do qual duvidam enquanto possível destino post-mortem e cuja existência julgam, muitas vezes, ser matéria de opinião pessoal no seio do seu catecismo.

Este diluir do dogma pode ser auto-infligido por pessoas de bom senso não têm tempo para acreditar em contradições ao pequeno-almoço ou por ministros da fé mais liberais, reformadores, jovens ou simplesmente amedrontados pela perda de seguidores. O que é certo é que é a sociedade e não o Vaticano que vai ditando as mudanças profundas na maneira de viver a religião.

Seja essa mudança (ela também uma forma de secularização) um modo de fazer cair um véu sobre a repulsa disfarçada que as instituições religiosas têm pelas liberdades pessoais, seja isso um esforço para fazer evoluir doutrinas estáticas há séculos, o que é certo é que a religião, na sua forma natural, possui todos os ingredientes para instrumentalizar a perseguição, a morte e o ódio livres de punição divina e presenteados com garantias de salvação.

É bom lembrar a entrevista de Omar Bakri Mohammed, auto-intitulado «teórico da Al-Qaeda na Europa», onde este revela o não inesperado desprezo total pelo secularismo e o ódio sagrado incluído nos textos divinos e ameaça um atentado em Londres, infelizmente concretizado.

Não sei o que dizer quando alguém mascara o ódio bíblico de “vicissitude da época” ou “tradução melindrosa”. Será uma forma de o exorcizar, aos poucos, da liturgia? Ou será uma forma de o conservar, à espera de melhor oportunidade para voltar a espalhar o cancro medieval do fanatismo?

29 de Maio, 2005 fburnay

George Orwell II

3 = 1

Sendo reputadíssimas escolas de como acreditar em algo e no seu oposto ao mesmo tempo, as religiões merecem certamente um diploma em Doublethink.

Seguindo o exemplo da ICAR, não vou mencionar as inúmeras contradições bíblicas já que o comum católico não lê a Bíblia. Em vez disso talvez seja mais interessante pegar naquilo que a maioria dos crentes assimila na sua formação religiosa.

A ICAR apresenta-nos uma divindade única e tríplice. Esse deus é o criador de tudo. Mas Jesus, filho de Deus, não foi criado, foi gerado. Jesus, igual em tudo aos homens excepto no pecado, nasceu de uma virgem, é capaz de realizar milagres, subiu aos céus e, aparentemente, ainda não morreu. Jesus é certamente daqueles homens mais iguais do que os outros.

Na doutrina catecista da ICAR encontram-se vários exemplos de doublethink: «Não matarás», reza o mandamento. Nada de aborto, nada de eutanásia, presume-se. Mas a pena de morte, estranhamente, já faz sentido. Tal como a guerra pode ser justa.
Também a superstição é condenada no catolicismo. A prática de magia, a idolatria, adivinhações e afins são crendices pecaminosas. Ao mesmo tempo o clero transforma água da companhia em água benta, vinho em sangue, pão em carne, limpa os pecados das almas dos seguidores e prega em templos pejados de ídolos – as divindades multiplicam-se segundo a latitude – advertindo a multidão para o tempo que há de vir.

Isto para não falar da misoginia do clero que diz respeitar muito o género feminino, apontando como prova Maria, Mãe de Jesus, auto-proclamada Escrava do Senhor. Homossexualidade é uma atitude sexual contra-natura por não preceder «de uma complementaridade afectiva e sexual verdadeira». Com o celibato não se passa a mesma coisa.

Acreditar que o mundo não tem criador é impossível para o crente. Acreditar que esse criador nunca foi criado nem espanto causa.
A vida depois da morte é garantida no catolicismo mas a crença em vidas passadas é descabida e supersticiosa.
Chamar um crente à razão é vê-lo, se for esperto o suficiente, declarar que Deus está para além da lógica humana. Crimestop, diria Orwell…

26 de Maio, 2005 fburnay

George Orwell I

Five minute hate, times forty eight.

Gosto muito de Eça de Queirós. Admiro o cuidado, a ironia e o estilo com que tão bem descreveu o que tão bem observou. De tal forma o fez que ainda hoje nos é possível vislumbrar muito da cultura portuguesa que herdámos do seu tempo.

E é por essa mesma razão que também gosto de George Orwell, pseudónimo de Eric Arthur Blair. Depois de ler “1984” e “Animal Farm” (“O Triunfo dos Porcos”) alterou-se a forma como olho para os comportamentos das massas, das instituições e da forma de pensar das pessoas. Fiquei mais atento aos flagrantes alertas destes romances…

Eram cerca das onze horas de uma noite de há uns tempos atrás quando, ao sintonizar um velho rádio que tenho cá em casa, encontrei o posto da Rádio Miramar, esse ex libris do proselitismo, da dilatação da fé e do império da IURD. Atiçada que estava a minha curiosidade pela inebriante verborreia luso-brasileira do pastor de serviço, que falava de um estranho faraó, detive-me por alguns momentos a ouvir. De que faraó falava? Estaria a citar a Bíblia, esse lugar-comum da evangelização, referindo-se à fuga do Egipto? Daí a poucos minutos, ineficazes a satisfazer a minha interrogação, começavam os testemunhos telefónicos dos seguidores daquela igreja. Em escassos segundos percebi do que se tratava…

Era inacreditável! Numa vigília que se prolongaria até às 3 da manhã do dia seguinte, os participantes destilariam o seu profundo ódio pelo faraó, o opressor do povo escolhido. E os telefonemas não paravam. Os insultos eram tantos, o desejo de agressão física de tal forma exprimido, a descrição da raiva cultivada tão grande que me apercebi que o faraó sem nome deixava de ser uma personificação do Mal para se tornar numa personalidade real a abater. Um homem terrível, odioso e sem alma, de perfídia inigualada.

Samuel Goldstein, Trotsky, Snowball, os judeus, os hutu. E agora o faraó. A IURD sabe o que faz.

20 de Maio, 2005 fburnay

Errata por outrém

A agência Ecclesia, numa notícia de há uns dias atrás a respeito da homilia do sr. Jorge Ortiga, deixou passar um erro que, humildemente, me presto a corrigir.

Onde se lê: «Igreja responde com amor aos ataques do laicismo»,
deve ler-se: «Igreja responde com Timor aos ataques do laicismo».

1 de Maio, 2005 fburnay

Está aí alguém?

Bastante agoniado pela desculpa, já esfarrapada do uso, de que a Igreja é feita de homens que cometem erros, mesmo sob o dogma da infalibilidade papal, e que assim tenta perdoar os crimes do passado sob o manto da má memória e das vicissitudes históricas, lembro aos seguidores da ICAR que esta não perde tempo a fazer uso dessa propriedade tão humana que é a imperfeição.

É que a ICAR está a cometer um erro, bem recente mas nada original, em Timor.

A atitude da parte dos crentes também não é propriamente inovadora. Vão querer esperar uns anos para condenar o que está a acontecer agora? Vão querer deixar as coisas arrefecer e então ouvir as desculpas do vosso infalível pontífice para depois desbobinarem a posição oficial da ICAR sobre o assunto a quem constrangedoramente optar por pegar no assunto? Ou será que os acontecimentos que têm tido lugar em Timor são inocentes demais para rivalizar com o passado da vossa Igreja?

21 de Abril, 2005 fburnay

Assombração na TVI

Um espírito de mau gosto, populismo e superstição, que não a Manuela Moura Guedes, assombrou esta noite o estúdio da TVI. Manifestou-se com uma notícia interessantíssima, isenta e detalhada sobre um lar assombrado em Beja. Os seus ocupantes revelaram em directo os móveis tombados pelo poltergeist e o repórter esmerou-se a revelar às famílias portuguesas todos os compartimentos da habitação por onde passou a alegada entidade ectoplásmica.

Mais um caso de, pelo menos, violência doméstica – virar uma sala de pantanas requer algum mau génio ou algum histrionismo. E mais um caso de violência intelectual, em que os media não perdem tempo a encher a caixinha que mudou o mundo com porcaria de primeira apanha.

12 de Abril, 2005 fburnay

Física e Catolicismo?

Dei de caras com posters no IST que exibiam uma fotografia de Einstein com a seguinte frase: «A Realidade é um dado. Mas dado por quem?». Se se tratasse de um tema para um encontro de agnósticos, eu compreendia perfeitamente a indagação mascarada de citação. No entanto é curioso constatar que se trata de publicidade ao Happening 2005 do movimento Comunhão e Libertação que, entre outros locais, tem lugar no campus da Alameda esta semana. Frase algo idiota, diga-se, pretende certamente atingir as mentes quase-agnósticas e pouco críticas de alguns estudantes do instituto. Pressupôr-se-á então que a resposta seja «o Deus cristão, relatado na Bíblia, que todos devemos adorar conforme as indicações da Igreja Católica Apostólica Romana à qual pertence o membro que fundou o movimento Comunhão e Libertação»? É uma resposta forçada. Mas forçada por quem? Pela ICAR, naturalmente…
28 de Março, 2005 fburnay

Em nome do Tabu

Quando vi na televisão o cardeal patriarca falar do facilitismo com que a sociedade olha para as questões da vida, deu-me vontade de rir. Aqueles que se preocupam realmente com a problemática do aborto e da eutanásia fazem-no sem esquecer que a vida é humana se for digna. Facilitismo, para mim, é reduzir toda a questão a um mistério divino, entregando o debate à exclusividade dos teólogos (prática habitual das religiões) e criar um tabu para aliviar a sociedade da carga do raciocínio e o clero do perigo do livre-pensamento. Frequentemente acusados de reducionismo biológico, os que olham para a eutanásia como último recurso para o fim do sofrimento de uma vida que quer terminar dignamente, são acusados por aqueles que, em nome de escrituras bolorentas e ideais tacanhos e medievais, reduzem a vida de um indivíduo indepentente e livre à propriedade intocável de um Deus desconhecido.

O que me indigna é ver aqueles que reclamam a minha vida e a dos outros para o seu Deus particular aceitarem tão bem manifestações de fé que resultam em auto-flagelações, umas mais violentas que outras, todas igualmente decadentes. Se o Papa se quer arrastar em sofrimento em nome da sua fé, acham muito bem. Se uma idosa se quer arrastar metros sem fim de joelhos, à entrada do seu templo, acham natural e louvável. Mas se uma pessoa amarrada a uma cama décadas seguidas, completamente dependente de terceiros para as necessidades que qualquer um de nós tem como adquiridas, pedir para pôr termo à sua vida de sofrimento e humilhação, indignam-se e protestam. Quando uma mulher se recusa a usar o preservativo, em fiel obediência à homilia da sua igreja, tendo contraído o vírus da Sida do seu marido seropositivo, consideram-na uma mártir, um exemplo. Já à mulher vítima de violação, sem meios para educar um filho que não desejou, estigmatizada para a vida, que pede para não ser mãe do filho daquele que a violentou, vejo muitos recusar tal escolha, em nome de tão misterioso mistério.

A falta de coerência, de facto, dá-me vontade de rir. A insistência do clero numa tese dogmática, provinciana, irrealista, que pretende impingir à sociedade que critica por esquecer os valores que gostaria que adoptasse, espanta-me. Disse o cardeal patriarca em entrevista à agência Ecclesia, a respeito do referendo ao aborto, que «Quem disser que sim tem uma responsabilidade tremenda, porque o primeiro dever que tem é esclarecer-se, é perceber que o que está em questão não é resolver problemas (até porque não os resolve imediatamente)». E quem disser não? Livra-se da responsabilidade? Sim, porque como se pode ler na mesma entrevista, quem não enfrenta as dificuldades é que legaliza o aborto e a eutanásia, é que minimiza o sofrimento. Lá que Igreja não nega o sofrimento, disso, não tenho a menor dúvida.