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Ernesto Martins

30 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Ama o teu próximo…

No artigo “Sobre a Igualdade”, aqui publicado a 22 de Dezembro, o seu autor e estimado colega de blog Onofre Varela refere-se à promoção da “igualdade entre os homens” como uma das grandes ideias que conduziu o Cristianismo ao triunfo histórico que lhe conhecemos. O conceito cristão de igualdade é aparentemente proposto, na sua origem, no Velho Testamento, em Levítico 19:18, onde se lê “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Javé”. É um dos versículos mais apregoados da Bíblia que me trouxe de imediato à memória um controverso e muito citado artigo de John Hartung [1].

De acordo com este antropólogo norte-americano, a passagem bíblica não se refere, contudo, a todos os membros da espécie homo sapiens mas sim aos “filhos do teu povo”, ou seja, aos membros do mesmo grupo étnico – os judeus. Se costumamos admitir que o “próximo” é o ser humano em geral, isso deve-se apenas ao facto de termos interiorizado há muito os valores humanistas do Iluminismo.
A interpretação de Hartung torna-se clara se atendermos ao contexto em que surge. Segundo o relato bíblico [2], quando receberam a lei divina os Israelitas estavam isolados no deserto. Viviam em tendas, em famílias alargadas, isolados e sem contacto com povos amigáveis. Discórdias e lutas internas eram frequentes, resultando por vezes em baixas na casa dos milhares (Êxodo 32:26). Desesperados, alguns queriam voltar para o Egipto mas Moisés consegue manter a coesão e seguir em frente (Números 14:4). Num cenário como este, faz todo o sentido – particularmente do ponto de vista evolutivo – que a preocupação de todos se limitasse ao circulo restrito da comunidade. Alargar o decreto de “amar o próximo” a povos inimigos como os Medianitas, os Moabitas, Amoritas, Edomitas, Hititas e Jebuseus seria o mais insano dos suicídios e, por conseguinte, devia estar fora da cogitação de Moisés quando supostamente recebeu a directiva do seu deus.
No mesmo artigo Hartung conclui também que o primeiro dos 10 mandamentos (Deuteronómio 5:17-21), “Não matarás”, não tem o âmbito universal que normalmente se lhe atribui. Na sua origem refere-se estritamente e apenas a judeus, entendimento este que é atestado pelos tratados do judaísmo rabínico registados na Mishná, e confirmado pelos comentários do reverenciado Maimónides, usualmente aceites como autoritários nestas matérias.
Este carácter restrito da proibição “Não matarás”, aplicável apenas quando a vitima pertence ao “Povo de Deus”, é, na verdade, assumido na prática nas narrativas do Velho Testamento, a julgar pelas várias campanhas de limpeza étnica contra todos os povos que adoram outros deuses que não Javé.
Em “The Moral Arc” [3] Michael Shermer chama a atenção para outro caso semelhante. Desta vez a passagem bíblica em causa é um excerto da epístola de Paulo aos Gálatas: “Já não há diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gálatas, 3:8). Para alguns comentadores, e talvez na mente de muitos crentes, este versículo encerra uma declaração inequívoca da igualdade entre todos os seres humanos.
Mas uma leitura atenta de todo o capítulo 3 da carta mostra que, na verdade, segundo Paulo, o que tinha alcance universal era a salvação em Cristo. Ou seja, todos eram iguais em Cristo e, nomeadamente, os não judeus não tinham de se circuncidar para serem aceites no reino dos céus. Paulo garante, portanto, que todos serão iguais no reino que está para vir, ou seja, no outro mundo. Mas nada sugere que ele se referia à igualdade de direitos neste mundo. Os escravos continuariam escravos e as mulheres continuariam a ser vistas como propriedade. Quem quer que fosse teria um lugar guardado no Paraíso, mas até lá estaria à mercê dos abusos costumeiros da sua própria cultura e Paulo não parece incomodado com isso. Se esta passagem do Novo Testamento nos parece conter algum tipo de sentimento de igualdade humanista isso deve-se apenas à projecção que fazemos dos nossos próprios valores.
Em suma, a Bíblia é, na sua maior parte, um modelo de moralidade intra-grupo, e, na sua origem, o Cristianismo esteve sempre longe de incluir “todos, todos, todos”[4] no seu circulo de consideração moral. O que não é propriamente de surpreender dado que partilha, com várias outras religiões, uma essência tribal, funcionando com regras que visam a comunidade e não a humanidade em geral, e que vincam as diferenças entre os que estão dentro do grupo e os que estão fora do grupo (os pagãos, os hereges, os descrentes).
Na sua história de vinte séculos, a versão católica do cristianismo viu-se arrastada pelo Iluminismo no seu tortuoso caminho até à modernidade, mas sempre com as unhas cravadas no passado. A moderação que eventualmente operou em algumas das suas práticas e doutrinas foi lenta e penosa, e muitas vezes só aconteceu em resposta a pressões seculares.

EVM


Notas:
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[1] Hartung, John; “Love Thy Neighbor”: The Evolution of In-Group Morality”, Skeptic, 3, nº4, pp. 86-99, 1995. Também disponível no site do autor, num texto em permanente actualização:
http://www.strugglesforexistence.com/politics/love-thy-neighbor-the-evolution-of-in-group-morality/#to_2
[2] Aqui faço a concessão de considerar o relato bíblico como histórico, embora as evidências nesse sentido sejam virtualmente inexistentes.
[3] Shermer, Michael; “The Moral Arc”, Henry Holt, 2015.
[4] As célebres palavras do Papa Francisco proferidas durante a JMJ 2024, em Lisboa.

19 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 2/2

O nascimento virginal é, provavelmente, o aspecto crucial da natividade de Jesus Cristo.
Estranhamente, é também um conceito sem paralelo na Bíblia Hebraica e na literatura judaica pós bíblica, onde os nascimentos extraordinários ou ocorrem com mulheres que já ultrapassaram a idade reprodutiva, ou são fruto de uniões entre anjos e mulheres humanas, semelhantes às dos mitos greco-romanos. No entanto, estes nascimentos nunca implicam a conservação do estado de virgindade.
A história da antiguidade é rica em figuras com suposta origem divina. Considerando apenas as celebridades que viveram perto do tempo de Jesus, podemos citar, por exemplo, Platão, o gigante da filosofia que se acreditava ser filho de uma mulher e do deus Apolo; Alexandre o Grande, que tinha fama de ser o produto de uma aventura entre a sua mãe e Zeus; Apolónio de Tiana, profeta venerado pelas suas curas milagrosas e ressurreições de mortos, também ele resultado de uma investida de Zeus sobre uma donzela mortal; e César Augusto, que também teve créditos de paternidade divina. No fundo, trata-se de lendas que nos dão uma ideia do contexto mental dos gentios helénicos da época e que são, portanto, importantes para a compreensão histórica dos evangelhos.


Para sustentar a ideia do nascimento em estado virgem, Mateus cita a profecia de Isaías (7:14). Contudo, já há muito que se sabe que o original desta passagem não se refere a uma virgem, nem a qualquer tipo de concepção miraculosa. O equívoco acontece, porque o autor de Mateus cita a profecia de Isaías segundo a versão grega da Bíblia Hebraica (a Septuaginta), que contém vários erros de tradução. Um desses erros ocorre exactamente neste versículo de Isaías: enquanto o original hebraico refere uma ‘mulher jovem’ que irá conceber, a tradução grega refere uma ‘virgem’.
Baseando-se portanto em Isaías (7:14), o autor de Mateus pretende demonstrar que Jesus é o Messias previsto pelas escrituras. O equívoco fornecido pelo erro de tradução motiva-lhe a criação da história do nascimento virginal, uma fórmula que permite colocar Jesus acima de todas as figuras divinas do paganismo. A mensagem de Mateus é clara: Jesus não nasceu meramente de um deus, como Platão ou Apolónio de Tiana; Jesus é ainda mais divino – o seu nascimento foi ainda mais miraculoso: foi virginal.
O aspecto curioso a reter aqui é que a ideia da concepção virginal resulta de uma extrapolação da Septuaginta. Se, por acaso, Mateus tivesse usado a Bíblia Hebraica e não a sua versão (errada) em grego, é muito provável que a ideia da concepção e nascimento virginal – um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica – nunca tivesse surgido no seu evangelho. Eis a frágil natureza do alicerce dogmático.
Estranhamente, apesar de ser consensual entre os especialistas que o original de Isaías (7:14) não fala em ‘virgem’, o Catecismo oficial da Igreja insiste em citar, no seu artigo §497, essa passagem do Antigo Testamento com a palavra ‘virgem’. O artigo §498 “rejeita que a concepção virginal seja uma lenda ou apenas uma construção teológica sem pretensão histórica”. Isto quando a mais básica das avaliações históricas parece indicar exactamente o contrário, ou seja, que estamos perante um caso de pura invenção. Mas é assim mesmo que funciona a crença baseada na fé, esse substituto pobre da razão, que tem precedência sempre que as evidências e o pensamento crítico teimam em não corroborar as doutrinas desejadas.
A história da natividade relatada por Mateus assenta como uma luva no imaginário dos gentios e judeus helenizados do Cristianismo primitivo, a quem este evangelho foi inicialmente transmitido.
Segundo Geza Vermes [1], os elementos sobre o nascimento virginal fazem mais sentido se entendidos como um desenvolvimento posterior, uma espécie de prólogo propagandista para consumo de pagãos, que surge só na fase em que a história é transmitida em grego. Antes desta fase, ou seja na tradição pré-evangélica, Jesus seria identificado como o Messias davídico a quem era reconhecida uma relação especial com Deus, mas é pouco provável que se considerasse que era filho de mãe virgem.
Essa é também a opinião de Bart Ehrman [2]: nas tradições anteriores ao Novo Testamento, Jesus era visto pelos seus seguidores como um ser humano (não divino) que tinha sido adoptado por Deus como seu filho. A ideia da concepção virginal não fazia parte do quadro de crenças e era mesmo activamente rejeitada pelos Ebionitas, um dos grupos cristãos primitivos de que há registo, que partilhavam este ponto de vista que os académicos designam por adopcionismo. O facto do evangelho mais antigo (o de Marcos) não fazer qualquer referência à concepção virginal de Jesus reforça esta perspectiva.
A perspectiva adopcionista está em perfeita sintonia com aquilo que sabemos da antiga Mesopotâmia e da Babilónia, em que a divindade titular adoptava o rei como seu filho, conferindo-lhe poder. Este mito encontra reflexo em algumas passagens do Antigo Testamento e era com base neste tipo de filiação simbólica que os primeiros cristãos judeus atribuíam a Jesus o título de Filho de Deus. Segundo Randal Helmes[3], esta filiação nunca foi verdadeiramente compreendida pelos cristãos gentios, os quais, vindos de um ambiente pagão, conheciam unicamente a concepção divina de heróis, em que a divindade era literalmente o pai dessa figura. É, pois, com a transmissão do evangelho junto destes cristãos não judeus que surge, fruto dum processo de sincretismo, a história da concepção divina de Jesus. O erro na tradução grega do Antigo Testamento fornece o motivo adicional para a criação do mistério da concepção e nascimento em estado virgem, reforçando-se assim a imagem de um Jesus literalmente filho de Deus e literalmente divino. Negar a influência do pensamento pagão na génese dos mitos cristãos, como o faz reiteradamente a Igreja no seu Catecismo, é não só intelectualmente desonesto, como um sinal claro da irracionalidade da fé.
A terminar, uma última questão que não se relaciona com a Natividade, mas que vem no seguimento do tema anterior: a virgindade perpétua de Maria.
Na opinião de muitos académicos, é um engano supor que os evangelhos sustentam a ideia de que Maria se tenha mantido virgem até à morte. Trata-se de mais uma invenção da Igreja. Segundo Vermes e James Tabor [4], o dogma da virgindade perpétua não é detectável em passo algum do Novo Testamento, nem faz parte de nenhuma das crenças mais antigas dos primeiros cristãos. A maior parte dos escritos cristãos datados de antes do final do séc. IV EC, aceitavam sem reservas a ideia de que os irmãos e irmãs de Jesus eram filhos nascidos de modo natural de José e Maria. A noção da “virgindade real e perpétua”, referida no artigo §499 do Catecismo da Igreja, não passa pois de um produto da imaginação fértil dos pensadores cristãos, obcecados com a ideia do sexo como veículo primordial de transmissão do pecado original.
EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament”, HarperCollins, 2011.
[3] Helmes, Randal; “Gospel Fictions”, Prometheus, 1989.
[4] Tabor, James; “The Jesus Dynasty: The Hidden History of Jesus, His Royal Family and the Birth of Christianity”, Simon & Schuster, 2007.

15 de Dezembro, 2024 Ernesto Martins

Equívocos natalícios, Parte 1/2

O Natal já não é como antigamente. Contudo, o motivo original da celebração – o nascimento do Messias da Cristandade – permanece ainda no subconsciente colectivo. Ainda temos presentes os traços gerais da narrativa da natividade de Jesus, que nos foi transmitida na infância, como um acontecimento bastante concreto e real, ocorrido há pouco mais de dois milénios, de onde derivam aspectos importantes do corpo doutrinal da Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, afinal, o que vem a ser esta história extraordinária, feita de anunciações angelicais, nascimento virginal, reis magos, perseguição e fuga para o Egipto? Será este um conto assim tão singular? Até que ponto é que o drama por detrás da festa natalícia corresponde à verdade histórica?
Segundo a visão defendida pela maioria dos historiadores do cristianismo primitivo, o mais provável é que tudo não passe de pura ficção – produto de imaginações férteis e esperanças religiosas a actuar na adaptação de mitos pagãos populares.

Dos quatro evangelhos da Bíblia, apenas os de Mateus e Lucas mencionam as circunstâncias do nascimento de Jesus. Segundo Geza Vermes [1], a explicação para esta singularidade é que estes foram evangelhos particularmente dirigidos a uma audiência de pagãos, ou seja, gente para quem era importante não só a génese de Jesus, como a sua compreensão em termos identificáveis com a sua própria mitologia.
Mas o mais curioso é que as narrativas de Mateus e Lucas são incompatíveis em quase todos os aspectos. Sem exagero, pode mesmo dizer-se que os evangelistas relatam duas histórias completamente distintas. Se a história tradicional de Natal não nos é familiar no formato de duas versões independentes, isso deve-se à relutância que a Igreja sempre demonstrou em reconhecer abertamente discrepâncias nos seus textos sagrados.
Vejamos, então, em que diferem os relatos da natividade preservados nestes dois evangelhos. A perseguição de Herodes, a consequente fuga da família sagrada para o Egipto e o massacre das crianças em Belém só figuram na narrativa de Mateus. Apesar de todo o dramatismo deste episódio, Lucas nem se refere a ele. Em lugar disso, diz-nos que José e Maria se vêem forçados a viajar de Nazaré para Belém por causa de um censo, sendo por essa altura que nasce Jesus.
Além de discordantes, as duas narrativas levantam sérias dificuldades históricas. O massacre dos inocentes descrito em Mateus não é referido por nenhum historiador da época, como Nicolau de Damasco e Filo de Alexandria. Mesmo Flávio Josefo, que dedicou capítulos inteiros às muitas atrocidades perpetradas por Herodes, não nos diz nada sobre o assunto, pelo que o mais certo é que tal nunca tenha sucedido.
A efabulação da narrativa de Lucas ainda é mais fácil de detectar, uma vez que este situa o nascimento de Jesus por altura dum censo decretado por César Augusto e conduzido por Quirino. Ora, sabemos, por Josefo e outras fontes, que este censo teve lugar no ano 6 EC, isto é, 10 anos após a morte de Herodes. Portanto, se confiarmos em Lucas, concluímos que Jesus nasceu a 6 EC, o que contradiz a datação de Mateus de 4 AEC.
Além disso, segundo Lucas, José é obrigado a ir a Belém para se recensear, porque era descendente do rei David – que viveu cerca de mil anos antes. Ora, não é simplesmente credível que populações inteiras tivessem de se deslocar até ao local da sua linhagem ancestral de há um milénio. Certamente que a maior parte das pessoas não saberia para onde ir! Além disso, sabemos hoje que, naquele tempo, os censos não funcionavam assim.
Por que teria então Lucas inventado esta história? Porque, para Lucas, era de crucial importância colocar o nascimento de Jesus em Belém, indo assim de encontro à profecia de Miqueias (5:1), que apontava essa localidade como origem do Messias. Desta forma, os seus leitores não teriam dúvidas de que Jesus era o Messias, ficando ao mesmo tempo com a impressão de que uma antiga profecia se tinha confirmado. Mateus, por sua vez, não tem de recorrer a nenhum artifício para situar o nascimento do salvador em Belém, pois a sua narrativa já parte com o casal Maria e José a residir aí. Contudo, o argumento usado para desviar a família sagrada para Nazaré, após o regresso do Egipto, é também pouco convincente.
Mas há ainda mais diferenças relevantes a assinalar entre os dois evangelhos. Toda a narrativa de Lucas sugere um cenário simples e humilde. Jesus nasce num estábulo e é visitado apenas por um conjunto de pastores anónimos. E não há mais nada em Lucas. Pelo contrário, em Mateus, tudo é grandioso. Aqui o Messias nasce numa casa (e não num abrigo de animais), é anunciado por uma estrela e é visitado por magos do Oriente (que, já agora, nem são reis, nem são necessariamente três). Isto torna evidente que os dois evangelistas tinham de facto entendimentos muito diferentes sobre o Messias, razão pela qual não faz grande sentido misturar os elementos das duas narrativas, como é da tradição. Quando as duas histórias são combinadas, as mensagens individuais perdem-se irremediavelmente. Nas palavras do académico Bart Ehrman [2], o resultado que se obtém não é um quadro completo e mais detalhado dos acontecimentos, como quase sempre se julga, mas antes uma terceira versão da história.
A estrela é outro dos pormenores importantes na narrativa de Mateus. O sinal dos céus é algo recorrente na mitologia da Antiguidade como forma de assinalar o nascimento de alguém capaz de alterar o curso da humanidade. Uma nova estrela surgiu nos céus quando Abraão nasceu. O nascimento de Alexandre o Grande também foi marcado pela observação de uma nova estrela. O mesmo aconteceu quando nasceu César Augusto. Mateus não faz mais do que alimentar a tradição, inventando mais uma estrela e engrandecendo assim o nascimento do Messias à escala das figuras mais eminentes. O mesmo se passa com a homenagem prestada pelos magos, que também surge nas narrativas de outros autores relativas a diferentes personagens históricas. Plínio, por exemplo, menciona a homenagem de magos feita perante Nero. Suetónio faz referência a um mago que proclama o nascimento do Senhor do mundo, aquando do nascimento de Octávio.
O nascimento virginal é talvez o aspecto crucial da natividade de Jesus, mas esse é um tema que deixamos para a segunda parte deste artigo.

EVM

Notas:
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[1] Vermes, Geza; “The Nativity: History and Legend”, London, Penguin 2006.
[2] Ehrman, Bart D.; “Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them)”, HarperCollins, 2009.

15 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 3/3

Nesta terceira e última parte do artigo reforço a tese de que o Cristianismo é mais um problema do que uma solução, usando, desta vez, dados que mostram o poder que esta religião tem de dividir os povos. Um olhar objectivo sobre o mundo actual, no que diz respeito em particular às condições de vida das populações nos países onde o Cristianismo é mais e menos dominante, permite também concluir que a religião não traz qualquer benefício para a humanidade.

Religião divide mais do que une
O poder da religião – especialmente os monoteísmos – de dividir os povos em lugar de os unir, não é uma novidade, estando plasmado em vários episódios da história. O que não deve surpreender, dado que é ao próprio Jesus Cristo que se atribuem as afirmações “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” [Mt 10:34] e, mais à frente, “Quem não é comigo, é contra mim…” [Mt 12:30]. O facto de muitos dos conflitos registados na história terem grupos beligerantes definidos em função de filiações religiosas é revelador da capacidade das religiões de dividir. Assim, católicos juntam-se apenas com católicos, protestantes com protestantes, muçulmanos com muçulmanos e hindus com hindus. Os conflitos nem sempre são explicitamente religiosos, mas a intolerância que divide diferentes comunidades religiosas é muitas vezes um produto das respectivas identidades religiosas.
O número astronómico de religiões existentes actualmente (só o Cristianismo conta com milhares de variantes [1]) é a prova evidente da capacidade da religião de dividir. A religião cristã tem um passado de conflitos sangrentos motivados em grande parte por diferenças teológicas que hoje parecem ridículas [2]. Só as doutrinas em torno da Trindade motivaram algumas das mais violentas perseguições a hereges nos primeiros séculos do Cristianismo. Hoje, diferenças doutrinais sobre a interpretação da Bíblia, sobre os sacramentos, sobre o papel dos clérigos e sobre as atitudes perante as mais variadas questões sociais, têm a capacidade de dividir os cristãos. Os católicos consideram que os protestantes terão a sua salvação comprometida por não respeitarem a autoridade do Papa. Os protestantes, por seu turno, acham que os católicos cometem um erro trágico ao adorar imagens e que a ideia da transubstanciação na eucaristia é uma grave blasfémia. Os cristãos ortodoxos consideram que os católicos estão errados, nomeadamente por pensarem que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e não apenas do Pai e por ingerirem óstias sem fermento quando o correcto era que tivessem sido feitas com fermento. Isto só para nos mantermos dentro do Cristianismo. A religião Mormon (ou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que não subscreve a doutrina da Trindade e considera três deuses separados), nos menos de 200 anos que conta de vida já se dividiu em diferentes seitas por causa de desentendimentos em torno da poligamia.
Não há dúvida de que as religiões dividem. Mas, vendo bem, estes conflitos e divisões não são de admirar numa actividade em que os credos centrais são extraídos ou inspirados em textos ambíguos, tradições difusas e revelações absurdas. O facto de pouco ser suportado em dados sólidos e argumentos racionais, e muito ser baseado na fé, torna os desentendimentos insanáveis. Sem uma base objectiva de evidências, o resultado é a divisão dos crentes em grupos e congregações separadas.
Hoje parecem haver também evidências do poder divisivo da religião ao nível das mentalidades. Segundo uma sondagem da Pew Research [3], a identidade cristã na Europa Ocidental está associada a níveis mais elevados de sentimento negativo em relação aos imigrantes e às minorias religiosas. Inquiridos que se autodenominam cristãos – quer frequentem ou não a igreja – têm maior probabilidade de expressar opiniões negativas sobre os imigrantes, muçulmanos ou judeus do que as pessoas sem filiação religiosa. Um outro estudo de 2022 [4] confirma que na Europa os cristãos tendem a expressar níveis mais elevados de sentimentos nacionalistas do que os nones. Pessoas sem filiação religiosa têm menor probabilidade de afirmar que a ancestralidade é condição necessária para a identidade nacional do que os que se autodenominam cristãos. A religião divide, de facto.

Religião não tem impacto positivo na sociedade
Que a religião é, na generalidade, benéfica para uma sociedade, é outras das ideias profundamente enraizadas na mente da população crente. As sociedades precisam da religião para prosperar, dizem eles. No entanto esta é uma crença mais baseada em wishful thinking do que num olhar objectivo sobre o mundo real. Se porventura se constatasse que as sociedades onde a vida é melhor são as mais religiosas, então poderíamos postular que a religiosidade é um factor determinante. O mesmo diríamos se as sociedades menos religiosas fossem bastiões de pobreza e crime. Mas o que se observa no mundo é precisamente o contrário.
Os países com a maior proporção de não crentes constituem as sociedades, em média, mais desenvolvidas, mais livres, mais saudáveis e mais pacíficas. Por outro lado as nações mais religiosas, as que mais orações dirigem aos deuses, são as mais violentas e opressivas e onde a qualidade de vida é pior em todos os aspectos. Os Relatórios do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (UNDP) calculam anualmente o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (Human Development Index – HDI [5]), que quantifica o desempenho médio de uma sociedade com base em métricas como a esperança média de vida à nascença, a escolaridade, a literacia e o rendimento per-capita. O relatório de 2021 coloca no top 10 do ranking HDI (de um total de 191 nacões) países como a Suiça, Noruega, Islândia, Austrália, Dinamarca e Holanda, todos países onde os números de não crentes são dos maiores do mundo. Os 50 últimos países do ranking não apresentam números estatisticamente significativos de descrentes.
Um relatório da organização Save the Children, o State of the World’s Mothers Reports [6] publica regularmente o “Índice das Mães” (Mothers’ Index), que reúne os dados mais recentes sobre a saúde das mulheres, a saúde das crianças, o nível de escolaridade, o bem-estar económico e a participação política feminina, para classificar 179 países e mostrar onde as mães e as crianças se saem melhor e onde enfrentam as maiores dificuldades. No topo da lista dos melhores países para se ser mãe aparecem a Noruega, Finlândia, Islândia, Dinamarca e Suécia. No fim da lista aparecem Nigéria, Guiné-Bissau, Chad, Congo e Somália.
Segundo outras fontes [7], os países com a maior taxa de homicídios, onde a incidência do HIV é maior e onde as mulheres são mais oprimidas, são todos países muito religiosos. Finalmente também existem métricas para a felicidade e, mais uma vez, verifica-se que, em média, as sociedades mais felizes não são de todo as mais religiosas [8]. Os países do costume aparecem na lista daqueles em que os seus cidadãos são os mais felizes. Se considerarmos apenas os países mais desenvolvidos, os Estados Unidos sobressaem como o mais religioso mas também o país mais disfuncional, exibindo as maiores taxas de criminalidade, de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez e de abortos na adolescência. Foi a esta conclusão que chegou um estudo do investigador Gregory S. Paul [9].
Em conclusão, a correlação negativa existente entre a qualidade global de uma sociedade e a crença religiosa parece negar categoricamente a ideia de que as sociedades precisam de ser religiosas. Segundo a cosmovisão teísta, em que um deus omnisciente, omnipotente e sumamente bom responde às preces dos seus fieis, seria de esperar que a influência desse deus se fizesse sentir para o bem na vida desses fieis, e portanto nos locais onde eles vivem. Mas, objectivamente, não só essa previsão não se verifica como acontece precisamente o contrário.
É evidente que os problemas que afligem os países sub-desenvolvidos estão fortemente relacionados com os respectivos trajectos histórico-sociais, dependem de múltiplos factores e conjunturas complexas, e com certeza não caíram do céu pelo simples facto desses países serem religiosos. É provável que a religião seja endémica nestas sociedades pelo facto das populações pobres encontrarem nas crenças religiosas e nos rituais a consolação, o conforto e a esperança que lhes permite enfrentar estoicamente as dificuldades impostas pela insegurança das guerras, a sub-nutrição e as doenças. Portanto, não se pretende atribuir à religião a culpa de todos os males. No entanto o que estes cenários demonstram de forma conclusiva é que a religiosidade não é um ingrediente necessário na criação de sociedades onde as pessoas possam ser felizes e prosperar.
— EVM

Notas:
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[1] https://www.gordonconwell.edu/blog/christianity-is-fragmented-why/
[2] Algumas das mais sangrentas acções militares exclusivamente entre cristãos: Cruzada Albigense (1208-49): 1000000 mortes; Guerras francesas entre católicos e protestantes (1562-98): 3000000 mortes; Guerra dos trinta anos entre católicos e protestantes (1618-48): 7500000 mortes. Ver: Matthew White, “The 100 Deadliest Episodes in Human History”, 2013.
[3] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[4] Key Findings From the Global Religious Futures Project, December 21, 2022, https://www.pewresearch.org/religion/2022/12/21/key-findings-from-the-global-religious-futures-project/
[5] https://hdr.undp.org/data-center/human-development-index#/indicies/HDI
[6] https://fsnnetwork.org/resource/state-worlds-mothers
[7] https://worldpopulationreview.com/
[8] https://www.worldlifeexpectancy.com/world-happiness-map
[9] Gregory Paul, “The Chronic Dependence of Popular Religiosity upon Dysfunctional Psychosociological Conditions”, Evolutionary Psychology, vol.7 nº3, pgs 398-442, 2009.

10 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 2/3

Na primeira parte deste artigo argumentei contra o facto de o Cristianismo poder servir de base para um sistema ético universal. Referi também que, além de não apresentar soluções adequadas, a religião cristã é, muitas vezes, ela própria geradora de problemas graves. Nesta segunda parte examino três desses problemas: a moral sexual repressiva, a doutrinação infantil e a negação da ciência.


Moral sexual repressiva
O sexo foi sempre motivo de obsessão no Cristianismo e os ditames morais que emanam da Igreja Católica sobre esta matéria nunca encontraram eco no melhor conhecimento das ciências humanas sobre o assunto
O Catecismo da Igreja Católica [1], autoridade absoluta em assuntos doutrinais, estabelece no seu artigo 2351 que “o prazer sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da procriação e da união”, algo que deveria ser ponderado seriamente pelas mulheres crentes que decidem não ter filhos. No artigo 2370 lemos que “qualquer acção que (…) se proponha tornar impossível a procriação” é intrinsecamente má. Ou seja, contraceptivos não naturais são inaceitáveis. E enquanto a ciência do sexo informa que a masturbação é uma actividade natural no reino animal, o artigo 2352 do mesmo Catecismo assegura-nos que “a masturbação é um acto intrínseca e gravemente desordenado”. Para que serve afinal a ciência?
Um dos aspectos mais negativos do Cristianismo, profundamente contrário a uma ética humanista de respeito pelas opções pessoais dos seres humanos, é a condenação da homossexualidade. Segundo o artigo 2357, “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados… e não podem, em caso algum, ser aprovados”. Contrariamente ao que a ciência nos diz sobre esta orientação sexual em particular, para a Igreja os homossexuais são aberrações da natureza. Além de traduzir uma atitude hostil para com um grupo social, inaceitável numa sociedade inclusiva, esta é mais uma instância do lamentável choque frontal entre fé e ciência.
Ironicamente a atitude repressiva da Igreja Católica, no que toca a assuntos como a homossexualidade e os contraceptivos, tem resultado em verdadeiros tiros certeiros nos pés dada a consequente alienação de muitos fiéis. De facto, numa sondagem da Pew Research realizada em vários países da Europa em 2018, 58% das pessoas sem religião (os chamados nones, que aqui se identificam maioritariamente como indivíduos baptizados e criados como cristãos) dizem ter-se afastado da religião por discordar com as posições oficiais da Igreja em questões como a homossexualidade e o aborto [2].
O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um facto social cuja aceitação depende muito da religiosidade dos sujeitos. Segundo a mesma sondagem da Pew Research, em todos os países estudados os cristãos que frequentam a igreja são consideravelmente mais conservadores do que os cristãos não praticantes e os nones em questões como o casamento gay e o aborto [3]. Em Portugal 82% dos nones são a favor do casamento gay contra apenas 43% dos cristãos que frequentam a igreja, que também são a favor. Dados como estes parecem tornar incontornável a conclusão de que a religião favorece efectivamente a repressão.

Doutrinação infantil
Um dos principais factores que perpetuam as religiões ao longo dos tempos é a doutrinação das crianças. E o problema é que se transmite a mensagem religiosa como se esta fosse imprescindível para o desenvolvimento moral dos jovens. Ao mesmo tempo, as narrativas são transmitidas como se de verdades factuais se tratassem: as histórias em torno da vida de Jesus, por exemplo, incluindo os episódios sobrenaturais, são apresentadas como se fossem tão bem atestadas historicamente como os factos em torno da Revolução Francesa (pelo menos, nenhuma ressalva em contrário é feita). Também nunca se refere que só algumas pessoas no mundo (os cristãos, em particular) acreditam efectivamente nessas narrativas e que para muitos milhões (e.g. os muçulmanos) alguns desses relatos são apenas fantasiosos. Finalmente não se fala às crianças de outras tradições alternativas, religiosas e não religiosas, tão ou mais relevantes e com histórias igualmente inspiradoras e de conteúdo moral tão significativo como as do Cristianismo. Em resumo, a visão afunilada e redutora que se transmite é evidentemente tendenciosa e formatadora.
O crescimento substancial do número de nones nas últimas décadas tem levado a estudos sobre os efeitos da educação de crianças em lares não religiosos. No melhor dos casos os estudos sugerem que não há diferenças perceptíveis entre crianças criadas em lares religiosos e em lares seculares [4]. Mas também já se detectaram efeitos nocivos nas crianças sujeitas a uma educação religiosa, nomeadamente na dificuldade que estas evidenciam na distinção entre realidade e ficção [5].

Negação da ciência
Muitas doutrinas cristãs, particularmente as evangélicas, são negacionistas da ciência. O Criacionismo nega os factos da Teoria da Evolução por Selecção Natural. Ao afirmarem a verdade literal da Bíblia promovem também a factualidade do dilúvio universal, ideia cuja credibilidade científica há muito caiu em desgraça [6].
A primeira versão do Criacionismo advogava a criação do universo em seis dias, de acordo com a interpretação literal do Génesis. Uma versão mais sofisticada, o Criacionismo Científico, tentou mostrar que o registo fóssil é compatível com um primeiro acto de criação divina seguido de um dilúvio universal. Uma apresentação ainda mais sofisticada surgiu depois na forma do Projecto Inteligente, que tenta argumentar, usando termos putativamente científicos, que existem na natureza instâncias de “complexidade irredutível” que só poderiam ter surgido por via de um acto de criação divina.
Algumas versões do cristianismo são menos radicais do que as variedades evangélicas, colocando a mão de deus por detrás dos processos evolutivos. No entanto nem estas versões fazem sentido se considerarmos o conceito tradicional de deus como entidade omnipotente, omnisciente e sumamente benevolente: se os organismos foram propositadamente criados por condução do processo evolutivo, então deus só pode ser um criador incompetente, esbanjador e cruel se atendermos ao que se observa no reino biológico com os seus múltiplos sinais de imperfeições (e.g. má localização do nervo óptico, que se traduz num ponto cego no campo de visão; complicações causadas na próstata pelo trato urinário), orgãos redundantes e problemas causados por adaptações evolutivas (diafragma entre a cavidade toráxica e o abdómen; canal pélvico apertado nas mulheres, etc.) bem como doenças várias. Enfim, tudo contingências de um processo evolutivo não guiado. Mas mesmo aceitando a evolução Darwiniana do ser humano, o Cristianismo tem ainda o problema de decidir em que momento da evolução é que a linhagem homo passou a ser agraciada com aquilo a que chamam de alma imortal. Não há como conciliar fé e ciência.
— EVM

Notas:
[1] https://www.vatican.va/archive/cathechism_po
[2] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[3] ibid.
[4] “Does religion make people moral?” Ara Norenzayan, Department of Psychology, University of British Columbia, 5 December 2013, Behaviour, 151 (2014) 365–384.
[5] “Judgments About Fact and Fiction by Children From Religious and Nonreligious Backgrounds”, Kathleen H. Corriveaua, Eva E. Chenb, Paul L. Harris; Cognitive Science Journal, 151 (2014) 365–384.
[6] 65% dos americanos os adultos dizem que “os humanos e outros seres vivos evoluíram ao longo do tempo”, enquanto 31% dizem que os humanos e outros seres vivos “têm o aspecto actual desde o início dos tempos”. Destes, 43% dos protestantes e 27% dos católicos acreditam que os seres humanos têm o aspecto actual desde o início dos tempos (não evoluíram). Dados de 2015.
Ver: https://www.pewresearch.org/science/2015/10/22/strong-role-of-religion-in-views-about-evolution-and-perceptions-of-scientific-consensus/

9 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 1/3

Entre as múltiplas razões que levam as pessoas a manterem-se ligadas a uma religião cristã, uma das principais é talvez a convicção de que o caminho da rectidão moral tem de ter o Cristianismo como premissa. Uma base moral tem de ter um enquadramento cristão – é essa a convicção que subsiste de forma mais ou menos inconsciente na mente dos crentes, e que as instituições religiosas se esforçam por manter ao afirmar-se continuamente, muitas vezes de forma velada, como guardiãs da moral e dos bons costumes.
Há sondagens que mostram que os apologistas religiosos consideram, de facto, que a moralidade tem de se basear em valores absolutos, exteriores à humanidade, os quais tem de assentar, obrigatoriamente, em alicerces religiosos [1]. Este pressuposto explica o recurso frequente a académicos religiosos ou membros do clero quando se trata de obter aconselhamento em questões moralmente significativas – como se estas pessoas fossem realmente autoridades nestes domínios. Para crentes que pensam assim, não existem imperativos éticos sem a crença religiosa. Sem a religião estamos condenados ao niilismo. Durante muito tempo, ser ateu era mesmo quase sinónimo de pessoa amoral, sendo talvez por isso que muitos descrentes evitam, ainda hoje, assumir-se abertamente como ateus.
Na verdade, parece que alguns estudos em psicologia apontam para a existência de um alinhamento preconceituoso entre bem moral e espiritualidade – portanto, algo mais lato do que a religião, que compreende até fenómenos paranormais. Da mesma forma que o bem moral se subentende alinhado com a espiritualidade, o mal moral alinha-se com o materialismo. Por outras palavras, os cépticos e os materialistas são os maus da fita, ao passo que os que crêem no sobrenatural, por mais tonta e ingénua que seja a crença em questão, são os que estão do lado do bem [2].
Mas como é óbvio esta perene associação entre espiritualidade e moralidade é um equívoco que está muito longe da verdade [3]. Se correspondesse à realidade as prisões estavam cheias de ateus e países com grandes percentagens de descrentes (Noruega, Suécia, França, etc.) eram antros de criminalidade, o que está longe de ser o caso. O sentido de moralidade não tem de facto nada que ver com crenças religiosas ou sobrenaturais e os factos da biologia [4] e da sociologia mostram isso de forma clara.
Mas mesmo sabendo que a associação entre espiritualidade e moralidade não passa duma ilusão, podemos, ainda assim, questionar se não fará sentido advogar uma moralidade assente numa religião cristã. Esta solução tem, contudo, pelo menos dois grandes problemas:
1) O primeiro é que compromete o exercício da racionalidade e do espírito crítico por envolver a adopção de crenças sobrenaturais injustificadas. A questão que se coloca é: será que precisamos mesmo de acreditar em milagres para adoptar uma conduta moralmente sã?
2) A segunda objecção é que conceitos como mandamentos divinos, pecado e a promessa duma recompensa ou a ameaça de uma punição póstuma, estão longe de constituir uma base sólida para um sistema ético que promova o convívio harmonioso entre todos os seres humanos, independentemente de credos religiosos ou da ausência deles.
A base de um sistema ético universal não pode residir em directivas escritas na pedra. As regras morais consagradas pelo Cristianismo não parecem ter sido desenhadas na sua origem de forma a serem revistas e adaptadas a eventuais novas situações, revelando-se por isso desadequadas para lidar com os problemas reais das sociedades actuais e futuras.
A consideração que temos hoje pelos problemas ambientais e com o sofrimento dos animais, dificilmente poderia surgir espontaneamente duma ética cristã. O mesmo é válido para o respeito que as sociedades mais evoluídas promovem relativamente à liberdade de expressão, à igualdade de direitos para as mulheres, em relação aos direitos dos homossexuais, à aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e aos direitos ao aborto e ao suicídio assistido.
Em sociedades cada vez mais cosmopolitas e multi-étnicas a base da ética não pode assentar nos pilares imutáveis típicos de qualquer religião. As normas de conduta de um período remoto da história não serão certamente aplicáveis ao espírito do presente. Da mesma forma, ninguém pode garantir que sabe o que é certo e o que é errado para todas as pessoas no futuro em todas as circunstâncias e em todos os lugares. A ética tem de ser continuamente informada pela razão e estar disponível para ser revista com base no melhor conhecimento científico das situações.
Além de não fornecer respostas éticas adequadas para muitas questões actuais, a religião cristã é, por vezes, ela própria, o problema – uma força de retrocesso, fonte de divisões e irracionalidades. Nas próximas duas partes deste ensaio tentarei fundamentar estas afirmações.

Notas:
[1] Isto é mais prevalente em contextos evangélicos (onde mais de 50% dos individuos assumem esta convicção) do que católicos. ver: https://www.pewresearch.org/short-reads/2023/04/20/many-people-in-u-s-other-advanced-economies-say-its-not-necessary-to-believe-in-god-to-be-moral/
[2] Daniel Dennett, 2006, “Quebrar o Feitiço – A Religião como Fenómeno Natural”, pg. 244.
[3] Na realidade é o oposto que parece muitas vezes corresponder à verdade. Ou seja, é à custa do fervor e da inspiração religiosas que, muitas vezes, pessoas boas são levadas a cometer crimes hediondos. Parafraseando Steven Weinberg (prémio Nobel da Física em 1979): “As pessoas boas fazem coisas boas e as pessoas más fazem coisas más; mas para que pessoas boas façam coisas más, é necessária a religião”.
[4] Muito do que é ser moral já parece ser instintivo, tanto em nós como em parentes evolutivos mais próximos. Frans de Waal e outros primatólogos reportaram comportamentos altruístas entre chimpanzés e macacos rhesus; ver Frans de Waal, 2006, “Primates and Philosophers: How Morality Evolved”, pg. 187.