10 de Setembro, 2013 David Ferreira
Um cínico placebo
Permitam-me o cinismo. Permitam-me, por breves instantes, a dureza do discurso. Perante a exploração da ignorância dos que a sorte não bafejou com a vontade e os meios para dela se libertarem, o cinismo é o placebo que me resta, a anestesiar a impotência que sinto. Mas apenas um placebo.
Há um exercício que costumo praticar nos raros momentos que me permitem a introspeção. Ligo a televisão, retirando-lhe o som, e, em silêncio, observo os comportamentos dos seres humanos, as suas interações, os seus movimentos, que se tornam automaticamente desprovidos de sentido, como se não fosse um deles, como se fosse um ser consciente vindo de outro planeta a observar uma espécie estranha com pura curiosidade científica. Alheado do que me torna humano, é fácil concluir que os comportamentos que manifestamos não são em nada diferentes dos de outras espécies com comportamentos sociais semelhantes. Como exemplo, um grupo ou um ajuntamento de pessoas a dançar numa discoteca, observado sem som, torna-se apenas uma amálgama de corpos em movimentações estranhas, desprovidas de sentido, tal como se observássemos abelhas dentro de uma colmeia. Não percebemos os movimentos aparentemente aleatórios das abelhas, mas sabemos empiricamente que eles são a manifestação de um conjunto de ações, aparentemente também desprovidas de sentido, organizadas por processos evolutivos de modo a permitir-lhes a manutenção, a afirmação e a sobrevivência como espécie distinta das demais. Nesse pequeno espaço fechado e escuro, onde a tecnologia das luzes intermitentes substitui o brilho das estrelas e da natureza, assistimos a uma evidente manifestação de um ritual animal de acasalamento que se perde na memória do tempo, numa complexa exibição de plumas coloridas, embora sintéticas, que cobrem (ou descobrem) os corpos que exigem e desejam irracionalmente o prazer como único meio disponível para a manutenção, aperfeiçoamento e continuidade da espécie.
Em certa medida, apesar de nos julgarmos animais racionais, somos apenas uma espécie animal cuja ilusão de racionalidade não é mais que uma manifestação complexa da mesma irracionalidade que atribuímos a outras espécies que não compreendemos (e tardamos em compreender) e cujos comportamentos que apresentamos são de igual modo incompreensíveis para elas, apesar das semelhanças. A racionalidade torna-se, assim, apenas um conceito produzido pelo nosso cérebro, extraordinário órgão desenvolvido em paralelo com o nosso desenvolvimento biológico, mecânico e tecnológico. Nada mais que isso. E tanto mais que isso!
Toda a realidade que apreendemos só existe para nós, que nos desenvolvemos moldados e moldando-nos por e para ela. Para nós, humanos, nada existe a não ser a ilusão que temos da existência, da realidade, da natureza. E essa ilusão é tão complexa e adaptada que nos permite, inclusive, a conceção de uma existência ou de uma realidade extrínseca à sentida e observável. Sonhos, ilusões, conceções que nos permitem uma existência abstrata que não é mais que um método matemático elaborado que tem como finalidade antecipar tudo o que coloque em risco o fim da espécie. É esse o poder excecional desse elemento composto estranho, incompreensível, talvez único no Universo, que é o nosso desenvolvido cérebro humano. E é precisamente esse órgão, que se sabe mas não se compreende, que outros órgãos semelhantes exploram, a negar-lhes a evolução porque geneticamente treinados e informados para a manutenção.
Por tudo isto, permitam-me que não possa senão sentir-me absolutamente indignado e ultrajado como ser humano, regressado à humanidade, com o que aconteceu hoje na montanha da Pena, em Guimarães, onde uma aglomeração de pessoas se concentrou, como se enviadas ao passado numa máquina do tempo, para obter a indulgência plenária do Papa Francisco através do cardeal D. Manuel Monteiro de Castro. Um Papa que tem tanto de frescura como de obscuridade, tanto de novidade institucional como de regressão doutrinal. Vestidas com roupas medievais, mais rudes, aquelas simples pessoas não seriam em nada diferentes das que num passado não muito longínquo, mas obliterado pela evolução, se vendiam e entregavam compulsivamente aos biltres exploradores de consciências, enrolados em sotainas, comprando a cura da doença por eles mesmos inventada. A um povo ignorante e temente qualquer promessa de salvação e cura é vendida com o mesmo despudor e aceitação que a mercadoria contrafeita de um vendedor de banha da cobra num qualquer mercado de província. Sobretudo se for anunciada como sendo grátis.
Diz o Jornal de Notícias do século XXI que se fez história, apesar de as hóstias consagradas terem esgotado. O problema seria resolvido por wi-fi, por rádio ou televisão. O passado a repetir-se no presente por meios que o futuro antecipou. O obscurantismo a alardear-se, a procurar sobreviver. A mentira e a mediocridade exploratória de uma instituição ancestral a impor-se a um povo que se mantém ignorante porque quem tem a capacidade para o educar sobrevive parasitando essa mesma ignorância. Uma ignorância que cultiva o sofrimento e a submissão, porque incapaz do prazer e da serenidade da compreensão.
Sabemos que nem todos os crentes são ignorantes das realidades e vicissitudes existenciais. Muitos dos que eu tenho visto a derreterem-se em elogios a este novo Papa (tal como se derretiam aos outros que o antecederam), são pessoas de bem, cultas, informadas, perspicazes. Apenas uma coisa nos distingue: a cobardia moral e intelectual. A cobardia que os impede de reconhecer a exploração da ignorância mais primitiva com que tanto se ofendem sempre que equiparados no mesmo patamar de irracionalidade por qualquer descrente mais visceral.
A religião organizada, com as suas crenças, dogmas e doutrinas, não foi criada para proteger os mais fracos. Foi e continua a ser um método eficaz de os multiplicar, porque lhes transmite a ilusão de os fortalecer, enfraquecendo-os.
Um placebo, portanto. Tal como o meu cinismo.