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Cristiane Pacheco

21 de Setembro, 2005 Cristiane Pacheco

Deus é surdo?

Uma das maiores desgraças que podem acontecer a um cidadão neste país tropical é morar próximo a um templo evangélico. Os pastores, não satisfeitos em pregar as habituais xaropadas entre as quatro paredes de seu estabelecimento comercial, fazem questão que toda a vizinhança escute sua voz histérica e as músicas pavorosas feitas especialmente para louvar o seu deus (e vender milhões de CDs, claro). Com as portas abertas e potentes amplificadores, esses assassinos da paz conseguem levar os moradores do bairro à loucura, tornando seus sábados e domingos verdadeiros suplícios. A charanga dos fanáticos começa cedo e só termina após 22h.

Mas, perguntariam vocês, não existe por aí uma lei que proteja o cidadão da poluição sonora? Sim, em todos os estados brasileiros existem leis e programas para fiscalizar e coibir abusos deste tipo. Mas essas leis simplesmente não são cumpridas quando se trata de templos e igrejas. O exemplo mais ignóbil está em São Paulo: quando a prefeitura resolveu implementar o polêmico Programa de Silêncio Urbano, o http://www.chegadebarulho.com/Conteudo_noticias.htm “>conseguiu aprovar uma lei que amenizou as regras referentes aos templos: multas bem inferiores (redução de até 96%), prazo de 90 dias para o templo «consertar» o que está errado (enquanto os outros estabelecimentos são multados na hora) e medição dos decibéis não no próprio templo, mas na casa de quem reclamou. Além da lei ser discriminatória (uma vez que os decibéis dos cultos não são mais suportáveis que os dos bares e casas noturnas), não é aplicada com rigor. Os bairros mais humildes, favelas e pequenas cidades estão entregues à própria sorte. Em outros locais, os templos misteriosamente suspendem os cultos ou desligam os alto-falantes exatamente no dia em que o fiscal resolve averiguar as denúncias. Deus é meio surdo, mas pelo visto muito bem relacionado.

20 de Setembro, 2005 Cristiane Pacheco

A cruz que o Estado carrega

O juiz brasileiro Roberto Arriada Lorea, de Porto Alegre, proporá na próxima semana, durante o 6º Congresso de Magistrados Estaduais, a retirada dos crucifixos das salas de audiências e de julgamentos nos foros e no Tribunal de Justiça (TJ) do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Ele afirma, com toda a razão, que «A presença dos símbolos religiosos – basicamente crucifixos – coloca os foros e o tribunal sob suspeição».

É vergonhoso ter que noticiar algo que já deveria ser regra num país que se diz laico. Mas o fato é que os crucifixos são elementos decorativos indefectíveis em repartições, escolas, ministérios e demais órgãos públicos brasileiros. Num país de maioria católica, tal distorção – um indiscutível descumprimento da Constituição Federal – raramente é contestada e, quando o é, encontra como resposta apenas desprezo, pouco caso, quando não escárnio. O presidente do TJ gaúcho, Osvaldo Stefanello, declarou por exemplo que não dará importância à proposta do juiz Lorea, pois «O Judiciário tem coisas mais importantes com que se preocupar do que símbolos nas paredes». A Igreja Católica disse que a idéia é fruto de uma «onda secularista» e a entidade que representa os judeus no Rio Grande do Sul declarou ser indiferente à presença do crucifixo nos tribunais. Por enquanto, apenas a Federação Espírita gaúcha apoiou publicamente a proposta do juiz.

14 de Setembro, 2005 Cristiane Pacheco

A IURD no Brasil (1)

É uma experiência realmente assustadora passar em frente à chamada Catedral Mundial da Fé, o templo principal da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no Brasil. Localizada no subúrbio carioca de Del Castilho, a poucos quilómetros do Centro, a edificação monumental (e medonha) atesta a riqueza desta seita neopentecostal surgida há pouco mais de duas décadas. Em formato de meia lua, com mais de 63 mil metros quadrados de área construída, tem os muros de sua fachada revestidos com 10 mil metros quadrados de pedras trazidas de Israel. Nas reuniões de culto, os pastores despejam suas charlatanices aos mais de 10 mil crentes que se acomodam em modernas e confortáveis poltronas dispostas em degraus, como numa arena. Pelos programas da rede de televisão da IURD, a Record, vemos essas pobres criaturas entregando de boa fé seus salários, anéis, colares, relógios e até mesmo óculos aos abutres que insistem que elas atestem sua fé doando a Cristo seus bens materiais. Só assim Deus as fará cada vez mais prósperas.

Além do dízimo e das doações de milhões de fiéis em todo o território nacional, o cofre da IURD se locupleta de outras fontes de renda. Um dos maiores representantes da IURD no Congresso Nacional, o bispo Rodrigues, renunciou ao mandato de deputado federal nesta última segunda-feira (12/9), para evitar sua provável cassação. Estava envolvido num amplo esquema de corrupção. Em outro episódio envolvendo a IURD, em Julho deste ano, a Polícia Federal encontrou com o bispo e deputado federal João Batista Ramos e mais seis pessoas, sete malas contendo cerca de 10 milhões de reais. Apesar da IURD afirmar que o dinheiro era proveniente do dízimo arrecadado, a presença de notas seriadas e a dificuldade em explicar a origem do dinheiro fazem com que a polícia não acredite muito na história. Suspeita-se de lavagem de dinheiro advindo da corrupção. O mesmo João Batista Ramos já respondia a processo no Supremo Tribunal Federal por crimes de falsidade ideológica e contra a ordem tributária. O bispo e senador Marcelo Crivella também responde ao mesmo processo, entre outras coisas por ser sócio-proprietário de uma TV mesmo exercendo um cargo político.

Essa corja está em Brasília para legislar pela causa de Deus e tentar impor à sociedade leis condizentes com as suas crenças lamentáveis, mas também, e sobretudo, para enriquecer ainda mais a igreja do bispo Edir Macedo.

9 de Setembro, 2005 Cristiane Pacheco

Só Cristo salva (já que Bush não o fez)

Após a demora inexplicável da Casa Branca e dos governos estadual e municipal na assistência às vítimas do Katrina, que destruiu uma das regiões mais pobres dos EUA, o presidente Bush instituiu a próxima sexta-feira (16/9) como dia nacional de oração pelas vítimas do furacão.

Será que os cristãos norte-americanos acreditam que o descaso vergonhoso do governo com milhares de pessoas isoladas sem água e sem comida, a inacção e a preocupação maior com os saques do que com as vidas humanas serão desculpados com meia dúzia de pai-nossos e ave-marias? Rezará George W. Bush pelos negros mortos no Sul? Chegarão as orações aos ouvidos de Deus?

E o que pensa, afinal, um cristão a respeito de catástrofes desse tipo? Deus as envia para punir os infiéis e pecadores, como diz a Bíblia? Mas se assim é, que Deus é esse que leva a reboque de sua vingança centenas de vidas de pequenos inocentes ainda sem máculas. Ou Deus não interfere em questões mundanas e os furacões são fenómenos naturais regidos por leis naturais ou pelo acaso? Se assim for, Deus é de fato omnipotente?

Velhas perguntas que poucos crentes, infelizmente, hão-de fazer quando estiverem rezando no próximo dia 16.

13 de Junho, 2005 Cristiane Pacheco

Brasil 1 x Itália 0

Apesar da ICAR ainda ser uma pedra no sapato do Estado brasileiro, lendo hoje o noticiário fiquei com a impressão de que nem estamos tão mal cá neste país tropical. Enquanto os italianos deram ouvidos à campanha do Papa para o não comparecimento às urnas no referendo que valida da lei da fecundação assistida, o governo brasileiro decidiu financiar estudos com células estaminais embrionárias. O ministro da saúde brasileiro afirmou hoje ao anunciar a decisão: «Respeito as convicções religiosas e ideológicas, mas elas não podem atrasar o avanço da ciência». O Congresso Nacional brasileiro conseguiu aprovar em março deste ano a Lei de biossegurança que liberou as pesquisas com células estaminais, apesar da forte campanha e do lobby de católicos e evangélicos.

Já na Itália, a lei aprovada em 2004 e agora validada pelo referendo é uma das mais restritivas e conservadoras da Europa: proíbe a doação de sêmen e óvulos a terceiros, a pesquisa com células estaminais, limita a três o número de embriões a serem fecundados pelo método assistido, proíbe exames clínicos que detectam doenças graves no embrião antes deste ser implantado no útero e, por fim, tornam os direitos do embrião iguais ao de uma pessoa nascida. Como menos de 50% dos italianos compareceram às urnas o referendo fica invalidado e a lei de 2004 automaticamente mantida.

Lamentável que os italianos tenham, ao que parece, aderido à campanha do boicote ao referendo promovida pela ICAR, pois além desta lei ser um atraso evidente para a ciência, tal campanha é um atentado contra um dos mais legítimos instrumentos do processo democrático.

1 de Junho, 2005 Cristiane Pacheco

Notícias d´álem-mar

De comentarista e grande admiradora deste Diário, passo agora a fazer parte de sua equipe. Como brasileira, pretendo contribuir trazendo informações, críticas e avaliações sobre o que se passa nessas bandas de cá do Atlântico, no maior país católico do mundo.

O Estado brasileiro é oficialmente laico desde a sua primeira Constituição republicana, promulgada em 1891. Passados mais de 100 anos, no entanto, ainda não conseguiu manter-se totalmente desinfectado da influência da ICAR. E enquanto ainda engatinhava nesta tarefa, eis que surgiram novas influências nefastas representadas pelas igrejas neopentecostais, cada vez mais atuantes e ameaçadoras.

De um lado do ringue, temos a ICAR perdendo cada vez mais o seu rebanho. De outro, o crescimento das igrejas evangélicas, que prometem prosperidade em troca do dízimo e – o que é pior! – do voto. A ICAR continua a se imiscuir nos assuntos do Estado através de suas constantes pressões contra decisões do Congresso Nacional ou do Poder Judiciário. A IURD e outras neopentecostais optaram por uma estratégia mais direta: fazer parte do Estado, lançando ou apoiando candidatos evangélicos para cargos executivos e legislativos municipais, estaduais e federais. A chamada «bancada evangélica» hoje representa uma das mais graves ameaças a laicidade do Estado brasileiro. Por fim, e em grande desvantagem, encontram-se aqueles que lutam por uma completa separação entre religião e Estado.

A imagem acima é um exemplo do que temos por aqui. Mas não é só na nossa moeda que o nome de um deus aparece: nossa última Constituição, de 1988, foi promulgada «sob a proteção de deus». Temos crucifixos em quase todas as repartições públicas, das escolas primárias ao Supremo Tribunal Federal. São feriados nacionais o Corpus Christi (Corpo de Deus), o Natal, a sexta-feira da paixão e o dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do país. No Rio, temos ainda os feriados de São Jorge e de São Sebastião. O ensino religioso confessional já é uma – amarga, estúpida, intragável! – realidade nas escolas públicas dos Estados do Rio de Janeiro e da Bahia.

Este é o Estado «laico» em que vivo. Não creio que o que aconteça por aqui seja de interesse apenas dos brasileiros. O avanço da intolerância, do obscurantismo e do poder das igrejas em qualquer canto do mundo merece sempre ser denunciado e combatido. Essa é uma luta de todos nós.