“Um grande negócio” e uma “mistificação”
Dois presidentes de associações, uma de ateus e outra que defende a separação entre Igreja e Estado, contam como olham para Fátima.
CAMILO SOLDADO 30 de Abril de 2017, 6:58
A Associação República e Laicidade (ARL) nasceu em 2003 para defender a separação entre o Estado e a Igreja, mas nela cabem ateus, católicos, agnósticos e pessoas cuja fé é difícil de definir. “Tenho uma visão negativa” sobre o fenómeno que nasceu “num contexto de criar uma manifestação contra a Primeira República” devido à questão do Estado laico afirma Ricardo Alves, que é o presidente da associação, mas que sublinha que fala ao PÚBLICO sobre Fátima a título pessoal.
“Foi para isso que serviu em 1917”, sentencia. Depois disso, durante o Estado Novo, “passa a ser contra o comunismo”. Actualmente “é um grande negócio e provavelmente uma das grandes fontes de sustentação de Igreja Católica em Portugal”. Não há forma de verificar esta declaração de Ricardo Alves.
(…)
“Uma multinacional da fé”
Carlos Esperança, presidente da Associação Ateísta Portuguesa, também observa Fátima pelo prisma financeiro e não vê na visita do Papa Francisco motivos para o suavizar. “A Igreja Católica é uma multinacional da fé. O Papa é o seu primeiro director-geral, como tal não pode abandonar as suas sucursais”.
Ateu desde os 14 anos mas com formação católica, Carlos Esperança lembra mesmo que há “muitos católicos que não se revêem” nesta versão da “vinda de uma virgem saltitante pelas azinheiras” e fala numa “mistificação muito bem caracterizada” pelo Padre Mário de Oliveira (que escreveu o livro Fátima S.A.).
Tal como o responsável da ARL, Carlos Esperança entende que Fátima teve os seus alvos consoante o período histórico: Primeira República no começo, comunismo depois e, mais recentemente, “transformou-se numa plataforma contra o ateísmo”. “Em 2008 até houve um cardeal português que presidiu a uma peregrinação sob o lema “contra o ateísmo”, recorda, criticando o que vê como “carácter belicista” de Fátima.
Carlos Esperança foi a Fátima em contexto laboral e acabou por passar pelo santuário. Foi há cerca de 15 anos, mas recorda a “grande impressão” de ver as pessoas a fazerem o percurso de joelhos. “Uma situação pela qual tenho imenso respeito”, realça.
In Público
«Mais de 100 anos após deixar de ter religião oficial, Portugal é um país que ainda confunde liberdade religiosa com liberdade de ser católico».
(Fernanda Câncio – DN, 1 de maio de 2017)
Índia – O parlamento do estado de Gujarat, no oeste do País, aprovou um projeto de lei que admite pena de prisão perpétua e multas até 100 mil rúpias para crimes de massacre de vacas, animais sagrados para os hindus. E há sempre quem exija respeito pela fé!
Turquia – O partido islamita (AKP) confunde-se com o Governo e o Estado. Erdogan usa-o para asfixiar as liberdades, perseguir opositores e abolir a laicidade, a caminho do poder totalitário com que deseja consagrar-se como sultão otomano até 2029.
Boko Haram – Este ramo africano do ISIS, já usou, em 2017, 27 menores em atentados suicidas. Desde 2014, segundo a Unicef, contam-se 117 (80% meninas), na Nigéria, Chade, Níger e Camarões. É a dilatação da fé com o Corão na mão e bombas à cinta.
UE – Erdogan consolidou o poder com o referendo, em estado de emergência. A paz na Síria fica mais difícil, os curdos mais ameaçados e a Europa apavorada, sob chantagem, com 4 milhões de refugiados na Turquia. Vem aí mais uma ditadura islâmica.
Fátima – Os crentes merecem respeito e a verdade ainda mais. As visões, não originais, passaram a aparições. Em 1917 eram contra a República, em 1930 contra o comunismo e, após a implosão da URSS, contra o ateísmo. A fé e a superstição têm pés de barro.
Governo – A tolerância de ponto, em 12 de maio, foi a nódoa que manchou o percurso de uma governação honesta, numa cedência gratuita ao populismo que feriu a laicidade e atentou contra a lei da liberdade religiosa.
Vaticano – A viagem de alto risco do Papa Francisco ao Egito foi um ato de coragem e simbolismo a um país onde os cristãos coptas (10% da população) correm o risco de extermínio pelo fanatismo assassino dos Irmãos Muçulmanos.
Pouco depois de o Papa Francisco ter iniciado o seu pontificado, o beato João César das Neves abandonou as homilias pias e dedicou-se às políticas, onde zurze a esquerda com o desvelo com que soía azorragar os infiéis ao seu deus.
Neste sábado, dia 29 de abril, teve uma recaída. Um súbito ataque de fé fê-lo regressar à defesa das “aparições” de Fátima, com o mesmo desvelo com que defende Cavaco Silva e Passos Coelho, e igual ódio a hereges religiosos ou políticos.
O homem não ensandeceu, mas nada aprendeu depois do concílio de Trento. Espuma de raiva contra os «clérigos [que] parecem dizer que, afinal, a Senhora não esteve lá», em Fátima e pergunta dilacerado: «Descobriu-se algo de novo ou são mais confusões e mal-entendidos?».
O ódio de estimação vai para Anselmo Borges, catedrático jubilado de filosofia e padre, por ter afirmado ao Expresso que “é evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima”, e até “D. Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano e um dos mais respeitados historiadores portugueses da religião”, por quem tem grande respeito e admiração, ao contrário do outro, afirmou que “Maria não vem do céu por aí abaixo”.
E, para provar que a Senhora de Fátima fez excursões à Cova da Iria, faz o paralelismo: «Jesus, após a sua ressurreição, apareceu repetidamente aos discípulos. Não vinha na forma anterior, pois ficava oculto à primeira vista (Lc 24, 16; Jo 20, 14), surgia nas salas com as portas fechadas (Jo 20, 19) ou desaparecia de repente (Lc 24, 31). Apesar disso, tinha um corpo que podia ser tocado (Lc 24, 39; Jo 20, 27), partia o pão (Jo 21, 13; Lc 24, 30) e comia peixe assado (Lc 24, 43; Jo 21, 15).
JCN, não atribui à sua senhora de Fátima o apetite que Jesus tinha em defunção, e que dificilmente podia ser saciado com a merenda dos pastorinhos.
Depois de se atirar ao padre Anselmo Borges como gato a bofes (ódio de estimação), de lhe reprovar a repugnante afirmação, “Posso ser um bom católico e não acreditar em Fátima porque não é um dogma”, o que, sendo verdade (JCN dixit) só pode fazer “um fiel que se limite aos dogmas dificilmente consegue amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.»
«Que Nossa Senhora esteve realmente em Fátima sabemo-lo com segurança desde 1930, quando a autoridade competente, o senhor bispo de Leiria, decidiu “declarar como dignas de crédito as visões das crianças na Cova da Iria, freguesia de Fátima, desta diocese, nos dias 13 de maio a outubro de 1917” (carta pastoral de D. José Correia da Silva de 13 de Outubro de 1930)», um bispo a quem reconhece mais autoridade que a si próprio.
JCN não elucida os leitores sobre o meio de transporte e a proveniência da sua senhora de Fátima, avatar lusófono da de Lourdes, em 1917, mas termina admoestando os dois clérigos: «Esta situação, afinal, é uma realidade profundamente evangélica. O Senhor Jesus disse-o abertamente uma vez, quando lamentava a falta de fé das cidades privilegiadas de Corazim, Betsaida e Cafarnaum: “Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado.” (Mt 11, 25-26).»
E foi assim que o beato JCN, ‘não sendo sábio, mas pequenino’, terminou a homilia «A Senhora veio mesmo».
Bem-aventurados os pobres de espírito…
A tolerância de ponto decretada pelo Governo é um ato indigno de uma República laica. A separação das Igrejas e do Estado não é apenas uma conquista civilizacional, é a exigência do espírito e da letra da Constituição da República Portuguesa.
A vista do Chefe de Estado do Vaticano exige honras de Estado, mas o Papa fez questão de declarar-se mero peregrino. A sua visita é, pois, um assunto do foro religioso e, mesmo para alguns católicos, uma caução ao maior embuste do século XX, montado em Portugal contra a República, em 1917, aproveitado contra o comunismo, a partir de 1930, já durante a ditadura fascista e, depois da implosão da URSS, contra o ateísmo.
As alegadas visões de três pastorinhos analfabetos correspondem ao catecismo terrorista que ainda apavorava as crianças da década de 40 do século passado, com o Inferno em plena laboração e as almas a frigirem em azeite e em perpétuo sofrimento, com o Diabo a mergulhá-las com um garfo de 3 dentes até ao fundo do caldeirão.
A cedência vergonhosa à chantagem clerical é digna de um país do Terceiro Mundo, e inexplicável numa República laica e democrática.
O lamentável precedente abre caminho para as reivindicações de outras religiões, algumas de cariz fascista, a exigirem igualdade de tratamento, desarmando o Estado laico do seu poder de contenção de exigências ilegítimas.
A devoção chegou ao aparelho de Estado. Às maratonas pias que os crentes fazem pelos caminhos de Portugal, em direção à Cova da Iria, juntaram-se os edis, cuja fé se agrava em anos eleitorais, com excursões pias motorizadas e farnel pagos pelo erário público aos idosos dos lares da terceira idade.
O devoto Marcelo Rebelo de Sousa gravou um vídeo promocional de Fátima em que menciona a sua qualidade de PR e o Governo deu tolerância de ponto. Hoje, permite-se que não se trabalhe para assistir à procissão das velas, amanhã exigir-se-á que se reze o terço até que as pontas dos dedos doam.
Ai, meu Portugal dos 3 FFF, Fátima, Futebol e o Fado. Triste fado de quem acaba de rastos ou de joelhos!
Em 2014, novas leis do rei Adbullah vieram definir os ateus como terroristas !! Nada mal para quem não tem uma constituição !!
Quando, em 1953, entrei para o Liceu Nacional da Guarda, já conhecia a cidade. Vivia a duas léguas de distância, numa aldeia onde tinha ido um carro com a imagem da Sr.ª de Fátima rodeada de pombinhas, milagre que extasiava as criaturas e as fazia ajoelhar no chão, e de padres com pressa de recolherem o óbolo e demandarem outra paróquia.
Levava no currículo 4 sacramentos, que a Igreja não brincava em serviço, e três exames oficiais: o da 3.ª classe, feito em Vila Fernando, o da 4.ª, com distinção, na escola Adães Bermudes, e o de admissão ao liceu, mas já antes ia à cidade, onde o meu pai regressava após o exílio de cada promoção na hierarquia das Finanças. Recordava a deslocação para ver o Carmona, com o bigode e a farda da fotografia da minha escola, na Praça Velha, cheia de gente, e o carro de bombeiros ardido nesse dia. Vi a primeira farda com dragonas, com o homem dentro e o bigode de fora, sob o boné, aos ombros do meu pai.
Nesse ano esperei dois meses pelo seu regresso de Bragança, em casa de pessoa amiga, antes de nos hospedarmos na Pensão da D. Bernardina, até arrendar casa.
A Guarda albergava mais padres por metro quadrado do que Braga e os estudantes eram a maioria da população. Escasseava saneamento, luz e água canalizada em muitas casas, mas havia missas todos os dias e o terço no mês de maio, o mês de Maria, na igreja da Misericórdia e na de S. Vicente.
Quem precisasse de fazer um telefonema, depois do fecho dos CTT, tinha, até à hora do encerramento, o Café Cristal, que funcionava como posto público, onde os estalidos dos períodos de conversação desencorajavam, pelo preço, o excesso de palratório.
Nos três Cafés da cidade, Mondego, Monteneve e Cristal, só duas mulheres, ambas de nome Dores, celibatárias e tementes a Deus, frequentavam o Café. Uma, era a D. Dores do Centro (Centro de Assistência Social), e a outra, a D. Dores Mantas, que se tratavam reciprocamente por Sr.ª D. Dores e frequentavam o Café Mondego. Este era, dos três, o que tinha o melhor bilhar livre, o mais saboroso café e o mais nauseabundo sanitário. Entrava-se nos urinóis com a respiração suspensa. Um dia, um engraçado escreveu em letras garrafais, na parede, à altura dos olhos, «Ninguém diga desta água não beberei», e o odor passou a agredir demoradamente as pituitárias, vítimas do riso irreprimível.
Merece referência o ‘Centro’, onde a D. Dores era a precetora de jovens que não tinham posses para frequentar o liceu ou o colégio. Era meritória a obra pia, estabelecimento de ensino de alunos pobres da cidade e internato dos que vinham das aldeias, uns e outros moços de recados antes de chegarem a empregados de balcão nas lojas onde a D. Dores negociava funções e salários com que ajudavam a pagar a educação. Alguns chegaram longe, devendo ao Centro o impulso que os levou à Universidade, passando por diversos empregos com que custearam os cursos superiores.
Nesse tempo, por constrangimento social e ativismo pio de alguns professores, era usual a desobriga coletiva dos estudantes antes das férias da Páscoa, com o preenchimento de uma ficha destinada ao padre Isidro, destino duvidoso se acaso fosse esse pároco, de tão pouco siso, o responsável do ficheiro. Mas era um meio de controlo ideológico, isso era.
Eram parcas as diversões na cidade. As bicicletas, alugadas à D. Prazeres, eram o regalo caro e apetecido. O circo, o carrocel e os carrinhos de choque surgiam com a feira de S. Francisco, em outubro, e a de S. João, em junho. Depois, só restavam os matraquilhos.
A televisão foi o acontecimento da década de cinquenta. Perante ela, perdeu relevância o dedo de S. Francisco Xavier, exposto três dias na Sé, onde, no adeus, sermoneou o padre e deputado da U. N., Pinto Carneiro. Foi uma notável peça de parenética, antes de a relíquia prosseguir em rali pio, pelo país. Só a visita de Humberto Delgado, em 1958, inflamou os ânimos, mas os alunos do liceu ficaram retidos, a pretexto de uma palestra imposta, sobre Gil Vicente, enquanto o general, candidato a PR, permaneceu na cidade.
A Guarda foi um alfobre de quadros do País, e caíram no esquecimento as mulheres que foram das aldeias com filhos, sobrinhos e filhos de vizinhos, deixando o campo, a casa e os maridos, para serem o suporte dos estudantes numa espécie de albergaria onde os que não eram filhos se alojavam ao farnel, pagamento em géneros e cem escudos mensais, geridos de forma a que todos pudessem frequentar os estudos e singrar na vida.
A amnésia coletiva sobre essas heroínas anónimas, tantas vezes analfabetas, que faziam de mães e criadas, que colocavam o dedo tingido nos contratos de arrendamento, da luz e da água, que iam à praça, compravam os víveres, o carvão, a carqueja e o petróleo, faziam as camas, lavavam a roupa e preparavam as refeições, é uma injustiça para quem fez a dádiva que evitou à geração seguinte a repetição do sofrimento que foi o seu.
No despojamento, no sacrifício silencioso e na determinação dessas governantas houve uma epopeia coincidente com o papel que era reservado às mulheres, o maior sacrifício e o mais generoso tributo na mais anónima condição e na mais pungente ingratidão.
E ainda arranjavam tempo para, durante os exames dos filhos, se ajoelharem na peanha do lado esquerdo do transepto da igreja de S. Vicente, para implorar ao patrono que os protegesse.
No lado direito, noutra peanha, sob o olhar resignado da Virgem, rezavam ave-marias as prostitutas que vinham dos bordéis, ali perto, na Rua Poço do Gado, e que, às vezes, soía serem mães, também. Não faltavam, aliás, à ditadura, filhos delas, não dessas que agora recordo, mas isso são contas de outro rosário, isto é, prosa para outras crónicas.
Do despacho da Lusa
“Ataque” ao Estado laico
A Associação Ateísta Portuguesa considera que a decisão já anunciada é “um descarado ataque à laicidade” do Estado. Essa medida “é uma atitude indigna de submissão perante a Igreja Católica”, disse ainda o presidente da AAP à agência Lusa.
O dirigente ateísta rejeitou ainda “a caução que, de certo modo, está a ser feita pelas entidades públicas a uma encenação que começou por ser contra a República”. Em 1930, as alegadas aparições “passaram a ser contra o comunismo e, depois da implosão da União Soviética, contra o ateísmo”, salientou Carlos Esperança.
“Esta encenação pia tem tido a colaboração de autarquias que sofrem ataques de fé e proselitismo em anos eleitorais”, criticou.
Para o presidente da AAP, a concessão de tolerância de ponto põe em causa “a letra e o espírito da Constituição da República” e constitui “uma traição à separação entre as igrejas e o Estado”.
Carlos Esperança criticou ainda os autarcas que organizam excursões a Fátima, sobretudo com idosos e em ano de eleições locais, “com transportes e vitualhas” pagos por câmaras municipais e juntas de freguesia, “só com a bênção a cargo das autoridades eclesiásticas”.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.