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Carlos Esperança

24 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Paulo Portas – beato e reaccionário

Ciclicamente a descolonização regressa à actualidade. Reaparece a cumprir a função de dividir os portugueses, quando parece esquecida, pela mão dos que deviam calar-se. Recordam-na os que nunca aceitariam qualquer outra como boa e o problema reside mais na sua própria derrota perante a história.

Paulo Portas (PP) tem uma grave dificuldade. Ou diz o que pensa e cria problemas ao governo ou diz o que deve e cria perplexidade no partido.

Sendo estreita a margem em que pode mover-se aconselharia a prudência o silêncio, mas impõe-lhe o feitio o ruído.

Acossado por Mário Soares que gosta de apontar os desmandos reaccionários ao antigo aluno dos jesuítas, atira-se contra a descolonização e, em vez de ferir o Dr. Soares, que tem a pele dura, ofende centenas de milhar de portugueses. Aos retornados acorda-lhes o ressentimento de quem perdeu haveres e alterou o rumo das suas vidas, aos ex-militares impede-os de fazerem a catarse dos anos, longos e dolorosos, da guerra colonial.

Assim, PP, para manter a fé dos que o elegeram, vai sistematicamente à procura de um passado que nada tem de glorioso e, muito menos, de recomendável.

Persiste em Portugal uma direita que, se pudesse arrancar Abril do calendário e suprimir o dia 25 aos meses, continuaria fora da Europa, orgulhosamente só, aliviada de carregar a vergonha do passado, feliz por poder reeditá-lo. É essa direita cuja liderança PP disputa com Manuel Monteiro, direita que nunca ficará satisfeita, que cria instabilidade no aparelho de Estado e no país.

No intervalo de muitas missas e outras tantas hóstias o pensamento desta gente é sempre execrável – na descolonização, no aborto, na imigração. Durante a liturgia ainda há-de ser pior.

23 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Belo poema de um ateu

A (DES)VELADA (poema)

Ai, quem me dera fornicar com uma muçulmana velada…

em trâmite para desvelada…

em trânsito de que promana…

para a ideia ateia…

Persuadi-la… primeiro… da inânia do islâmico vespeiro…

Convencê-la… segundo… da inópia das religiões do mundo…

E vê-la… e vê-la… terceiro… saindo da ominosa ameia…

fruindo o luminoso carreiro…

da ideia ateia…

Ah, quem me dera postarmo-nos nus… nós… nos nossos amplexos

íntimos… sentir-te!

Entregarmo-nos à languidez meiga dos corpos… envolver-te!

Prazer-me com o fulgor amável da tua boca…

o titilar suave da tua língua… beijar-te!

Sentir a placidez da tua mão…

da tua mão morna e boa…

da tua mão-descobridora…

da tua mão-carícia…

da tua mão-propagadora…

da tua mão-blandícia…

senti-la!

Afagar o teu peito com perfeito jeito de preito… senti-lo!

Percorrer a tua cálida e lábil vulva… senti-la!

Sentir-te…sentir-te… minha querida muçulmana, em vias de o deixares

de ser…

Vasculhar-te… acariciar-te… abraçar-te… beijar–te…

entrelaçarmo-nos!

Sentir o teu corpo dulciolente… a tua mão dulcífera… afagando-me

dulcifluamente… em ambiente dulcilucente!…

Afeiçoarmo-nos numa duidade apaixonante…

apreendermo-nos na pulsão do imo… testa a testa… cara a cara… boca a

boca… corpo a corpo… sentir-te, minha querida desvelada… sentirmo-nos!

Custóias, 25 de Dezembro de 2003

João Pedro Moura

23 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Missa da Abertura do Ano Judicial

A MISSA de abertura do ano judicial em 20 do corrente mês (ver Público) é uma notícia que faz de Portugal um país exótico, a grande distância dos países atrasados.

Com efeito, as demoras dos processos, as dificuldades de investigação e as arreliadoras prescrições justificavam medidas vigorosas. A ministra Celeste Cardona, amiga do peito e da missa de Paulo Portas, não poupa nos investimentos.

Num país obsoleto certamente tentaria um feitiço, aqui opta por uma missa. Nas tribos ancestrais o feiticeiro é recebido com pompa e circunstância, Portugal reserva essa atitude para o cardeal patriarca que, em vez de fumo recorre ao incenso, em vez do fogo atira-se à homilia.

Claro que é uma vergonha para um país oficialmente laico, onde nem todos os governantes sabem que é e alguns se esforçam para que deixe de sê-lo; claro que não está provada a eficácia da missa no bom andamento da justiça nem a bondade da homilia no discernimento dos agentes judiciários; claro que a água benta não se distingue da outra.

Mas perante o despautério pode estar em curso uma tentativa para introduzir como medida de coacção a apresentação semanal à missa e, em casos mais gravosos, a presença diária no terço.

Como crimes sujeitos a prisão maior podem introduzir-se o divórcio, o adultério, a apostasia, a blasfémia e outros. O terço e o mês de Maria podem vir a fazer parte das medidas punitivas.

Já estamos a ver um advogado a pedir redução de pena para um estuprador em duas novenas e vinte ave-marias.

À ministra Cardona não devem faltar devotos nem poetas a querer dedicar-lhe uma elegia. Há-de demovê-los o receio de encontrar uma rima adequada. Mas os cidadãos gostariam de vê-la excomungada no Governo.

23 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Mensagem ao 1.º Encontro Nacional de Ateus – Coimbra

A religião não é um mal necessário nem Deus uma desgraça inevitável. A origem divina do poder está a dar lugar à soberania popular e a fé vai deixando de ser obrigatória, apesar dos que vêem na progressiva secularização uma ameaça. São muitos os parasitas da fé que se batem, com a ferocidade de que só os clérigos são capazes, contra o livre pensamento, mas este está a ganhar terreno, um pouco por todo o mundo.

Há um delito comum às 3 religiões do livro e suas numerosas seitas – o proselitismo. Cada uma pretende impor o único deus verdadeiro – o seu – e a vontade divina decifrada por funcionários de serviço. Todas aspiram à globalização, exigindo o exclusivo. Odeiam a concorrência e todos os que recusam tornar-se consumidores. Todas actuam como fontes de violência devoradas pela vocação totalitária.

Nem os hindus resistem, de vez em quando, a queimar mesquitas. Até os budistas são capazes de se entusiasmarem com a repressão, como acontece no Sri Lanka sobre os Tamiles. Não há definitivamente religiões boas.

Sabe-se como o proselitismo converte as diferenças em divergências e como procura resolvê-las. A fé é cega e irracional. A história da evangelização é um rio de sangue que desagua num mar de horrores. Por isso a laicidade se tornou uma exigência em nome da tolerância, uma garantia de liberdade para todas e cada uma das religiões.

A laicidade é desconhecida no mundo árabe, tolerada nos EUA e na Europa e não consolidada em Portugal. A contestação tem sempre subjacente o combate a outra religião ou à ausência de uma.

A tragédia dos países árabes está menos na religião que professam do que na natureza não secular do Estado. O ódio inclemente dos seus clérigos ao laicismo e a arrogância moral exacerbam-se com o declínio económico e cultural. A brutalidade agrava-se nas culturas em risco de extinção. A evolução jurídica, política e social está aí refém do poder eclesiástico e dos versículos do livro sagrado. O vendaval de horrores que varre o Médio Oriente é uma catástrofe brutal, com a violência da guerra a alastrar. Enquanto este estado de coisas persistir a paz é impossível e os mais elementares direitos do homem serão postergados.

O obscurantismo islâmico remete-nos para a Idade Média mas o proselitismo não está erradicado da cultura judaico-cristã.

O maior inimigo dos judeus é o sionismo que debita a Tora com o mesmo desvario místico com que os mullahs recitam o Alcorão. Os judeus ortodoxos não ameaçam apenas a Palestina, são um perigo para a paz e para a natureza democrática do Estado de Israel.

Nos EUA chegou à presidência um crente exaltado que conduz a política externa do país mais poderoso do mundo com desvarios metodistas, apesar da separação constitucional da Igreja e do Estado. No antigo bloco soviético anda à solta o cristianismo ortodoxo. O Vaticano faz a ponte entre o estalinismo e o concílio de Trento, com um exército de sotainas espalhado pelo mundo e tropas especiais do Opus Dei a actuar sub-repticiamente à escala mundial contra a natureza secular das instituições democráticas e a laicidade do Estado.

Sabe-se como na Irlanda a Santíssima Trindade – nódoa caída no preâmbulo da Constituição – retardou as transformações legais, a mesma que sob o nome de «Santíssima, consubstancial e indivisível Trindade» se arroga a origem do poder na Grécia.

No Reino Unido a chefia da Igreja é hereditária e vitalícia com a vantagem de ninguém perguntar à rainha se acredita em Deus nem esta ter poder para o impor. Na Polónia a Constituição, embora se compadeça com os não crentes, refere «os que acreditam em Deus como fonte da verdade, da justiça, do bem e da beleza» à semelhança do seu emigrante mais conhecido e menos recomendável – JP2.

A Itália e a França são países de laicidade sem subterfúgios certamente lembrados da intolerância e do sofrimento que o catolicismo, na ânsia de salvar almas, levou aos cidadãos.

É na herança humanista da Revolução Francesa que assentam o laicismo e a democracia. Por isso tantos se afadigam tanto a denegrir o jacobinismo como se este não fosse a vacina que permite conter os vários «ismos» religiosos que se digladiam e a via para responder à onda de provocações que os crucifixos e os véus se esforçam por atiçar.

A Europa não pode esquecer que o capricho papal de uma Croácia católica pesou no desmembramento da Jugoslávia, que a Polónia exporta religião e padres de acordo com a obsessão paranóica do Vaticano, que nos países da América latina o combate à SIDA, à explosão demográfica, ao aborto clandestino e às ditaduras tem esbarrado na resistência do clero. E, quando um país se enche de religião, esvazia-se a liberdade.

Na Irlanda do Norte, ainda há poucos anos, os actos de terrorismo repetiam-se com monótona regularidade entre protestantes e católicos numa interminável espiral de violência. O IRA deixava a sua macabra assinatura em explosões de proselitismo e engenhos enquanto protestantes promoviam procissões de provocação e acção de graças.

Não foi a sensatez que repentinamente os atingiu, foi o desenvolvimento cultural e económico, a morte da sociedade rural e a anemia da fé que lentamente os foi conduzindo para um relacionamento civilizado embora com risco de recidiva. Aos que sempre encontram desculpas para defender Deus nunca faltam razões para atacar outros homens.

A intolerável fatwa que condenou à morte Salmon Rushdi não foi execrada pelo papa, que não manifestou solidariedade para com o escritor perseguido pela demência mística do Islão. No fundo pensa que as ofensas a Deus, mesmo ao dos outros, justificam a condenação.

E não nos iludamos com os passos de reconciliação que as religiões promovem. Não passam de tréguas. A alegada intenção ecuménica de JP2 não foi mais do que uma tentativa canhestra de formar uma holding internacional sob a hegemonia da ICAR, sem liberdade para agnósticos, ateus e todos aqueles que lutam contra o obscurantismo e o fanatismo.

A violência é uma característica intrínseca das religiões que logo transformam em crueldade. Só o laicismo e a secularização conseguem aplacar-lhes os ímpetos e garantir o pluralismo a que têm dificuldade em acomodar-se. Temos de ser tão firmes na sua defesa como são obstinados os devotos.

Os ateus portugueses comparam a Constituição de 1933, do «país tradicionalmente católico», com a actual, omissa em referências religiosas. A experiência demonstrou que a referência confessional se opunha à liberdade.

Mais importante que os mandamentos da lei de deus é a declaração universal dos direitos do homem. Mais honrosa que a virgindade de Maria é a dignidade da mulher. Mais justos que Deus são os homens na sua progressiva marcha para a eliminação de qualquer forma de discriminação.

O ateísmo não manda queimar livros nem pessoas. Não proíbe. Não condena. Mas não renuncia ao combate pela liberdade.

É por isso que aqui estamos. Foi para isso que nos encontrámos.

Vale mais o primeiro almoço do que a última ceia.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2003

Carlos Esperança

21 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Novo director da Torre do Tombo. O último patamar da boçalidade

No próximo dia 1 de Fevereiro toma posse como director-geral da Torre do Tombo Pedro Dias que segundo o Diário de Coimbra fez as seguintes declarações:

«…os intelectuais quando não são de esquerda ou não têm outras características têm grande dificuldade. Sendo de Direita e heterossexual, tive grande dificuldade», afirmou na conferência de imprensa de ontem».

Ficámos a saber pelo autor do dislate que nos governos anteriores (Guterres, Cavaco e outros) não era necessário ser de Direita e heterossexual para se ocuparem determinados cargos.

Ficámos igualmente a saber que agora é suficiente.

19 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Unidade dos cristãos contra quem?

Segundo o Jornal de Notícias começa hoje a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. E reproduz declarações de D. Manuel Felício, bispo auxiliar de Lisboa: «ao longo do ano que findou, a comunidade católica no nosso país continuou a viver a convicção de que o progresso nas relações ecuménicas com as outras confissões cristãs é imperativo de primeira importância para poder cumprir a sua missão evangelizadora no Mundo e particularmente na Europa».

Conhecendo-se o que entende a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) por «missão evangelizadora» seria motivo de franca preocupação se não ameaçasse apenas com uma arma de eficácia duvidosa e de efeitos colaterais suportáveis – a oração.

Mas vale a pena reflectir sobre a ICAR enquanto não tiver poder para voltar às armas que usou ao longo da sua história:

Ficámos a saber que se considera decepcionada pelo mau relacionamento entre o Patriarcado Ortodoxo de Moscovo e a Santa Sé, omitindo que João Paulo II (JP2) elevou a santos alguns facínoras que perseguiram a Igreja Ortodoxa, não hesitando em confiar-lhes os milagres necessários à promoção.

Quanto à Igreja Anglicana repudia-lhe o acesso das mulheres ao sacerdócio, contrário à sua política de feroz discriminação, e a sagração de um bispo assumidamente homossexual, em franco confronto com a o seu clero, sempre disposto a esconder a orientação sexual.

Mas para que quer a ICAR o «progresso nas relações ecuménicas com as outras confissões cristãs» se continua convencida da sua «missão evangelizadora» e não prescinde dela, continuando a recrutar clientes nos primeiros dias de vida através do baptismo?

Para além de continuar a disputar o mercado da fé com acções agressivas de marketing em que se inseriram mais de mil viagens de JP2, o que a ICAR pretende é uma aliança de circunstância para combater as religiões não cristãs e, sobretudo, os que reivindicam o direito de não ter religião.

A ICAR e o seu estado-maior no Vaticano são conhecidos pela hostilidade com que tratam as outras correntes cristãs e pela intolerância. O espírito da contra-reforma é uma tara genética sem quaisquer sinais de abrandamento. Nem JP2, agarrado ao lugar até ao último tremor, nem qualquer outro papa estão dispostos a renunciar à única monarquia electiva de poder absoluto que se mantém no planeta.

Obs.: A maldade da ICAR não pressupõe a bondade de qualquer outra igreja.

18 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Um dia de sorte para Maria Madalena

Naquele tempo, em Magdala, na antiga Palestina, uma multidão preparava-se para apedrejar Maria sobre quem recaía a acusação de pecadora. Fora um boato posto a correr, talvez por um corcunda da tribo de Manassé, ressentido por se ter visto recusado, que a sujeitara àquele veredicto popular de que não cabia recurso. O princípio do contraditório ainda não tinha sido criado, nem era hábito ouvir o acusado, principalmente sendo mulher, nem a absolvição estava enraizada nos hábitos locais. A lapidação de Maria tinha transitado em julgado.

A lapidação era, aliás, um divertimento muito em voga que deixava excitados os autóctones que habitavam as margens do rio Jordão que atravessava o Lago Tiberíade a caminho do mar Morto. Diga-se, de passagem, que esse desporto ainda hoje é muito popular em numerosos países, para imenso gáudio das multidões, e não faltam adeptos um pouco por toda a parte.

Aconteceu que andando o Senhor Jesus a predicar por aquelas bandas, depois de indagar o que se passava, aproveitou a multidão para se lhe dirigir, e disse:

– Aquele de vós que nunca errou que atire a primeira pedra.

Todos pareceram hesitar. Muitos deixaram cair as pedras com que se tinham municiado. Havia alguma crispação nos que vieram de longe, com sacrifício, e um certo desapontamento de todos os que esperavam divertir-se. Só o Senhor Jesus continuava sereno, a medir o alcance das suas palavras. Mas, eis que da multidão se ergueu um braço e Maria de Magdala caiu derrubada por uma pedra certeira.

Enquanto algumas pessoas a reanimavam, na esperança de repor o espectáculo que tão depressa se esgotara, o Senhor Jesus foi junto do atirador e disse-lhe:

– Então tu, meu filho, nunca erraste? *

– Senhor, a esta distância, nunca.

* Segundo um evangelho apócrifo o Mestre terá exclamado: Mãe!!! **

** De acordo com os exegetas esta exclamação deve-se ao facto de a mãe de Jesus estar convencida de que era virgem mais de 18 séculos antes de Pio IX lhe ter atribuído essa qualidade com efeitos retroactivos.

17 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Sodoma

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido do estratagema que engendrou para que os animais se multiplicassem, a ruminar uma desculpa por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado edificar a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma grande confusão.

Pela planície do Mar Morto espreguiçavam-se cinco cidades que tinham níveis diferentes de desenvolvimento, costumes variados e interesses diversificados. Distinguiam-se Sodoma e Gomorra pela sua enorme riqueza, com um nível de vida de causar inveja, graças ao sector terciário que então não tinha ainda designação adequada, por não haver economistas encartados. As outras eram menos importantes, a acreditar no primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos e dar energia à alma, soltar toda a imaginação de que o mundo era capaz na sua difícil infância e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam os minutos das poucas horas que o expediente dos escritórios lhes tomava para cultivarem a seguir todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aligeirar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroactivos. Sendo o trabalho um bem muito escasso ninguém exagerava na sua apropriação.

Como os livros ainda não tinham sido inventados todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram imensamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as suas ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o criara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os que se divertiam, as crianças, que ainda o não sabiam fazer, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os souberam, e provavelmente algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas.

Ao longe Abraão assistia ao espectáculo que o seu Deus lhe servia à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por ter-se arrependido do fogo que ateara, ou para simplesmente criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus umas promessas a Abraão que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem a profecia.

Sabe-se que Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor Deus e os seus humores, a fé e os seus preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, requintados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ser tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve a criação do verbo, a partir do nome da cidade desaparecida. Ou um qualquer viandante saído antes do fogo e rendido aos encantos do pirómano.

[Texto elaborado de acordo com a memória que guardo das catequistas]

17 de Janeiro, 2004 Carlos Esperança

Sob o título «O ópio dos intelectuais» (EXPRESSO, 10/01/04, João Carlos Espada (JCE) associa-se ao ataque generalizado que, em Portugal, acolheu a proposta francesa sobre a laicidade. JCE reduz a França aos intelectuais do Quartier Latin, acoima a lei de «fundamentalismo, (…) impotente e patético» e atribui-a à ignorância da História por parte de Chirac.

Ora, a guerra dos véus, iniciada por duas alunas francesas, foi uma provocação instigada por clérigos que vêem com bons olhos a burka, a proibição da carne de porco, a excisão e a poligamia, em nome da pureza do islamismo – uma tentativa de desafiar a laicidade do Estado, em vigor desde 1905.

A proposta de lei não põe em causa a liberdade religiosa – como alega JCE – mas apenas que seja usada para perseguir os legítimos direitos das mulheres e impedir que a discriminação se perpetue por constrangimentos sociais. É por isso que há na sociedade francesa um consenso apenas quebrado por comunistas, verdes e trotsquistas. Não tendo a sociedade francesa ensandecido somos levados a crer que, pelo menos, haja motivos fortes para tal decisão.

Os sectores mais reaccionários da igreja católica apoiam a reivindicação islâmica, unidos no proselitismo, à espera de ajuste de contas posterior. A sábia decisão francesa acautela o direito de poder ter qualquer religião, ou nenhuma, perante anacronismos que consideram a apostasia e a blasfémia crimes hediondos merecedores de julgamento sumário e penas perpétuas.

Neste, como noutros casos, a comunicação social tem-se revelado um excelente veículo de difusão de notícias mas um medíocre espaço de confronto de ideias.

Injustamente para a França.