25 de Maio, 2004 Carlos Esperança
O Vaticano é um espaço piedoso
3 virtudes teologais – Fé, Esperança e Caridade.
3 virtudes teologais – Fé, Esperança e Caridade.
Delfina de Jesus e Simão Borrego casaram muito novos, no início da década de sessenta. Tinha ela acabado de fazer 18 anos e ele 19. E não foi por haver mouro na costa que é, como quem diz, ir ela já prenhe, infâmia de solteira que na aldeia o matrimónio lava ou as facadas de pai ou irmão reparam. Nada disso.
Não mereceria o ramo de laranjeira com que se apresentou na Igreja, descaramento murmurado por mulheres vigilantes e amigos do noivo que várias vezes viram desaparecer o casal por trás dumas fragas, enquanto eles se entregavam à prática do pecado solitário, ignorando os riscos da cegueira e da tuberculose com que o Sr. Padre repetidamente os prevenia na confissão e nas homilias.
Nunca se atreveram a aproximar-se pois sabiam da perícia com que Simão punha uma pedra no sítio que pretendia, corno de cabra rebelde incluído, perícia de pastor que os mantinha em respeito.
Limitavam-se a imaginar primícias saboreadas, corpos que se fundiam em êxtase, prazeres fantasiados, gozos por fruir.
As moçoilas da idade de Delfina compartilharam com ela muitas conversas sobre o namoro que os pais de ambos toleraram. Deviam saber coisas que as raparigas guardavam e de que os rapazes se gabavam ou ansiavam por conhecer. Talvez por isso a invejavam tanto sem a imitarem.
Temiam o pecado que lhes perderia a alma, receavam a prenhez que lhes complicaria a vida, adivinhavam a desgraça que lhes enlamearia a honra, imaginavam a pancada com que o pai ou um irmão lhes partiria os ossos. E assim iam resistindo aos olhares incandescentes, às palavras sussurradas, aos convites suspeitos, aos apelos alheios ou ânsias próprias. Até ao dia em que a natureza e as circunstâncias falassem mais alto. Até um dia.
Poucos meses depois do casamento começou Simão a cismar na guerra de África para onde, segundo o Sr. Padre, os nossos jovens iam defender a Pátria e a civilização cristã, combater o comunismo e o terrorismo, coisas de que ele pouco sabia e que o privariam da mulher com quem tanto folgava e a quem tanto se afeiçoara.
Em letras pequenas vira no jornal, entre vários, o nome dum amigo mais velho com quem fora tantas vezes aos peixes, com quem armara costilhos aos pássaros, com quem fora tomar banho ao rio da sua aldeia em véspera de ir às inspecções. Por cima do nome estava o título do costume – ?Ao serviço da Pátria? e depreendia-se que morrera por obrigação e que tivera sorte em poder imolar-se por tão nobre causa.
E foi assim que, alguns dias depois do desaparecimento de Simão, sem angústia dos pais ou mágoa visível da mulher, apareceram na aldeia dois senhores a fazer perguntas aos vizinhos, a ameaçar a família e os amigos e a obter declarações em longos interrogatórios no posto da G.N.R..
Constou-se que estava em França. Em breve chegaram notícias que o confirmara em carta, pois ele sabia ler, escrever e contar, finalidade da escola primária cuja instrução levara até ao fim. E só não foi mais longe nos estudos por não terem os pais achado necessário nem útil a quem tinha uma boa casa de lavoura, com uma horta ao pé da casa, campos de cereal, vastos terrenos de pastagens e uma boa quantidade de animais para cuidar.
Os pais nunca frequentaram a escola e, tirando o período da guerra e do racionamento que se lhe seguiu, nunca passaram fome. Para quê ter um filho doutor?
Esteve quase um ano Delfina, privada do homem e de alegria até que conseguiu ir ter com ele.
A aldeia foi esquecendo o casal. Os próprios pais, resignados à separação, pareciam tê-los esquecido também. Poucas foram as notícias que chegaram durante uma longa dúzia de anos.
Entretanto acontecera o 25 de Abril, a guerra de África tinha terminado, aos refractários era consentido o regresso. O País era outro.
Simão e Delfina regressaram à terra num automóvel de luxo numa noite de Agosto. Vinham passar férias. Depois da euforia do reencontro, das saudades matadas, das saudações que o prior lhes fizera na missa, em que publicamente agradeceu o donativo para as festas da Padroeira, donativo que o número de zeros tornava obsceno, depois de almoços e jantares para que convidaram toda a aldeia, o casal justou uma casa com piscina, comprou todas as propriedades disponíveis quase sem discutir preço, pagou o fogo de artifício para a festa da Senhora das Candeias, teve lugar de destaque na procissão e deu-se a todos os prazeres que o dinheiro pode comprar.
O casal foi muito acarinhado. Ambos demostraram saber ainda o nome das pessoas, não ter esquecido amizades e interessar-se pelos problemas da aldeia. Dispostos a acudir a dificuldades, interessados em dotar a terra com uma creche prometida pelos vários partidos em véspera de eleições e ainda não concretizada, logo fizeram o respectivo donativo em francos franceses que entregaram à Junta de Freguesia e que amplamente correspondiam às despesas necessárias.
Delfina era verdadeiramente a primeira dama da aldeia. Elegante no vestir, conservava os traços de beleza da juventude. Luziam-lhe ainda os dentes todos. Não se deixara engordar. Pela anatomia que um vestido de bom corte e discreta transparência deixava adivinhar, via-se que o tempo a poupara mais que o habitual. Parecia dez anos mais nova que as raparigas do seu tempo.
Simão mostrava uma ligeira curva na gravata que passara a usar, adereço que lhe destacava o bom gosto e acentuava o toque de prosperidade que o bafejara. Nem por isso usava qualquer distanciamento para com os seus velhos companheiros de infância. Pelo contrário, o tempo parecia ter robustecido os laços de amizade, a ausência cimentado o afecto, a distância aumentado a simpatia.
Foi numa dessas tardes de verão, na adega do Ezequiel, até então o mais rico da aldeia, colega de escola que ambos lograram concluir em quatro anos, amigo do peito desde sempre, que, depois de alguns copos e confidências várias, Simão revelou a chave do sucesso.
Depois de Ezequiel ter afirmado, por mera intuição, que em França se ganhava muito dinheiro, que a vida devia ter corrido muito bem a Simão, que devia ser possuidor de assinalável fortuna, ao que este anuiu, disparou-lhe:
– Mas em que é que tu ganhaste tanto dinheiro?
Prontamente o amigo o informou, em vernáculo, claro, de que era proprietário de um prostíbulo de homens e doutro de mulheres, estabelecimentos que criara e vinha desenvolvendo há longo tempo, depois de uma breve passagem pela construção civil, a dar serventia de pedreiro, nos arredores de Paris.
Surpreendido e elucidado mostrou Ezequiel compreender a razão de tão sólida fortuna. E exclamou:
– Então tu, Simão, nunca tiveste dificuldades em França!
– A princípio tive!…, rematou nostálgico, com ar de quem subiu a vida a pulso, lembrado dos tempos em que era só ele e a mulher.
«Muitos dos habitantes de Asseiceira, Rio Maior, continuam a crer que Nossa Senhora apareceu ali várias vezes a um menino chamado Carlos Alberto. Cinquenta anos depois da primeira aparição, o culto mantém-se apesar da rejeição da Igreja Católica. No local pedem-se graças, pagam-se promessas e movimenta-se dinheiro» – lê-se em «O MIRANTE», semanário regional, de 20 do corrente.
O admirável acontecimento ocorreu pela primeira vez em 16 de Maio de 1954 quando o Carlos Alberto, então aluno da 4.ª classe da escola primária de Asseiceira, se encontrava a rezar. Apresentou-se-lhe como «Mãe do Redentor», junto a um loureiro que ainda lá está de pé. A partir daí, até Janeiro de 1955, a Mãe do Redentor apareceu todos os dias 16 ao garoto, altura em que compromissos de agenda a levaram para outras paragens.
São muitas as pessoas que dizem ter presenciado acontecimentos sobrenaturais e assistido a milagres. No entanto o milagre mais difícil foi o do cego Silvério da Costa que de repente começou a ver.
Não obstante a cura de cegos ser uma especialidade bem difícil, onde JC firmou créditos, nem assim a ICAR procura ir além do que afirmou numa nota patriarcal de 7 de Agosto de 1954 «nada existir que confirme ou pareça confirmar a veracidade de tais aparições», recusando-se a conceder o alvará para exploração do milagre.
Todavia se a tendência religiosa de limitar os milagres por hectare, vier a desaparecer, a Mãe do Redentor de Asseiceira tem condições para se tornar numa das maiores vedetas do culto mariano em Portugal.
«A lista de signatários integra a Itália, Polónia, Lituânia, Malta, República Checa e Eslováquia. Segundo o porta-voz do ministério polaco dos Estrangeiros, Boguslaw Majewski, o documento está aberto à adesão de outros países» – lê-se no Jornal de Notícias.Como se vê, estes países constituem a fina flor dos arautos da democracia, os exemplos mais estrénuos na defesa da liberdade religiosa, a vanguarda histórica do respeito pelos direitos humanos.
Violentas ditaduras e a subserviência ao Vaticano são desgraças que lhes enchem a alma de orgulho e o passado de vergonha.
Portugal, cuja Constituição é omissa em referências religiosas, não se resigna a alardear, por intermédio dos elementos do Opus Dei que integram o Governo, o desejo de alterar o laicismo da Constituição actual, nostálgicos da Constituição de 1933 onde se afirmava que «Portugal é um país tradicionalmente católico».
O sonho maior de um beato é impor uma teocracia e este Governo recusa-se a ver o crepúsculo moral a que a sua aliança com o CDS o conduz.
O desvario teocrático que grassa no mundo islâmico foi o sinal de alerta que levou os países europeus a resistir aos apelos fanáticos de JP2 de introduzir a referência ao cristianismo na futura Constituição europeia, fartos de lhe ouvirem exaltar a santidade e o martírio numa conduta equivalente à dos ayatollahs. Mas não consideremos a vitória adquirida.
Não podemos consentir que a igreja se transforme no lupanar da liberdade, onde se prostitua a democracia com o incenso a servir de permanganato.
Monarquia democrática – Eis uma piedosa expressão, ultimamente muito repetida, que não passa de um paradoxo que só a república consegue resolver.
Papa – Ao comemorar 84 anos ficou tão contente com a Concordata que, depois de ter ouvido Durão Barroso a dizer-lhe que tinha 3 filhos, lhe perguntou maldosamente se não ia em busca de uma menina. A esposa do primeiro ministro ruborizou-se piedosamente.
Espanha – Letícia Ortiz pode casar pela santa madre igreja católica apostólica romana (ICAR) porque o casamento civil anterior, segundo os bispos, é inexistente perante Deus. Fica-se a saber que, para a Igreja, um casamento sem missa nem eucaristia é como uma cópula sem penetração nem orgasmo.
Concordata – A comitiva que acompanhou Durão Barroso a Roma (cerca de 50) não foi dar qualquer prestígio ao acto que, aliás, não é motivo de orgulho. Uns foram por promessa, outros à cata de indulgências, bastantes por penitência e, TODOS, porque foi de borla.
AGÊNCIA ECCLESIA – Segundo D. Jacinto Botelho, presidente da Comissão Episcopal da Família, referindo-se à “grande diminuição da natalidade no nosso país”, condenou o egoísmo e o comodismo que estão na sua origem. Ninguém como os bispos para falarem do que sabem.
FEHÉR CURA MULHER – A morte do futebolista Fehér comoveu de tal forma uma mulher de Leiria, de 75 anos, que largou a cadeira de rodas e pôs-se de pé, depois de prometer rezar na sua campa, se Nossa Senhora a deixasse retomar o andar, como veio a acontecer – lê-se no Correio da Manhã. Vai-se deslocar à campa do atleta e, se rezar com muita fé, talvez deixe a bengala.
Corria tranquila a vida no convento, cumprido o tempo com orações e refeições frugais a horas certas. Da missa diária encarregava-se o padre Agostinho, confessor e director espiritual, com descrições do Inferno, pormenorizadas e convincentes, e de horrores ainda maiores do Mundo, criado por Deus e abandonado nas mãos dos homens. Falava de um ror de pecados inenarráveis que faziam zangar muito Nosso Senhor, cabendo às monjas recuperar-lhe o humor pela oração e sofrimento.
Nas longas horas de meditação, nas rezas colectivas ou individuais, davam-se graças por não partilharem esse espaço que o Director espiritual e a Madre Superiora eram os únicos a ter de transpor, protegidos pelas orações aflitas com que o convento inteiro os acompanhava.
Nessas horas de vigília mística transferiam a intenção habitual para a protecção dedicada e rezavam com a mesma acendrada devoção com que pediam pelas intenções do Santo Padre, sem se interrogarem quais eram essas intenções, pelo cumprimento da vontade divina se é que depois de tantos anos de Mundo ainda há vontade que resista, mas isto são pensamentos ímpios, reflexões de quem julga inútil a vida monástica e considera a oração mera ociosidade, sem lhe atribuir a eficácia e bondade sublinhadas por milagres que crentes de todas as religiões confirmam.
Agostinho, tal como o Santo de quem tomara o nome, possuía a mesma vontade e determinação de ser casto, esperando também que a idade lhe apaziguasse os desejos. Nutria igual desprezo pelas mulheres que lhe incendiavam os sentidos, tinha a mesma certeza de que eram uma encarnação do diabo, cujo cabelo e voz eram obscenos, inteligente reparo do santo, verdadeiras fontes de pecado que só a oração e o sofrimento podiam evitar. Talvez por isso era tão apreciado pelo prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, de quem tinha o privilégio de receber bênçãos especiais por altura das festividades canónicas.
Às vezes, enquanto administrava a sagrada partícula, adivinhava os corpos que os hábitos escondiam, os desejos que as orações atenuavam, os pensamentos pecaminosos de que os jejuns e a oração o libertavam. Mas era durante a confissão onde, por dever do múnus, perscrutava até ao mais íntimo da alma, que a efervescência o apoquentava sabendo bem que a culpa cabia às filhas de Eva que ali se genuflectiam carregando o desejo que os seus conselhos e as regras monásticas reprimiam para maior glória divina.
O P.e Agostinho já durante as confissões da Irmã Maria Imaculada tinha indagado dos pecados cometidos, ao menos por pensamentos e, perante o total desinteresse da penitente pelos ditos pecados, a tinha advertido que devia estar vigilante, que Satanás manifestava particular predilecção pelos pensamentos, janela de oportunidade para tresmalhar a alma de uma devota, mesmo, ou sobretudo, sendo freira e estando particularmente devotada à castidade. O convento não era, antes pelo contrário, refúgio seguro das arremetidas do demo. Ele próprio era testemunha, com o sangue a ferver-lhe perante o louvável desinteresse de Imaculada pela luxúria. E tudo isto apesar de o convento albergar uma relíquia tão rara e cobiçada pelos outros mosteiros ? uma pena do arcanjo Gabriel muito bem conservada num relicário de ouro cinzelado com pedras incrustadas, protecção de efeitos comprovados à honra do convento.
A Ir. Maria Imaculada do Sagrado Coração de Jesus Santíssimo, ou Ir. Maria Imaculada, ou Imaculada, simplesmente, deixados cair os apelidos e reduzida a um só nome dos que no acto de professar serviram para sepultar os profanos, rezava abundantemente. Sob os olhos indiferentes dum Cristo cansado das orações e da cruz dependurada num prego periclitante entalado na ranhura dos blocos de granito, rezava diariamente o terço, absorta e genuflectida, sem pressa de concluir o rosário que a Virgem recomendara à Irmã Lúcia, em Fátima, para conversão da Rússia e salvação do mundo.
Uma tarde, igual a tantas outras, enquanto rezava, apercebeu-se da sombra que penetrara a cela, através dum ligeiro vaivém da porta sem trinco, de uns braços potentes que a agarraram por trás, da mão que lhe esmagou os lábios, dum corpo que se colava ao seu enquanto a outra mão lhe percorria o hábito e lhe devassava a orografia do corpo esquecido.
Debateu-se em silêncio, esquecida a voz de que já se desabituara, incharam-lhe os olhos, acudiu-lhe o sangue à face, quando descobriu na estranha criatura que a enlaçava a figura do padre confessor que, num ápice, lhe despia apressadamente o hábito a caminho da satisfação das necessidades próprias sem cuidar das alheias. Despojada do hábito e reduzida aos hábitos menores, precária resistência à lascívia reprimida, em estado de estupor, suportou a arremetida. Apercebeu-se do corpo a ser derrubado sobre o leito, sentiu a arremetida ignóbil, a violência gratuita, a sanha animal, como quem aceita a penitência, como quem se resigna ao isolamento, ao silêncio e à oração, com o mesmo desprendimento da vida sem sentido que é fardo virado desejo, que é morte de que se faz a vida monástica, que é renúncia a pretexto da salvação.
Debateu-se primeiro, quedou-se depois, desinteressada, com uma dor intensa a penetrá-la, um ferro em brasa a percorrer-lhe as entranhas, imobilizada com força imensa como se pudesse fugir, primeiro, ou o quisesse tentar, depois. O ódio que a clausura sublimara foi o sentimento primeiro, logo seguido da indiferença que os movimentos alheios poderiam ter conquistado para a cumplicidade. Não teve tempo. Pela primeira vez o olhar se detivera no tecto da cela para voltar à enxerga onde jaziam fluidos cujo sangue que não podia provir das chagas do Cristo metálico e indiferente, imobilizado na cruz da parede.
Na violação da freira pôs o padre a mesma violência perversa do proselitismo. Desta feita não foi a fé que procurou impor, apenas buscou aliviar o cio.
Na metamorfose do êxtase esqueceu a alma cujo destino incerto e distante não interfere na pacificação espiritual que os corpos conquistam na tumultuosa explosão dos sentidos. Mas ali não houve arrebatamento, apenas conquista e saque dum corpo devastado, espada enterrada em bainha que a fúria abriu e devassou, um corpo esmagando a alma de outro na pressa de servir-se.
O abuso sexual foi o resultado das pulsões primárias dum indivíduo anacrónico que não fizera a catarse da violência.
Agora até o místico tugúrio da anacoreta tinha virado palco de profanas fantasias que o carácter confessional dos parceiros transformara em incestuosas investigações eróticas da geografia de um corpo flagelado. O êxtase parece tanto mais sublime quanto maior tiverem sido a dor, a abstinência, o desejo e o recalcamento. Mas na circunstância faltou o tempo, a sabedoria e a sedução. Não foi a mulher que o sevandija procurou mas o vaso em que se aliviou.
A SIDA, o medo que lhe infundia, foi o pretexto que a si próprio o padre ofereceu para buscar na freira o consolo cujas consequências temia nas rameiras, a violação o prémio que se atribuiu pelos longos meses de castidade sofrida . Ao menos não adicionou à fraqueza da carne o pecado suplementar do preservativo. Desagradara igualmente a Deus mas não ofendera tanto o Santo Padre.
Apaziguados os desejos, libertos os humores, a freira pensou arrancar a lâmina que a rasgou e acabou guardando entre as mãos, essa arma que a ofendera, inútil, pegajosa, mole, onde adivinhava um hissope fundido pelo vigor da aspersão. E nem sentia sequer revolta, medo ou vergonha. Começava a deixar-se percorrer por uma estranha sensação de prazer igual à flagelação, parecida com a do cilício, mas sem dor, sem sofrimento, sem necessidade de se imobilizar. Ousou mesmo uma discreta massagem como se de uma relíquia se tratasse, relicário igual, quem sabe, a outro muito jovem donde foi extraído o santo prepúcio.
Deixou vaguear os olhos pelo próprio corpo que há muito não via, pousou-os no outro corpo de que sempre afastara os pensamentos, deteve-se nas diferenças de ambos e pensou que tudo se poderia ter passado sem violência, devagar como quem reza, com gestos ritmados como se batesse no peito em acto de contrição. Mas o ímpeto que a magoou foi talvez o tributo indispensável à tranquilidade que agora sentia. Quem sabe se não devia ao tumulto o prazer que experimentava! Não era violenta a clausura que extasiava? Não embriagavam os jejuns? Não fazia a dor dos cilícios percorrer o corpo, todo o corpo, de um doce calor de inebriante felicidade?
A dor que sentira, a humilhação que sofrera, a vergonha que a prostrara, eram a fonte donde começava a jorrar uma ponta de felicidade. Estranhos caminhos da natureza, complicadas formas de ventura, a escrava conformada a procurar o caminho do perdão.
Continuou a segurar a arma que a trespassara, tomava-lhe o peso, acariciava-a e sentiu que a coisa mole ganhava dureza, assumia forma, tomava cor. Sentiu-se confusa, fechou os olhos, deixou-se escorregar para o chão e aguardou. Outra vez a dor e o fogo a percorrerem-lhe as entranhas, agora já sem violência, um corpo sobreposto em movimentos ritmados, a dor a esbater-se, o próprio corpo a ensaiar o acompanhamento do outro, uma indizível felicidade a percorrê-la, uma sensação idêntica à da libertação do cilício, sem necessidade de pensar em intenções do papa, contracções incontroladas, prazer a jorros, um êxtase sublime, como se naquele momento, sozinha, tivesse libertado o mundo de todos os pecados.
Perdeu a noção do tempo. Ao ver o seu director espiritual abandonar a cela sem uma explicação, sem uma palavra, confusa, esmagada, teve ainda forças para sussurrar-lhe: venha mais vezes, volte.
Na manhã seguinte seguiu com o costumado interesse a santa missa que o mesmo padre celebrava. Sentia os olhos dele cravados em si e, à força do hábito, continuou a olhar o chão. Doía-lhe o corpo cansado de todos os esforços da véspera acrescidos com a dificuldade de disfarçar da cela os sinais de sangue e outros fluidos.
Na confusão do cérebro todos os movimentos eram agora, não para glorificar Deus e o seu divino nome, mas gestos de estimulante lubricidade. Mesmo o turíbulo, no seu vaivém, lembrava-lhe o corpo cujos movimentos esmagaram o seu, mais lentos é certo e, talvez por isso, Imaculada sentia percorrer-se duma estranha sensação de felicidade, dum calor deslumbrante que a transportava ao êxtase. Lembrou-se das descrições de Santa Teresa e sentiu em si as mesmas emoções, a mesma onda de felicidade que a inundava, duvidosa de ser ou não ser o Divino Mestre que a percorria nas fantasias bem humanas que haviam despertado de forma incontrolável.
Enquanto o oficiante celebrava não eram já as palavras pronunciadas que lhe ouvia mas a língua que as articulava que sentia. Os conselhos de sempre traziam apenas o bafo quente que lhe envolvia o pescoço. A bênção que lançava devolvia-lhe os dedos que a descobriram. Imaculada sentia-se transportada ao céu por que tanto tinha implorado. Rezava agora com paixão, sem intenções prévias, cada vez mais convicta de que esse dia traria de novo a visita privada do confessor que, talvez, passasse a confessado.
E assim foi. A cela deixou de ser o espaço de reflexão sem sentido para se converter na antecâmara do desejo. Perdeu o ar frio e funesto para ganhar a dimensão dum ninho fofo e proporcionar a visão duma centelha do paraíso.
À mesma hora do dia anterior, a preceder as vésperas, Imaculada viu claramente que não era uma sombra que penetrara a cela. Era o homem que esperava. O ascetismo místico tinha ganho uma nova dimensão e ia ser temperado pela explosão simultânea dos fluidos em reparadores espasmos fruídos sofregamente, sobre o catre, ou no chão, no exíguo espaço duma cela.
E não mais pediu ao P.e Agostinho para voltar. Dia após dia o hissope vinha mergulhar suavemente na caldeirinha para aspergi-la vigorosamente no momento certo, enquanto ambos, à medida que exultavam com as delícias da alcova, se foram esquecendo do martírio do seu Deus.
Após 30 anos de liberdade, a ICAR, que fez um percurso discreto de transição para a democracia, decorrido o período de nojo a que a cumplicidade com a ditadura aconselhava, reapareceu com a manha de sempre, não a promover a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, mas a exigir mais igualdade para alguns ? neste caso para si. Reivindica como fonte do direito a tradição e a Concordata, uma e outra anacrónicas, ambas a merecer que o pudor as esquecesse.
O regime democrático prescindiu do direito de veto às nomeações episcopais e abdicou de ter a Igreja Católica refém. Esta, porém, não prescinde de privilégios adquiridos por um tratado obsoleto que a ditadura celebrou com um papa autoritário e anti-semita.
A chantagem sobre o Governo de Cavaco Silva permitiu-lhe obter de forma indigna um canal de televisão cuja falência conduziu ao fracasso de projectos mais ambiciosos de domínio da sociedade portuguesa.
Agora, com o Governo de Durão Barroso e a cumplicidade do PS, a ICAR obteve uma lei da liberdade religiosa profundamente iníqua e com a doutrina a ser vertida na nova concordata. O PSD e o CDS, de cócoras, e o PS e o PCP, genuflectidos, deixam Portugal, algures entre a França e o Afeganistão, com um tratado iníquo sofrivelmente compatível com a Constituição. A igualdade dos cidadãos perante a lei é uma miragem e o carácter laico do Estado uma quimera.
Continua fidelíssimo o reino. Não pensa, reza. Não se revolta, benze-se. Não se revê na Assembleia da República, deixa-se representar pela Conferência Episcopal, detentora de direitos especiais.
A Concordata não pode ser uma prenda oferecida a um pontífice pela passagem do seu 84.º aniversário, nem a Universidade Católica a contrapartida da oferta da batina do 3.º milagre a Fátima ou das promoções a beatos e santos prometidas para duas dezenas de bem-aventurados portugueses que aguardam transporte para os altares. Foi a instituição de uma suave Sharia romana com o empenhamento das sacristias, a orquestração da nunciatura e a cobardia dos aparelhos partidários.
Portugal está a caminho de tornar-se um protectorado do Vaticano, vergado ao peso da Cúria, asfixiado pelo incenso, afogado em água benta.
A revisão da Concordata deu lugar à prepotência clerical contra a sociedade laica, acolhida por um governo beato, com um país atónito e a oposição atordoada.
A santa aliança protagonizada pelo arco totalitário dos devotos em torno da imposição da fé e da exigência de privilégios para uma religião, substitui o trabalho de evangelização, de resultados duvidosos, pela prepotência estatal de eficácia mais provável.
As democracias sujeitam-se ao escrutínio eleitoral, as teocracias impõem o arbítrio eclesiástico apelidado de vontade divina.
Aqui fica o texto hoje publicado no Diário As Beiras, de Coimbra, sobre o evento:
Acompanhei o X Congresso do PSD/Madeira com atenção, enquanto o bailinho da Madeira se repetia e os papelinhos laranja inundaram a cabeça dos congressistas pela 35.ª vez.
Há menos tempo no cargo do que Fidel de Castro, Alberto João Jardim (AJJ) sucedeu a si próprio e ameaçou: « Se Deus me der vida e saúde estou para continuar». Assim, se a opção estiver disponível, o vitalício Alberto João vai eternizar-se.
Entusiasmado, Dias Loureiro, presidente do Congresso Nacional do PSD, manifestou a aspiração de que Portugal se transformasse numa imensa Madeira. Mas, o que poderia ter sido interpretado como um desejo perverso, não passou de amabilidade para com o anfitrião. Já quando afirmou que «é difícil encontrar no mundo outro lugar onde a mão de Deus e do homem tenham trabalhado em tanta sintonia», ficou a dúvida se foi para comprometer Deus ou para desculpar AJJ.
Quando o ministro José Luís Arnault apontou Jardim como «exemplo de ética e de dádiva à causa pública» apenas tinha em mente o padrão por que se rege o governo da República.
Uma preocupação ficou, porém, a pairar quando AJJ declarou: «Em 2008 vamos ter de decidir se nos interessa continuar na União Europeia ou não, (…)». Apesar do susto sobre o futuro da Europa, fica-nos a consolação de saber que a Madeira, pode transformar-se numa das regiões mais democráticas do continente africano e com o mais antigo e experiente governante.
Se a Europa ficar privada do exótico dirigente, a África ganhará um respeitado régulo.
Soube pela comunicação social que o primeiro-ministro de Portugal rastejou até ao Vaticano e que, sofrendo de problemas de coluna, os agravou com uma vergonhosa flexão para com o papa pulhaco (desculpem os leitores a influência de Mia Couto (abençonhado = abençoado + sonhado).
Do pio bando que viajou à boleia fazem parte «o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo; as ministras dos Negócios Estrangeiros, Teresa Gouveia; e da Justiça, Celeste Cardona; o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, José Arantes; os deputados Leonor Beleza, Jaime Gama, Assunção Esteves e Vera Jardim; o embaixador Martins da Cruz, o embaixador junto da Santa Sé, Pedro Ribeiro de Menezes, e a mulher; o juiz conselheiro do Supremo Tribunal Constitucional, Gil Galvão; o chefe da Casa Civil da Presidência da República, Morais Cabral; o embaixador Eurico Paes. Ainda na comitiva, estão integrados D. Tomás da Silva Nunes, Manuel Braga da Cruz, Padre João de Sousa, Padre Agostinho J. Gonçalves, Nuno Brito, António Almeida Lima, Luís Serradas Tavares, Mário David, Pedro Costa Pereira, Leonor Ribeiro da Silva, André Dourado, António A. Machado, Ana Paula Menezes Cordeiro, João Geraldes, Vasco Ávila, Comissário Paulo Antunes, Joana Mayer, Vanessa Pessanha, Bruno Portela e o chefe António Oliveira» – lê-se no Diário de Notícias de hoje.
Isto não é uma comitiva, é uma caterva de beatos à cata de indulgências, uma multidão de pecadores em busca de indulgências, um grupo de indivíduos que, acima dos interesses de Portugal, põe os interesses de uma obscena ditadura teocrática.
Em Portugal há, e bem, total liberdade religiosa. O que foi assinado, à sorrelfa, foi a concessão de infames privilégios a uma das religiões que disputam o mercado da fé num país que o Vaticano considera feudo e que a falta de dignidade cívica dos governantes reduz à situação de protectorado.
Neste momento, o texto da Concordata continua por divulgar. Temo o pior. A Inquisição não terá sido restaurada, mas a água benta, servida às colheres, pode tornar-se no substituto do óleo de fígado de bacalhau obrigatório na escola da minha infância. Então era o raquitismo que urgia erradicar, agora é a salvação da alma que passa a ser obrigatória.
No dia em que me provarem que há uma religião verdadeira, uma só, passo a defender que nem todas são falsas.
Apostila 1 – Ontem em Coimbra a Ponte Europa passou a ser designada por Rainha Santa, por decisão ministerial e sugestão do pio edil Carlos Encarnação. Que pecados tão graves terão a pesar-lhes para entrarem nesta vergonhosa subserviência para com o divino? Hão-de morrer afogados numa pia de água benta antes de serem corridos pelo voto popular.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.