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Carlos Esperança

21 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

Ontem, no DN

Excertos de «Adoradores de abstrações» um texto interessante de Pedro Bidarra:

«No princípio do século XVI, Julius II encomendou a Bramante o desenho de uma nova Basílica de São Pedro. Para a pagar, os Papas que o seguiram, sobretudo Leão X, resolveram cobrar dinheiro à cristandade de todas as maneiras e feitios. A inovação, no lado da receita, levou à venda de indulgências. Johann Tetzel, padre dominicano, cobrador e vendedor de indulgências a mando de Leão X, foi o campeão da angariação de fundos por terras do Norte: So wie das Geld im Kasten klingt; die Seele aus dem Fegfeuer springt (Mal uma moeda no cofre dá entrada, logo uma alma do purgatório é libertada) – diz-se que Tetzel terá dito. Claro que os do Norte se amofinaram e inventaram a desculpa para a reforma, o Lutero e o Calvino. Durante todo o século XVI rebentaram tumultos que rebentaram estátuas e imagens em Genebra, Zurique, Copenhaga, Ruen, na Flandres, na Escócia e na Alemanha; em todo o Norte foram destruídas estátuas, frescos, quadros e imagens. E a Europa nunca mais foi a mesma: de um lado a mania da ordem, da disciplina, a iconoclastia; do outro a bandalheira, o vinho, a sesta e a festa e a idolatria. Tudo por causa de um desenho de um arquiteto, poderá dizer-se».

***
«O culto de símbolos e imagens, por muito que a doutrina da Igreja de Roma tenha pretendido tratar-se apenas de honra prestada aos protótipos que representam, é, na verdade, um politeísmo. Uma nobre herança grega e romana, um paganismo que nos aproxima da variedade da natureza e que nós, os do Sul, saudavelmente nunca abandonámos».

 

20 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

Porque me afastei das caixas de comentários

Pelas mesmas razões que me levaram, em tempos, a escrever este texto e que podem eventualmente continuar a existir:

Beatos, fascistas e malcriados

Há devotos do Diário de uns Ateus, avezados aos textos aqui publicados, incapazes de migrarem para outras paragens zoologicamente mais adequadas.

Saem das missas, cheios de raiva dos ateus, com a hóstia ainda colada ao palato, a trocar os padre-nossos pelos insultos, as ave-marias pela provocação e a fé pelo ódio. A crença e a malquerença andam misturadas, as orações substituem-se pelo fanatismo e as igrejas são madraças católicas onde explode a raiva, rangem dentes e ruminam vinganças.

Podiam os créus usar um módico de civilidade, um mínimo de bom senso, um resquício de humanidade, mas não se pode esperar muito de quem tem o monopólio do verdadeiro deus, do único livro sagrado e da exclusividade da água benta.

Fazem pena, na sua raiva pequenina, no seu pequeno mundo de um deus que inventaram só para eles. São saprófitas do divino, lacaios do Vaticano, agarrados às sotainas.

Enquanto os ateus se limitam a negar a existência de um ser imaginário e a combater as superstições, os devotos tornam-se malcriados para agradarem ao deus que inventaram e fascistas por tradição. Desde Mussolini, considerado enviado da Providência pelo Papa de turno, os católicos reacionários seguem o déspota, que acabou mal mas deixou bem a Igreja católica, com dinheiro público, um Estado mal frequentado e religião obrigatória nas escolas do Estado.

O Papa não lhe faltou com a bênção nem o povo com o julgamento cruel, à boa maneira católica. É dos descendentes desses trogloditas que nasceram os fascistas malcriados que vêm em bandos a destilar impropérios à caixa de comentários de um blogue nascido contra o obscurantismo e a superstição.

Como eles dizem, nas suas orações, bem-aventurados os pobres de espírito.

20 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

Todos meteram água!

Muitos presidentes para um barco só

Autarcas do Funchal e de Machico foram convidados a sair para Miguel Albuquerque entrar. O incidente aconteceu na procissão de barcos de Nossa Senhora da Piedade, no Caniçal. Presidência do Governo nega qualquer interferência no caso.

17 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

Momento zen de quarta_16_09_2015

Julgava-se que o Papa Francisco tinha feito o milagre de afastar o beato João César das Neves (JCN) da exegese bíblica e das homilias contra o divórcio, a IVG e a sexualidade alheia à prossecução da espécie. No púlpito do DN passou a perorar sobre economia, disciplina que rege na madraça romana de Palma de Cima, defendendo aí este Governo com a mesma fé com que acredita em Fátima e nos dogmas da Igreja romana.

A acidez do silêncio pio doía-lhe mais do que o cilício e a abstinência do proselitismo já o consumia. É de crer errasse os mistérios do terço e tropeçasse nas orações para sentir mais necessidade de falar da sua Igreja do que de defender Passos Coelho.

Na homilia de ontem ‘O sínodo e a balbúrdia’, JCN fala do Sínodo dos Bispos de Roma e do seu pavor pela influência do mundo profano nessa assembleia porque “muita gente de fora tenta influenciar uma doutrina que não segue, aceita ou sequer respeita, mas que não se coíbe de tentar mudar”. JCN pergunta “Como deve um católico lidar com tal balbúrdia?”, e logo responde com a fé de um devoto e a doutrina do Concílio de Trento:

“Primeiro é importante [um católico] não se perturbar ou escandalizar”. “Depois é importante acompanhar o que vai acontecendo, mas de forma sólida e adequada”, prevenindo que “Muitas das posições, bem ou mal-intencionadas, pretendem mudar a Igreja para a adaptar ao mundo. Ora isso é precisamente o inverso do que deviam, pois o propósito fundamental da Igreja é mudar o mundo”. Entra em esquizofrenia mística com o temor de que “Até se podem conseguir discípulos, mas não para o Evangelho do crucificado. Quando ouvimos defender que a Igreja deve alterar aquilo que recebeu do Senhor, sabemos que não vem por bem.”

JCN, que, sem hóstias, entraria em delírio, sabe que “num dos dramas mais debatidos, o acesso à comunhão sacramental por parte dos divorciados recasados, estão em causa, por um lado a suprema dignidade da eucaristia e a indissolubilidade do matrimónio, elementos incontornáveis da doutrina …”. Noutro tema recorrente das suas pretéritas homilias diz que “o tratamento eclesial da homossexualidade exige combinar o repúdio de «depravações graves…, actos… intrinsecamente desordenados… contrários à lei natural» (catecismo da Igreja Católica 2357) …”, sem “sinal de discriminação injusta… pelo apoio de uma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental” (idem 2358-2359).”, queixando-se de que “O mundo não o entende. Como considera o casamento perfeitamente solúvel e a homossexualidade uma prática recomendável, a dificuldade nem se lhe coloca.”

O beato JCN diz o que devem fazer os seus correligionários na fé: “agora devemos rezar com fervor pelos trabalhos e esperar, na paz do Senhor, as determinações do encontro.”, antes de, no fim, fazer “o que nos toca: seguir o Pastor”.

Amém.

16 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

A fé pode matar

Procissão da Sra da Pena-Vila Real

Quanto maior é a fé maiores são os andores e mais perigosos se tornam.

Uma pessoa morreu e três ficaram feridas no último domingo na sequência da queda de um andor (foto) na romaria da Senhora da Pena, em Mouçós, concelho de Vila Real.

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14 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

Ateísmo, religiões e liberdade

O ateísmo, ao contrário das religiões, não cria pessoas boas ou más, enquanto as últimas moldam o seu carácter soas e as levam a praticar atos da mais sublime bondade ou da mais degradante abjeção.

O Estado Islâmico assassina e tortura segundo a vontade de um ser imaginário, tal como outrora o fez o cristianismo das Cruzadas, da Evangelização e da Inquisição e, ainda hoje, o faz o sionismo judaico.

Há crentes e ateus entre os maiores criminosos da História recente. Dos primeiros, sem necessidade de recorrer ao fascismo islâmico, destacam-se Mussolini, Franco, Pinochet, Videla, Somoza e o padre Tiso, sendo Hitler designado por crente ou ateu, conforme as conveniências. Nos ateus sobressaem Estaline, Enver Hoxha, Ceauşescu, Mao, Pol Pot e Kim Il-sung. Estão bem uns para os outros.

O meu ateísmo leva-me a utilizar a Declaração Universal dos Direitos Humanos como padrão para definir a bondade do ateísmo e da crença de cada um. São correligionários os que a respeitam e adversários os que a renegam ou não a subscrevem. O mundo não se divide entre crentes e ateus mas entre os que partilham os valores civilizacionais que são a herança do Iluminismo e da Revolução Francesa e os que se lhe opõem.

Há ateus nazis, xenófobos, racistas e misóginos à semelhança do pior que nos legaram os monoteísmos. Não deixa de ser ateia essa gente mesquinha e desumana tal como não deixaram de cristãos os que colaboraram no nazismo e no fascismo e os que se lhe opuseram na Resistência.

Há uma boa razão para se combaterem as religiões, sem as confundir com os crentes, a sua falsidade e nocividade. Usar nesse combate as mesmas armas dos mais celerados combatentes do Estado Islâmico, por exemplo, é colocarmo-nos ao seu nível.

13 de Setembro, 2015 Carlos Esperança

A visita pascal – Crónica

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protetor das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.

Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genufletiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

In Pedras Soltas – Ed. 2006 (Esgotado)