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Carlos Esperança

12 de Abril, 2020 Carlos Esperança

Hoje é a Páscoa dos cristãos

Todos somos ateus

Não há a mais leve suspeita ou o menor indício de que Deus exista, nem qualquer sinal de vida da parte dele. No entanto, o ónus da prova cabe a quem afirma a sua existência e, sobretudo, a quem vive disso.

Cada religião considera falsas todas as outras e o deus de cada uma delas, afirmação em que certamente todas têm razão. Os ateus só consideram falsa uma religião mais e mais um deus, o que, no fundo, faz de todos ateus. E não é no sentido grego, em que ateu era o que acreditava nos deuses de uma cidade diferente, é no sentido comum da negação de Deus [com maiúscula para o deus abraâmico] ou de qualquer outro.

Todos somos hoje ateus em relação a Zeus, Osíris ou ao Boi Ápis, como amanhã outros serão em relação a Vishnu, Shiva e Brahma ou ao Pai, Filho e Espírito Santo da trindade cristã. Os deuses de hoje serão os mitos do futuro. Outros serão criados, por necessidade psicológica, para servirem de explicação, por defeito, a todas as dúvidas, e de lenitivo a todos os medos.

A morte, a angústia que desperta, o fim biológico de todos os seres vivos, é o maior dos medos. Deus é o mito bebido no berço, a esperança de outra vida para além da morte, a boia dos náufragos que se habituaram a acreditar desde crianças e se conformaram com a pueril explicação da catequese e se intimidaram com a dúvida. Os constrangimentos sociais ou/e a repressão violenta ao livre-pensamento tem perpetuado mitos milenares.

A crença, em si, não é um perigo nem ameaça, perigoso é o proselitismo, essa demência de quem não se contenta em ter um deus para si e exige que os outros também o adotem e o adorem. A vontade evangelizadora transforma as religiões em detonadoras do ódio e a competição entre elas em rastilho da violência.

A fé, vivida por cada um, é inócua; transformada em veículo coletivo de conquista ou aglutinação de povos, torna-se um instrumento de violência. É por isso que os Estados devem ser neutros, em matéria religiosa, para poderem garantir a liberdade de todos.

11 de Abril, 2020 Carlos Esperança

Laicidade e laicismo

O padre Anselmo Borges, catedrático jubilado de Filosofia da FLUC, no último artigo semanal, no DN, (sábado p.p.) afirma que existe diferença entre laicidade e laicismo, defendendo a laicidade e condenando o laicismo.

Recorre, aliás, ao Dicionário de Língua Espanhola da Real Academia Espanhola, na sua última edição, que consagra a diferença, como fonte de prova para insistir num artifício semântico que serve a defesa dos privilégios de que a Igreja católica goza em Portugal, perguntando-se ainda se não haverá “uma deriva para confundir laicidade e laicismo”.

Se há deriva, como se verifica no Dicionário supracitado, é para dissolver o conceito de laicidade, consagrado constitucionalmente e torpedeado, na prática, pelo poder central e local, insistindo em exibir clérigos católicos nas cerimónias oficiais.

Não há laicismo mau e laicidade boa porque o laicismo defende a exclusão da influência da religião no estado, na cultura e na educação e tende a emancipar as instituições estatais do carácter religioso, postura que respeita as crenças, descrenças e anti crenças, e a laicidade é apenas o modo concreto da tradução e aplicação prática do laicismo.

A adjetivação da laicidade (positiva, reta, tolerante…) é um outro expediente, frequente, para capturar o laicismo, o conceito filosófico que a legitima.

Sem quebra do respeito e estima pessoal pelo Prof. Anselmo Borges, de quem sou leitor assíduo, abdicar do contraditório ao subterfúgio clerical que tem absolvido a assalto aos edifícios públicos pela iconografia católica, é renunciar à imposição da laicidade.

Abandonar a definição e a aplicação da laicidade aos membros do clero é como confiar aos ateus o ensino do catecismo e a administração dos sacramentos.

9 de Abril, 2020 Carlos Esperança

COVID-19 – Onde estava a polícia?

O bispo do Porto, sr. Manuel Linda, veículo litúrgico em rota de colisão com o Papa e a democracia, foi quem disse que só cancelava a missa comemorativa da eleição do Papa com “intervenção do Estado”. Dececionado pelo silêncio do Estado, pendurou o báculo, guardou a mitra e, à última hora, cancelou a missa, como o Papa e a CEP indicavam.

O autarca de Ovar, o Marta Soares da 2.ª divisão, incentivou o Carnaval no concelho e violou o sigilo sobre o cerco sanitário, avisando no FB, horas antes, o início da decisão, o que levou à fuga de vários munícipes com eventuais infetados a darem início a novas cadeias de transmissão.

O bispo e o autarca são uma parelha de solípedes à solta, a escoicearem o estado de emergência decretado pelo PR e a porem em risco a saúde pública.

9 de Abril, 2020 Carlos Esperança

A senhora Lúcia e a invenção de Fátima

De acordo com os interrogatórios feitos a Lúcia depois do «bailado do sol» de 13 de outubro de 1917, surgiu «Nossa Senhora vestida de branco» sobre a azinheira e, como de costume, depois de um relâmpago. Comunicou-lhe [Nossa Senhora] que deviam rezar o terço em sua homenagem e rogou-lhe que não a ofendessem mais, [quem?].

Entre o pedido de uma «capelinha» no local e informação sobre o regresso dos militares que combatiam na guerra, anunciou-lhes que a guerra acabava naquele dia, o que prova que era escassa a informação e de pouca confiança os informadores de ‘Nossa Senhora’.

Lúcia revelou ainda que, logo após o desaparecimento da visão, que a Igreja católica, ao longo dos anos, converteria em ‘aparição’, olhou para o Sol e viu «S. José vestido de branco», o ‘Menino Jesus vestido d’encarnado’ e ‘Nosso Senhor da cintura para cima’.

Os dados referidos, que constam da pág. 49 do livro «O Sol Bailou ao Meio-Dia», do historiador Luís Filipe Torgal, deixam-nos perplexos. Isto de o Menino Jesus vestir de determinada cor e ‘Nosso Senhor da cintura para cima’, para além de não se saber se alguma nuvem vestiu Nosso Senhor da cintura para baixo ou se, perante as crianças, se esqueceu de cobrir as partes pudendas, leva-nos a concluir que Nosso Senhor apareceu em criança, como Menino Jesus, e em adulto, como Nosso Senhor.

Recordei a guia italiana a quem um turista perguntou de quem era o esqueleto pequeno, dependurado junto de outro, grande, de um santo de vasto prestígio, orgulho da cidade e do museu pio visitado, respondendo logo que era do mesmo santo, em criança.

8 de Abril, 2020 Carlos Esperança

As divergências entre a Irmã Lúcia e a estilista Mary Quant

Lúcia nasceu em 1907, Mary Quant em 1934. Ambas tiveram visões. Uma viu espíritos; a outra, corpos. A primeira dedicou-se à oração e à clausura, a segunda à criatividade e ao trabalho. Lúcia queria as mulheres com o corpo escondido, Mary com ele exposto. A primeira exaltou a fé, a segunda a alegria. No Carmelo usa-se o cilício para castigar o corpo; fora, o corpo busca a felicidade e rejeita interditos.

Não se sabe quantas almas Lúcia afastou do Inferno, onde viajou em vida, mas sabe-se que milhões de mulheres foram felizes, na apoteose da beleza, atraídas pela feliz criação da estilista, a minissaia.

De um lado a flagelação do corpo, para salvar a alma; do outro, a glorificação da vida.

A Senhora de Fátima disse à Lúcia para aprender a ler, talvez para a preparar para o magistério pio de que é exemplo a carta a Marcelo Caetano, que abaixo menciono. A vidente das Carmelitas Descalças, em Coimbra, crítica da moda feminina, escreveu, em 24 de fevereiro de 1971, ao Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, implorando medidas legislativas sobre as vestes femininas:

«…não seja permitido vestir igual aos homens, nem vestidos transparentes, nem curtos acima do joelho, nem decotes a baixo mais de três centímetros da clavícula. A transgressão dessas leis deve ser punida com multas, tanto para as nacionais como para as estrangeiras».

(In Arquivos Marcelo Caetano, citados em Os Espanhóis e Portugal de J.F. Antunes Ed. Oficina do Livro)

Até aprendeu o que era a clavícula, guiada pela Virgem nos caminhos da estética! Foi pena a estilista não ter sido solicitada para desenhar os hábitos das carmelitas. Quem sabe se não teria dado um contributo para atrair vocações, superior ao das orações.

7 de Abril, 2020 Carlos Esperança

Crimes em nome de Deus

As religiões, ao longo da História, destruíram impérios, devastaram povos e desenharam fronteiras. A fé arruinou nações, impediu a liberdade e esmagou a felicidade dos povos. Deus foi pretexto para destruir inimigos e cometer crimes hediondos, com o álibi de lhe satisfazer a vontade.

Deus está, de facto, para azar dos homens, em toda a parte. O deus mais verdadeiro é o que tiver mais devotos, armas e fanatismo a seu favor. Sempre que deus está em alta, a liberdade estiola; quando os homens adoram o seu deus, odeiam os alheios. Os crentes rogam-lhe favores com o mesmo fervor com que acalentam o ódio ao deus dos outros.

É por isso que a democracia fenece onde a religião floresce, a liberdade mingua onde a fé prolifera e o progresso estiola onde a piedade medra.

Não há democracia onde a religião domina o aparelho de Estado. Os direitos humanos não são respeitados onde o poder temporal e o religioso se confundem. Foi na base da separação de poderes e, sobretudo, na separação da Igreja e do Estado, que os modernos Estados de direito se construíram. Foi a laicidade que permitiu o pluralismo ideológico, refreando a vocação totalitária das religiões.

Quando parecia que o Estado laico se tornara paradigma das nações civilizadas, quando o multiculturalismo se convertera em modelo de convivência cívica e os preconceitos étnicos e culturais pareciam vencidos pela instrução, inteligência e sensibilidade dos povos civilizados, os demónios totalitários acordaram ao som das orações, fortalecidos com jejuns, pregações e penitências, trocando o cosmopolitismo pelo comunitarismo.

A Holanda, a doce Holanda, era um exemplo de convivência cívica entre etnias diversas e diferentes culturas, um oásis de tolerância entre distintas opções políticas e religiosas. Em 2003 entrou em choque, quando Pim Fortuyn, um político da direita populista foi assassinado. Depois, o homicídio do cineasta Theo Van Gogh, após a denúncia que fez da forma como o Islão trata as mulheres, e dos requintes de crueldade com que o tratou esse fanático, entrou em declínio a tolerância holandesa. Até hoje.

Incendeiam-se os templos e a opinião pública, e o racismo e a xenofobia crescem. A extrema-direita, que vive da intolerância, explora frustrações, instila o medo, manipula paixões e acicata ódios. A hostilidade aos estrangeiros desenvolveu-se. A fé das pessoas cultas e civilizadas nas sociedades multiculturais vacila. O fascismo islâmico rejubila com a intolerância de que é alvo. As religiões precisam de mártires. Os deuses querem sacrifícios. Os templos tornam-se quartéis que incitam soldados à guerra santa, e entram em desvario prosélito. A religião tem de ser contida, os Direitos Humanos defendidos, a igualdade entre os sexos exigida. A democracia precisa de ser defendida. Urge conter a fé que corrompe, intimida e mata.

Os três últimos lustros acordaram o mundo árabe, no ocaso da sua civilização falhada, para uma vingança cega que a demente invasão do Iraque, em 2003, e a obstinação do expansionismo sionista estimulam.

Desde então, não param de surgir devotos inebriados pelo martírio, em busca de virgens e rios de mel, na vertigem sangrenta que procura extinguir os infiéis do seu deus para garantirem a verdade e as delícias de uma vida para além da que tão cedo prescindem.

E não existe antídoto adequado na civilização que herdámos e nos cabe defender!

5 de Abril, 2020 Carlos Esperança

A ingenuidade do padre Pedro Coutinho e um vírus de carne e osso

Há estórias sem história, um padre inocente que se deixa infetar por um vírus de carne e osso, um fascista que pediu a demissão do partido de que é deputado, sem usar a palavra irrevogável, e tendo para o adjetivo o dicionário de Paulo Portas.

O padre Pedro Coutinho é amigo do assessor do Chega e presidente do Partido Pró-Vida (PPV). Quando este lhe telefonou a perguntar as carências e recebeu, depois, a dádiva, não sabia que posaria para fotografias a segurar leite e fraldas para incontinência com o líder do partido nazi.

Não imaginei que fossem de coisas políticas. Fiquei chateado” – disse o ingénuo padre ao saber-se que a versão masculina e laica da Dr.ª Isabel Jonet lhe apareceu com luzidia comitiva em campanha política.

https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/padre-de-oeiras-diz-se-enganado-pelo-chega-de-andre-ventura
3 de Abril, 2020 Carlos Esperança

COVID- 19

2 de Abril, 2020 Carlos Esperança

A Bíblia e os terroristas da fé

FREDERICO LOURENÇO, professor da Faculdade de Letras de Coimbra e ex-professor da Faculdade de Letras de Lisboa, distinguido pelo Prémio Pessoa, especialista em Estudos Clássicos,autor da primeira tradução integral da Bíblia a partir do grego, ficcionista, ensaísta, poeta e tradutor da Odisseia e Ilíada, dois textos fundamentais da cultura ocidental trazidos por ele para a língua portuguesa, deixou-nos no Facebook esta lição importante , cuja leitura recomendo vivamente:

Jesus e a teologia da doença

O surto de epidemias e pandemias proporciona sempre um pretexto para os fundamentalistas religiosos explicarem o que está a acontecer como castigo de Deus (li hoje de manhã um texto repugnante com esse teor sobre o coronavírus). «Pecados» vários da humanidade – ou de alguns sectores dela, normalmente minorias marginalizadas – seriam supostamente a «causa» da ira de Deus, que se manifesta sob muitas formas (como a Bíblia conta), desde dilúvios a guerras (a guerra é, na Bíblia, o método preferido de Deus para castigar o Seu povo: assírios e babilónios são instrumentalizados por Deus para castigar o povo judeu pelos seus pecados).

Ao contrário, porém, do que poderá parecer (se atendermos ao que dizem os fanáticos), não há assim tantas passagens na Bíblia que nos digam explicitamente que a doença é castigo de Deus. São basicamente duas:

1. «O Senhor atingir-te-á com tísica, febre, inflamação, delírio, secura, ardência e palidez, que te perseguirão até morreres» (Deuteronómio 28:22)

2. «O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave» (2 Samuel 12:15).

Uma passagem muito curiosa é Isaías 3:17, onde vemos uma gradação no entendimento deste problema nas três versões do Antigo Testamento. Na versão grega da Septuaginta, lemos «O Senho rebaixará as filhas nobres de Sião». Na Vulgata, lemos «o Senhor tornará calva a cabeça das filhas de Sião». Mas no texto hebraico, o que se lê é que «o Senhor ferirá com sarna a cabeça das filhas de Sião».

Claramente, a versão grega procura apagar aqui a ideia da doença como castigo – embora sem apagar a própria noção de castigo. Diz somente que o Senhor «rebaixará» as pecadoras; mas não diz que o método de rebaixamento é a doença (alopécia, na Vulgata; ou sarna, na Bíblia Hebraica).

A passagem do livro de Samuel acima citada («O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave») é, para mim, das mais desagradáveis de toda a Bíblia (livro onde não há falta, como sabemos, de frases desagradáveis). Mas uma das vantagens de, no mundo cristão, o Antigo Testamento estar encadernado juntamente com o Novo é a realidade saborosa de muitas passagens do Novo Testamento contradizerem flagrantemente o Antigo.

No início do Capítulo 9 do Evangelho de João, os discípulos de Jesus (formatados pelo judaísmo em que tinham sido educados) perguntam ao Mestre, a propósito de um homem cego desde a nascença, se a razão da cegueira era o pecado dos pais ou o pecado do próprio cego (bom, atendendo a que o homem nascera cego, os discípulos ainda acharam que ele teria pecado logo à nascença! – ou ainda no ventre da mãe, quem sabe [mas seria anacrónico pensar em pecado original, visto que a teologia cristã ainda não o tinha inventado quando João escreveu o seu evangelho]).

Jesus dá uma resposta lapidar, que é um autêntico sismo teológico: «nem este homem pecou nem os pais dele» (João 9:3).

A continuação da frase de Jesus comporta depois alguns meandros de pensamento, que desaguam na frase famosa «enquanto eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo» (João 9:5).

Mas antes disso, houvera ocasião para uma frase que lemos diferentemente nas diferentes Bíblias; uma frase altamente expressiva e que tem tudo a ver com o momento que atravessamos.

A maioria dos manuscritos do Evangelho de João põe na boca de Jesus a frase «cumpre-ME realizar as obras de Quem me enviou». É assim que lemos na Vulgata: «me oportet operari opera eius qui misit me».

No entanto, no texto grego do Evangelho de João tal como o lemos no papiro mais antigo (e tal como ele se encontra corrigido no Codex Sinaiticus, a mais antiga Bíblia completa que nos chegou) – Jesus diz «cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».

Fica a dúvida: Jesus terá dito «cumpre-nos realizar as obras de

Quem me enviou»? Ou «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou?»

A Bíblia favorita dos fundamentalistas protestantes (a King James Bible) afina pelo diapasão da Vulgata católica: «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou». A responsabilidade de fazer o trabalho de Deus está nas mãos de Jesus.

Mas em tempos de pandemia – e sabendo nós, pela boca de Jesus, que ela não se está a propagar para castigar os pecados de ninguém – faz-nos muito mais sentido aquele pronome grego (ἡμᾶς) que tão eloquentememente muda, no papiro mais antigo, o sentido da frase.

O trabalho de Deus está (também) nas nossas mãos. ἡμᾶς δεῖ ἐργάζεσθαι τὰ ἔργα τοῦ πέμψαντός με (hēmās dei ergázesthai tá érga tou pémpsantós me). «Cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».

Frederico Lourenço
· 15 de março ·