Hitchens, 1: a religião envenena tudo.
A palestra do Christopher Hitchens ontem (1) não deve ter surpreendido quem já tivesse lido alguma coisa dele. Nem pelo conteúdo, que foi o previsto, nem pela forma, pois no que ele escreve nota-se que é um comunicador extraordinário. Mas foi uma experiência interessante vê-lo ao vivo. Vou aproveitar algumas ideias que ele expôs como inspiração para uns posts, começando pela mais óbvia.
Hitchens defende que a religião envenena tudo quer pelas suas consequências quer pelos seus princípios. Não há nenhum acto que se reconheça como bom que seja exclusivo dos religiosos e, para ser uma pessoa boa e ter valores louváveis, não é preciso ter religião. Por outro lado, facilmente nos ocorrem actos e valores condenáveis associados a práticas religiosas, desde os sacrifícios humanos e a inquisição aos ataques bombistas e à mutilação genital de raparigas. Ele não o mencionou mas, antecipando já as criticas costumeiras, saliento que isto não quer dizer que todos os ateus sejam boas pessoas. O ponto aqui é que a religião é desnecessária para se ser bom e é motivo para muitos actos condenáveis. Pesando os prós e os contras, mais vale não a ter.
Mesmo entre os que são ateus, num sentido estrito, o mau comportamento institucionalizado vem da aceitação acrítica de superstições e ideologias estranhas ao ateísmo. Na Coreia do Norte, um exemplo comum dos terrores do ateísmo, a Constituição foi alterada em 1998 para nomear Kim Il-Sung o Presidente Eterno da República. O homem já tinha morrido quatro anos antes. O estalinismo, o maoismo e a ditadura em Cuba, apesar de não seguirem algo que oficialmente seja considerado divino, assentam também numa teimosia ideológica que o ateísmo não exige mas que é fundamental em qualquer religião. As religiões consideram-se acima das limitações, da falibilidade e até da contestação humana, e é essa atitude que facilmente tem consequências trágicas.
Além disso, as religiões declaram-nos todos servos dos deuses. Não somos donos de nós próprios nem os responsáveis pelos nossos valores. Somos instrumentos criados por outrem para servir os seus propósitos e cujo mérito é função da submissão a esse desígnio. Isto desumaniza as pessoas.
Nestes aspectos concordo com o Hitchens, mas parece-me que ele erra ao considerar, implicitamente, que a religião é a origem destes problemas. A religião é apenas um de vários meios de desumanizar e levar pessoas boas a praticar o mal. É o mais popular e foi provavelmente o primeiro a ser inventado, mas não é o único. O problema fundamental não é a crença num deus ou numa casta de sacerdotes; é a facilidade com que abdicamos da nossa autonomia e responsabilidade e lavamos mãos das asneiras que fazemos com a desculpa de agir em nome de qualquer fantasia que nos impinjam.
1- Casa Fernando Pessoa, “Livres Pensadores” com Christopher Hitchens
Em simultâneo no Que Treta!.