Os imparáveis fanfarrões
A Sociedade Bíblica Portuguesa avaliou como um sucesso o projecto «Bíblia Manuscrita», por ela organizado, e, assim, este continuará, envolto em novas roupagens, até Outubro de 2005. Por essa altura, um exemplar da dita obra será entregue à Biblioteca Nacional no âmbito da abertura da exposição «A Bíblia e a Cultura Portuguesa».
Alfredo Abreu, coordenador geral da iniciativa, afirmou, muito profunda e democraticamente, que «o livro mais lido do mundo é, em Portugal, o livro que o povo escreveu». Se continuarmos iguais a nós próprios, o livro estará cheio de erros ortográficos e, quiçá, de sintaxe.
A decisão de prolongar a cópia bíblica foi tomada depois de a SBP ter recebido missivas de várias partes do país, que se sentiram ?excluídas? da iniciativa por se encontrarem distantes dos «scriptoria», instalados nas capitais de distrito, a pedirem por um «scriptoriozinho».
Não se contentando com a notícia de que a propaganda vai continuar por mais um ano, a Sociedade Bíblica apresenta uma série de «improbabilidades» que ocorreram no âmbito deste acontecimento. A primeira é a Bíblia ter entrado «na agenda dos media em novos moldes, tendo o pleno dos jornais televisivos do horário nobre feito directos da abertura de uma iniciativa relacionada com este livro dos livros». Isto não é de estranhar a partir do momento em que vimos estátuas que choram sangue ou cera a abrir noticiários, em que temos um programa na televisão pública dedicado a algumas religiões presentes em Portugal, em que havia um canal exclusivamente religioso ou em que um sem número de missas são transmitidas em directo. Já para não dizer que, nos dias que correm, não é muito complicado arranjar uma notícia mesquinha e sem interesse para preencher os horários nobres.
A segunda «improbabilidade» é, nas mesmas páginas, terem escrito o Presidente Jorge Sampaio e o primeiro-ministro Santana Lopes. É triste isto ter-se verificado. É triste ver representantes da República Portuguesa (regiões autónomas incluídas), que é laica, a vergarem-se face à religião.
A «improbabilidade» seguinte foi todos os órgãos de soberania terem estado «representados ao mais alto nível, com excepção do Supremo Tribunal de Justiça por razões de impedimento de saúde do seu Presidente». Dá-me uma urticária brutal esta fanfarronice de a SBP ter tido as instituições da República prostradas no beija-mão. Os poderes legislativo, executivo e judicial, em nome da Justiça, da Democracia e da Igualdade, não têm nada de participar em eventos que dizem respeito a apenas uma fracção da população e que estão relacionados apenas com as convicções íntimas dos cidadãos.
Por último, mas não menos importante, a presença da «Bíblia Manuscrita» em escolas e universidades públicas, hospitais públicos e estabelecimentos prisionais, usurpando um espaço que devia ser de todos e não de apenas alguns crentes.
E, assim, a SBP regozija-se.
Outros artigos do Diário sobre este assunto:
Propaganda Copista, de 21 de Março de 2004;
50 mil jovens criam Bíblia manuscrita, de 23 de Março de 2004;
À conquista da Nação, de 04 de Novembro de 2004;
O Presidente da República e a Bíblia, de 06 de Novembro de 2004;
Alguns ateus são amorais…, de 06 de Novembro de 2004;
Promiscuidade estadual, de 18 de Novembro de 2004;
Presos e doentes, copiai, de 18 de Novembro de 2004.