O que diz Marcelino II
O artigo de opinião publicado no 1º de Janeiro, foi anteriormente publicado como editorial do “Correio do Vouga”, semanário da diocese de Aveiro. É sensivelmente o mesmo artigo, mas reproduzimo-lo na íntegra. Agradeço ao leitor atento que nos fez chegar a publicação deste artigo. (Obrigada!)
O ateísmo português, constítuido em associação
António Marcelino
Os jornais noticiaram a criação recente de uma associação de ateus, com o título “Associação Républica e Laicidade”. Nos propósitos levados à comunicação social, diz-se que os ateus em Portugal, a avaliar pelo censo de 2001, serão 250 mil, que o ateísmo junta pessoas que partilham ideias sobre o cepticismo, o agnosticismo e o laicismo e que não tm motivos para crer em Deus. Vai-se dizendo, ainda, que associação está contra a Concordata, pois esta é “uma subtracção de direitos do jogo democrático”.
Felizmente que vivemos num regime de liberdade de consciência e de expressão, no qual ninguém deve ser penalizado por acreditar ou não acreditar, por ser aderente desta ou daquela religião ou por não professar qualquer religião.
O fenómeno não é recente. Tem história que vem de longe, com matizesdiversificados no tempo e segundo as influências ideológicas em que se inspira. O Concílio Vaticano II, propondo-se “investigar a todo o momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do evangelho”, debruçou-se com muita seriedade e serenidade sobre o ateísmo, antigo e moderno, e procurou tirar, da sua reflexão, conclusões orientadoras.
O avanço dos estudos antopológicos, a nova visão crítica da história que não reduz esta a um amontoado de factos e datas, nem lhe corta a sua dinâmica interior e, por fim, a abertura necessária ao diálogo, com todos quantos o queiram fazer sem preconceitos e numa atitude de respeito, questionamento e procura, permite ir mais longe na consideração dos problemas que afectam profundamento o ser e o agir humano, e convidam ao entendimento construtivo entre pessoas honestas, qualquer que seja a sua raça, cor, língua, cultura, confissão ou não confissão religiosa.
O que se está passando agora e que bem se compreende, dado o contexto social em que vivemos, é a necessidade de afirmação pública do que se crê ou do que se vive, e que, até há pouco, mais fazia parte do íntimo e do privado de cada pessoa. Assim se justifica socialmente a associação de ateus, as diversas associações dos homosexuais, os grupos de luta pró-aborto, a militância organizada pelos direitos dos que vivem em união de facto e tantos outros acontecimentos, uns mais recentes que outros.
É curioso, porém, verificar que estes grupos e outra gente que navega em águas vizinhas, à medida que defende para si direitos de plena cidadania, os nega a outros portugueses, esforçando-se por fechá-los e às suas convicções, nos espaços privados das sacristias de cada um.
A nova associação anuncia, logo ao nascer, militância aberta em relação aos crentes, porque os ateus, eles sim, é que “valorizam a humanidade e a vida na terra, como um bem natural, sem qualuqer intervenção divina”. Acrescentam ainda que “os deuses são criações da imaginação dos homens como quaisquer outras abstrações”.
A tentação dos dogmatismos, novos e velhos, misturada com esse orgulho genético que torna impossível o dom da fé, é sempre prova de fraquesa ou deslocação dos pontos de apoio. Os motivos para acreditar não estão situados na cabeça, mas no coração, expressão do que anima a vida e lhe dá sentido e têmpero. A inteligência ou é também emocional, ou não é humana, nem favorece a vida do homem e as relações mútuas. Os fundamentalismos são a cegueira de um raciocínio unidimensional, que já nada tem de humano e por isso não tem por que respeitar nem a vida própria, nem a dos outros.
Sei bem que o ateísmo pode ser humanista e que assim é em muitos que se dizem ateus. porém, quando se corre o tejadilho que impede de olhar alto, deixa de se procurar e de contemplar o transcendente. O homem que só olha para si, vale menos e dá menos valor aos outros homens. A dimensão e o valor da pessoa não tem em si suas raízes.
Há que alimentar estas, aí onde elas nascem e onde começam a ter e a gerar vida.