O contexto
Charles Darwin afirmou:
«Supor que o olho com todos os seus dispositivos para ajustar o foco a distâncias diferentes, para admitir quantidades de luz diferentes, e para a correção de aberração esférica e cromática, podia ter sido formado pela seleção natural parece, confesso livremente, absurdo no mais alto grau.»
Muitos criacionistas utilizam esta citação para alegar que nem o próprio Darwin acreditava na sua teoria da selecção natural.
Para lhes responder, os seus interlocutores não se limitam a afirmar que a citação está fora do contexto. Eles mostram-no:
«Supor que o olho com todos os seus dispositivos para ajustar o foco a distâncias diferentes, para admitir quantidades de luz diferentes, e para a correção de aberração esférica e cromática, podia ter sido formado pela seleção natural parece, confesso livremente, absurdo no mais alto grau. Quando foi dito pela primeira vez que o sol estava parado e o mundo girava à sua volta, o senso comum da humanidade declarou que essa doutrina era falsa; mas conforme todos os filósofos sabem, em ciência não se pode confiar no velho lema Vox populi, vox Dei. A razão diz-me que se for possível mostrar que existem numerosas gradações desde um olho simples e imperfeito até um olho complexo e perfeito, cada gradação sendo útil para o seu possuidor, como certamente é o caso; se, além disso, o olho alguma vez variar e as variações forem herdadas, como certamente também é o caso; e se tais variações forem úteis para qualquer animal sob condições de vida em mudança, então a dificuldade em acreditar que um olho perfeito e complexo podia ser formado por seleção natural, embora insuperável pela nossa imaginação, não devia ser considerada como subversiva da teoria.»
Quando se cita um texto, por forma a dar a entender que o seu autor afirma algo, quando na verdade ele pretende afirmar o oposto, ou algo muito diverso, isso é grave. Quem considera que a citação trai a mensagem do autor deveria tentar esclarecer os leitores, referindo em que medida é que o contexto desmente a ideia que se tentou passar através da citação.
Há casos em que isto não se sucede. Quando nada no contexto em que uma afirmação foi feita desmente o seu sentido, torna-se muito complicado sustentar a acusação de retirar a citação do contexto com informação, provas, ou razões sérias que sustentem essa acusação.
Em vez disso fazem-se acusações vagas, apela-se a informação que se deseja desconhecida da audiência, sem nunca a concretizar, para que a audiência acredite na acusação, mesmo sem nenhuma razão para o fazer.
Isto obviamente acontece em vários domínios do debate público. Políticos que desejariam não ter dito uma asneira qualquer, apelam ao contexto, mesmo quando nada no contexto os desculpa. Desde afirmações racistas, até afirmações sexistas, homofóbicas, intolerantes, existe sempre a justificação do contexto.
Mas essa justificação é vazia quando nenhum esclarecimento é dado sobre em que medida é que o contexto demonstra quanto a citação pode ser enganadora.
Mas se escrevo este artigo neste blogue, não é por acaso. É porque não há nenhum domínio do debate público – nenhum! – no qual tantas vezes surja a acusação injustificada das citações retiradas do contexto, como o tema da religião.
Suponho que isso aconteça porque a mensagem do livro sagrado dos cristãos é flagrantemente incompatível com os valores humanistas que as nossas sociedades dizem abraçar. A Bíblia exorta os crentes a matar quem trabalha ao Sábado, quem comete adultério, quem tem outra religião, etc… Não há nada no contexto literário, histórico-cultural, nenhuma alegação de erro na tradução, nada que desminta tais exortações.
Assim sendo, muitos cristãos foram sendo habituados a defender a mensagem do seu livro sagrado fazendo alegações vazias a respeito do contexto e da interpretação. E de tanto fazerem tais acusações, já as fazem levianamente a respeito de tudo. Um Papa disse que a democracia é incompatível com o catolicismo, não há problema, isso tem um contexto. A menorização da mulher, a luta contra o divórcio, os ataques à laicidade, o que quer que seja, nunca preocupa tais crentes: há sempre um contexto.
Até o Mein Kampf tem um contexto, mas isso não justifica que eu deixe de considerar que Hitler era um racista intolerante, mesmo sem ter lido essa obra. Se um racista qualquer me vier acusar de «estar a ver as coisas fora do contexto», exijo-lhe que sustente tal afirmação.
O mesmo posso dizer a respeito das obras daqueles que directa ou indirectamente lançaram as fundações da inquisição. Conheço muitas passagens que revelam intolerância, obscurantismo, confusão intelectual. Serei eu que estou a entender mal? Estarei a ler essas passagens fora do contexto? Mostrem-mo.
Até lá são acusações vazias.