Humor e religião
NOTA EDITORIAL: Entramos em Agosto, o mês de férias por excelência. Recuperamos um conjunto de prosas de Onofre Varela, escrito em três partes, mas que reunimos aqui num texto único para uma leitura mais fluida.
É sabido que o riso é fundamental na manutenção da saúde. Quem dá umas valentes gargalhadas diariamente e, principalmente, se consegue rir de si próprio, raramente está doente. Para além deste valor profiláctico, o sentido de humor também é sinal de inteligência; quem o usa consegue melhor qualidade de vida para si próprio e, invariavelmente, partilha-o com amigos, familiares e conhecidos próximos.
Na nossa sociedade há imensa gente a tentar fazer-nos rir, começando pelos hilariantes políticos que temos e que dizem estar ali, onde estão, no Hemiciclo de S. Bento, no Governo ou nos Partidos, apenas para nos engrandecer, nos governarem bem (dizem eles) e fazerem-nos imensamente felizes… cago-me a rir com tais anedotas!…
Para lá destes tristes humoristas, há os outros, os autênticos, que nos encantam em palco, na rádio e na televisão. De entre estes produtores de riso não é raro (é, até, demasiadamente habitual) haver criadores que vivem bastante mal, mercê das acções dos outros humoristas das bancadas políticas.
No naipe dos autênticos e verdadeiros humoristas que nos fazem rir e pensar, destaca-se o actor multifacetado Herman José. Recordo que em 1994, Herman teve um programa no canal 1 da RTP, denominado “Herman Zap!”, de grande audiência e agrado nacional. Um dia, nas suas rábulas, criou uma Última Ceia de Jesus, humorística. Grande gaita… caiu o Carmo e a Trindade!…
A Igreja Católica não achou piada nenhuma àquele excelente trabalho de comédia, e protestou (aliás, caracteristicamente, os agentes religiosos têm um humor idêntico aos dos políticos que nos querem comer. E quando os religiosos censores do humor são fundamentalistas islâmicos, cobram o riso assassinando quem o produz).
O bispo Maurílio Gouveia, então responsável por um gabinete que julgo denominar-se “Episcopado para a Comunicação”, apressou-se a dizer que “O programa ridicularizou o que há de mais sagrado na fé dos cristãos: a eucaristia”.
A série de programas foi interrompida e realizaram-se mesas redondas debatendo a questão religiosa e a liberdade de expressão. Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PPD, declarou: “Vejo com preocupação que, sendo um canal de serviço público, nele se encontrem mensagens que podem ser consideradas ofensivas de valores partilhados pela maioria dos portugueses e também ofensivas de instituições particularmente relevantes como é a Igreja Católica”.
Herman José mostrou-se surpreendido pela reacção da Igreja, declarando: “Deus deve estar a rir-se às gargalhadas da mesquinhez de quem criticou o Herman Zap!”.
O escândalo armado pela Igreja Católica à volta do programa de humor e diversão “Herman Zap!”, em 1994, levou à realização de uma Mesa Redonda na RTP em horário nobre, tal era a importância da matéria em apreço.
Discutiu-se aquele programa transformado em tragédia nacional pela Igreja, com um painel diversificado, do qual fazia parte Frei Bento Domingues e um professor universitário católico. Este, manifestou-se totalmente contra o programa de humor em questão, considerando-o demoníaco ou próximo de tal apreciação.
Já Frei Bento Domingues (único interveniente que podia, licitamente, representar a Igreja por fazer parte dela) sublinhou estar ali particularmente, não representando mais nada nem ninguém, para além dele próprio. Pareceu-me ser o interveniente que teve a opinião mais lúcida. Declarou ter visto o programa e não ter encontrado nele nada que beliscasse a sua fé. Confessou que até lhe achou graça: “Aquilo tinha a ver com o meu riso, não com a minha fé”, disse.
É sempre bom sabermos que a Igreja não é só composta por fanáticos intolerantes, saídos de amarelecidas e mal cheirosas folhas de pergaminho arrancadas a um livro medieval. Felizmente (principalmente para ela própria, para o seu futuro e para a sua credibilidade) que também conta com membros dotados de “inteligência exterior à fé”, como é o caso de Frei Bento Domingues.
Mais recentemente, na madrugada do dia 24 de Dezembro de 2019 (era então Jair Bolsonaro dono do Brasil e dos brasileiros) houve um ataque com cocktails Molotov à sede da produtora de conteúdos televisivos Porta dos Fundos, como protesto pela transmissão televisiva de um sketch cómico com o título “A primeira tentação de Cristo”, na qual Jesus era representado como um jovem que teria uma experiência homossexual, e também se insinuava que o casal bíblico Maria e José viveu um “triângulo amoroso com Deus”.
Eu vi o programa e não lhe achei a graça que, provavelmente, os seus autores pretendiam. Teve dois ou três momentos de humor, e o restante, para o meu gosto e de acordo com o excelente trabalho que já vi do mesmo grupo, era francamente mau. Para mim tinha uma qualidade muito rasteira… mas, daí, até se lançarem bombas contra a empresa produtora do programa, vai uma distância abissal!…
Pode-se gostar, ou não gostar, de qualquer programa televisivo, como se gosta, ou não se gosta, de um livro, de uma música, de um filme ou de uma personalidade pública; e é lícito criticar aquilo (ou aquele e aquela) de que não gostamos. Numa sociedade livre e democrática (como deve ser o Brasil moderno) quem se considera ofendido na dignidade ou no mais profundo das suas convicções, apresenta o seu protesto às entidades competentes para julgar o caso. A Democracia e a Justiça farão o seu trabalho… mas um ataque à bomba é crime!
Naquele momento a política brasileira contava com acções da Direita mais extremista que apoiava Bolsonaro. A liberdade de expressão e de criação artística estava comprometida e o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, deputado por São Paulo, foi uma das figuras públicas a condenar o sketch. Os actores Gregório Duvivier e Fábio Porchat, responsáveis pela “Porta dos Fundos”, declararam: “Não nos vamos calar! Nunca!”. Eu apoiei-os, embora aquele trabalho não me agradasse, mas defendo a sagrada liberdade de expressão.
Um dia depois do atentado, um grupo ultra-nacionalista intitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integrista Brasileira, reivindicou a responsabilidade do atentado.
O espírito que sobressai do nome deste grupelho leva-me a entendê-lo como uma espécie de Ku-Klux-Klan e de agrupamento Nazi. Só grupos de tal índole atacam a liberdade de expressão, alegadamente em favor de um ultranacionalismo balofo, desusado, fundamentalista e criminoso.
E será que os criminosos bombistas, insatisfeitos com o trabalho humorístico da Porta dos Fundos, entenderam o sketch? Será que conhecem a passagem bíblica que lhe deu origem?
Os religiosos que se sentem ofendidos com uma comédia quando ela brinca com elementos da sua crença, devem protestar nos locais próprios que os regimes democráticos têm para esse fim.
No caso do atentado brasileiro duvido do sentimento cristão do grupo de criminosos-nacionalistas, cuja reacção foi atacar à bomba!… Este acto poderá estar relacionado com o actual regime político que permite a violência e tem gente da IURD sentada no Parlamento, sendo que o próprio presidente é afecto a essa seita dita evangélica, e por muitos apontada como criminosa.
Os extremistas muçulmanos também reagiram com metralhadoras contra o jornal satírico Charlie Hebdo, em 2015, matando 12 jornalistas-cartunistas, só porque não gostaram de uma crítica a Maomé! Os extremistas religiosos e patrióticos não pensam para além do tabu sacramental de Deus e da Pátria. Não têm sentido de humor, nem nenhum outro sentimento que não seja o da vingança violenta. A interpretação que fazem dos textos religiosos é programada pelos gurus das seitas e dos credos, e não pela sua capacidade de entendimento.
No caso da comédia brasileira, aludindo uma hipotética homossexualidade de Jesus, ressaltam alguns condicionamentos mentais dos crentes que os levam à irritação, à fúria e ao crime. Desde logo, temos a própria homossexualidade que é condenada por si só e que os crentes rotulam de “pecado”. E depois… não lêem a Bíblia! Dizem ser o seu livro sagrado, mas não têm a mínima ideia do seu conteúdo!
No Novo Testamento (João: 13; 21-30) é narrada uma cena incluída no capítulo onde se encontra a célebre frase de Jesus: “Na verdade vos digo que um de vós me há-de trair”. Perante esta denúncia, os seus discípulos olharam-se, perplexos com o que o Mestre lhes dizia. A parte curiosa desta narrativa está nesta frase: “um dos seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus”. Quer dizer que Jesus só amava um dos discípulos (ou amava-o mais, ou de modo diferente, do que a todos os outros?), que por acaso era aquele que se encontrava ao seu colo, na posição de reclinado… isto é, deitado… o que presumia alguma intimidade para além da amizade.
Simão Pedro fez sinal a esse jovem a quem Jesus amava, para que perguntasse ao Mestre quem era aquele que o haveria de trair. O jovem aproximou a sua boca do rosto de Jesus e perguntou: “Senhor, quem é?”. Segundo esta narrativa, aquele a quem Jesus amava e que se reclinava sobre o seu seio, era seu confidente e porta-voz. Através dele os outros discípulos dirigiam-lhe as questões e ouviam a resposta (pelo menos naqueles versículos).
A interpretação desta passagem bíblica pode ser variada… e uma das variações, tão válida como qualquer outra, pode ser entendida como havendo uma relação íntima entre aqueles dois homens. Não é à toa que os autores teatrais tratam os assuntos históricos ou míticos. Eles lêem, estudam e investigam, para poderem fundamentar as suas estórias que passam em palco, na televisão ou no cinema. Ao contrário, os fundamentalistas bíblicos só têm uma interpretação – a radical – e baseados nela arrogam-se o direito de lançar bombas contra aqueles que, dando cumprimento ao seu trabalho de criar rábulas teatrais (ou cartunes), atingem um nível de raciocínio que está vedado aos agressores. Por isso se radicalizam… e o governo brasileiro de Jaír Bolsonaro alimenta essa radicalização e parece apoiar os seus actos!… E se estes terroristas não forem apanhados e julgados… não parece que os apoia… apoia-os mesmo!
Termino transcrevendo uma frase do meu camarada cartunista Zé Oliveira: “Produzir humor é um acto de inteligência. Produzir terror é um acto de estupidez bárbara”. (Fim)
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
OV
Perfil de Autor
Onofre Varela nasceu no Porto em 1944, estudou pintura e exerceu a atividade de desenhador gráfico em litografia e agências de publicidade, antes de abraçar a carreira de jornalista (na área do cartune), em 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro. Colaborou com a RTP, desenhando em direto a informação meteorológica no programa Às Dez e animando espaços infantis. Foi caricaturista e ilustrador principal no Jornal de Notícias, onde também escreveu artigos de opinião, crónicas e entrevistas.
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CATEGORIES
Diário de uns ateus -
DATE
8 de Março, 2024 -
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