Os corvos e a teoria da mente
A alma1 é um daqueles conceitos de que todos crentes falam, mas de que ninguém tem uma noção ou opinião coerente. Tanto existe fisicamente, como é imaterial. É a essência de um ser e/ou a fonte da consciência. As opiniões e as teologias dividem-se, e o homem comum, ateu prático no seu dia a dia, põe nas horas de desespero, a sua esperança na sua existência. Esperanças, medo e emoções enganadoras é, o que em tudo isso se baseia.
Julgamos poder reconhecer nos outros a existência de alma, porque conseguimos nos aperceber neles, das suas intenções e objectivos.
Nos estudos cognitivos chama-se a isso ter uma «teoria da mente». Essa característica, culturalmente atribuída à alma, é antes um produto do cérebro. Algures nas nossas cabecinhas, existem circuitos neuronais que reconhecem a existência de uma mente num objecto exterior e nele projectamos os potenciais comportamentos e expectativas.
É um mecanismo muito útil. Experimentem, por exemplo, sobreviver a uma matilha de lobos, sem reconhecerem uma mente nos lobos. Ou viver numa sociedade humana, sem imaginarmos, ou aperceber-nos do que se passa na cabeça dos outros.
É também a fonte da empatia para com os outros, bem como a capacidade bem sucedida de mentir em sociedade. Não ter esta capacidade, faz de nós, seres humanos, autistas.
Depois do aparecimento do método científico, a investigação do comportamento animal veio a descobrir que nos mamíferos, uma vasta gama de animais, desde os gorilas até às cabras tinham a capacidade de suportar uma «teoria da mente».
E agora, foi a vez dos pássaros. Mais concretamente dos corvos.
Confesso-vos que sou um admirador de corvos. Não é uma espécie muito comum em Portugal, embora já tenha visto bandos no Alentejo e nalgumas zonas rurais do centro do país. Os corvos não são pássaros comuns. Trabalham em equipa. Têm rituais de acasalamento muito sofisticados e ligados ao valor que os parceiros têm na capacidade de resolução de problemas. Têm um especial fascínio por todo o género de objectos brilhantes e fora do comum. São curiosos além da necessidade. E sabem contar até três.
Dois artigos recentes2,3 vieram mostrar que os corvos têm uma teoria da mente. Mais: utilizam-na para mentir e enganar.
No primeiro artigo2, publicado nos Proceedings da Academia Real Inglesa, Bernd Heinrich e Thomas Bugnyar fizeram um clássico teste da existência de uma teoria da mente. Num ambiente controlado, estando o corvo numa área fechada e só com uma abertura frontal que dá para o experimentador, fez-se o experimentador olhar intensamente e durante algum tempo na direcção de um suposto objecto que está fora da vista do corvo. O experimentador retira-se. Observa-se, então, a reacção do corvo através de um sistema de vídeo.
Não é que todos os corvos, tentaram descobrir o que é que o humano tinha visto?
Noutra experiência, publicada no jornal Animal Cognition, a descoberta foi mais serentípica. Thomas Bugnyar apercebeu-se do relacionamento fora do vulgar de dois corvos durante uma experiência de cognição. O objectivo da experiência era determinar, se os corvos aprendem uns com os outros a localização de fontes de comida. E assim acontecia. Só que estes dois corvos, Hugin e Munin fizeram algo completamente inesperado.
Hugin, era o corvo mais diligente. Munin o mais dominante. De maneira que sempre que Hugin encontrava comida dentro de caixas tapadas, Munin apercebia-se e como dominante, afastava Hugin para comer a comida. Hugin fartou-se. Resultado: começou a enganar Munin, fingindo que comia de caixas vazias. Munin avançava para as caixas e enquanto se distraia a procurar comida, Hugin ia comer das caixas onde tinha encontrado comida.
Mas a história não fica por aqui. Munin apercebeu-se que estava a ser enganado. Resultado: deixou de ir logo às caixas onde Hugin fingia que comia e passou a observar com mais cuidado Hugin.
Por sua vez, Hufin apercebeu-se que Mugin se tinha apercebido.
Ficou furioso e atirou com caixas, palha e bebedouro para todos os lados. Tinha sido apanhado na mentira!
Será então, que os corvos têm alma? Não creio. Temos que ser rigorosos no uso da linguagem e não confundir descrições com realidades. A minha confiança, experiência e amor na navalha de Occam4, fazem-me a mim, chegar à conclusão que são só àtomos a combinarem-se de maneiras maravilhosas…
Somos todos maravilhosos.
Referências:
1 – o conceito de alma (em inglês) http://en.wikipedia.org/wiki/Soul
2 – Ravens, Corvus corax, follow gaze direction of humans around obstacles – Thomas Bugnyar , Mareike Stöwe (em inglês) Resumo do artigo
3 – Leading a conspecific away from food in ravens (Corvus corax) – Thomas Bugnyar, Kurt Kotrschal (em inglês) Resumo do Artigo
4 – Occam e a sua Navalha – Artigo na Sociedade da terra redonda