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Aqueles para quem a liberdade vale zero

A nota pastoral «Razões para escolher a vida», de Outubro de 2006, foi o documento teórico fundamental sobre a despenalização do aborto produzido pela Conferência Episcopal Portuguesa da ICAR. Apesar de aí se prometer que «nós, os Bispos, não entramos em campanhas de tipo político», a ICAR tem feito exactamente uma campanha de tipo político, que aliás tem sido profusamente documentada no Diário Ateísta (e na qual os bispos têm participado). É também significativo que se afirmasse que «a escolha no dia do referendo é uma opção de consciência, que não deve ser influenciada por políticas e correntes de opinião», e que se procure influenciar religiosamente a campanha: os bispos da ICAR aceitam (com relutância) a autonomia política do Estado, mas recusam a autonomia ética da sociedade.

No documento referido, os bispos da ICAR afirmam «[considerar] a vida humana um valor absoluto», uma valoração incoerente com a possibilidade de pena de morte prevista no parágrafo 2267 do catecismo católico, mas que até por isso é de louvar. (Mas é suspeito que não tenham o mesmo empenho em combater a violência doméstica, como assinala uma leitora católica do Diário Ateísta: «Mulheres mortas por violência doméstica, era um bom tema para uma homilia num domingo, ou uma Nota Pastoral. Nunca ouvi nenhuma».) As razões profundas para a obsessão eclesial com a IVG, que jamais são assumidas pela CEP, devem-se ao facto de evidenciar que existem pessoas que têm relações sexuais sem finalidade procriativa.

Os senhores bispos dizem alguns disparates. Por exemplo, afirmam que «é hoje uma certeza confirmada pela Ciência [que] todas as características e potencialidades do ser humano estão presentes no embrião». As «potencialidades», não tenho dúvidas de que estão todas. Mas todas as características? Será que a actividade cerebral não é uma característica do ser humano? Ou o controlo do corpo? A autonomia biológica não conta? Estranho…

Mas passemos à questão ética. Como escrevi na minha declaração de voto, o dilema fundamental é entre o valor da liberdade da mulher e o valor da vida. Os senhores bispos dizem que «a vida humana, com toda a sua dignidade, existe desde o primeiro momento da concepção». (Em rigor, a vida humana não começa com a fecundação: os espermatozóides e o óvulo são células humanas vivas. Na fecundação, começa um novo indivíduo, ou vários com a mesma herança genética.) No entanto, é muito curioso que, apesar de apregoarem que vêem «toda a dignidade» e um «valor absoluto» no óvulo fecundado, os senhores bispos não lhe dêem a mesma dignidade e valor que conferem a uma criança. Efectivamente, se fossem coerentes, os senhores da CEP defenderiam a criminalização da «pílula do dia seguinte», e que a pena por abortamento correspondesse a um crime de homicídio. Não o fazem, e dizem até que as mulheres que abortam «precisam de ser ajudadas e não condenadas». Fica a impressão de que nem para os bispos da ICAR a vida intra-uterina é realmente um valor absoluto, apesar de afirmarem o contrário. Qual será o valor a partir do qual relativizam o «absolutismo» que, enganosamente, afirmam atribuir à «vida»? A única pista está no facto de citarem o episódio da fonte de Samaria, onde «Cristo» «perdoa» uma mulher adúltera. Portanto, fica a suspeita de que o aborto está mais próximo do adultério do que do homicídio. De qualquer forma, a liberdade não consta, como valor ou sequer como referência, na nota pastoral, o que é coerente com a antipatia católica pela autonomia dos indivíduos.

Para resumir a análise do documento dos bispos da ICAR, uma mera contagem de palavras é suficiente. A palavra «mulher» aparece sete vezes, e a palavra «mãe», três vezes; enquanto a palavra «vida» aparece dezassete vezes. Há uma palavrinha fundamental que não faz parte do léxico católico: liberdade. Aparece zero vezes. Zero.

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