De funerais e bonifrates
A recusa da Igreja de Roma em conceder um funeral católico a Piergiogio Welby, o italiano de 60 anos que sofria de distrofia muscular em estado terminal e que foi punido pela sua campanha pelo direito a morrer com dignidade – nomeadamente pelo direito a recusar tratamento médico – não é um caso isolado.
Há uns tempos a Mariana deu conta de um bispo de San Diego que recusou um funeral católico ao dono de dois bares gay, negócio «inconsistente com os ensinamentos católicos» e como tal «as pessoas ficariam escandalizadas se a igreja concedesse um funeral a alguém que se dedicasse a estas actividades». Claro que o facto de o mesmo bispo ter sido obrigado a indemnizar um ex-seminarista para evitar mais um mediático julgamento envolvendo abuso sexual perpetrado por um membro do clero católico não escandaliza alguém por tão corriqueiro…
Esta ortodoxia na morte parece estar a tornar-se praxis comum em Itália, pelo menos por parte do padre Fernando Di Fiore – com todo o apoio da hierarquia católica local – que considera não serem católicos na morte aqueles que não seguiram estritamente os ditames do Vaticano em vida. Assim, não oficiou ao funeral de um homem que suspeitava ter ligações às Testemunhas do Jeová, não obstante os protestos em contrário da família, e recusou «encomendar a alma» de um homem que, horror dos horrores, tinha quebrado os «sagrados» laços do matrimónio e vivia em pecaminoso «concubinato» – isto é, se tinha casado civilmente após um divórcio.
Uma vez que o bispo local respondeu neste último caso confirmando que o padre Di Fiore tinha agido de acordo com as regulações da Igreja, fico na dúvida porque razão a Igreja consente em práticas «fora da lei» católica, isto é, pelo menos não repreende os padres que regularmente oficiam em funerais de quem ignorou as (muitas) proibições da Igreja e insistiu viver em «pecado».
Se estas regulações fossem obedecidas estritamente e fosse negada a «recomendação da alma» e concomitante missa a todos os que não seguiram à risca os ditames de Roma, nomeadamente no que respeita à sexualidade não abençoada num casamento católico ou com fins não estritamente procriativos -traduzidos no uso dos execrados contraceptivos, condenados como contrários à «moral» católica – deixaria de fazer sentido o quasi monopólio da Igreja no negócio da morte que se verifica cá no burgo.
E poderia ser que o nosso Estado supostamente laico se lembrasse de propiciar espaços condignos na morte aos seus cidadãos que não se regem pelas emanações da Igreja de Roma, isto é, respondesse finalmente à pergunta do Carlos:
«Os que em vida tiveram uma pituitária alérgica ao cheiro das velas, tímpanos avessos às orações e olhos apáticos às sotainas, não têm direito a local digno, liberto de iconografia religiosa, onde os familiares e amigos estejam ao abrigo do latim e do cantochão?»