8 de Dezembro – III
«Portanto[…]os Bispos, que são os sucessores dos Apóstolos, pertencem à ordem hierárquica[…]estabelecida pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus (At 20, 28)[…]Ensina ademais[…]na ordenação dos Bispos e sacerdotes[…]não se requer o consentimento do povo nem de qualquer poder ou magistrado secular.
Se alguém disser que na Igreja Católica não há hierarquia eclesiástica estabelecida por ordem de Deus, que se compõe de Bispos, presbíteros e ministros, seja excomungado». Concílio Ecuménico de Trento. Sessão XXIII
A oposição ao conceito de uma igreja centralizada sob a autoridade papal recebeu o nome de «galicanismo», por se ter manifestado com mais vigor em França. De facto, o rei, que até aí nomeava os bispos, opôs-se veeementemente à aplicação em território francês da reforma estabelecida pelo Concílio de Trento e apenas em 1615 os decretos de Trento foram promulgados neste país.
Durante os séculos XVII e XVIII, a intromissão da Igreja em assuntos seculares, a norma até a Reforma em que a Igreja ditava as leis – e recebia boa parte das receitas – em toda a Europa, conheceu uma crescente oposição por parte dos governos europeus que procuravam afirmar a plena soberania sobre os seus territórios.
Dentro da própria Igreja muitos dignitários afirmavam-se galicanos, isto é, acreditavam que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro lado, os defensores da autoridade suprema dos papas, os «ultramontanistas» ou «ultramontanos», que afirmavam estar toda a autoridade da Igreja «além montanhas» (os Alpes), não aceitavam a reinvidicação do episcopado em participar na direcção da Igreja declarando o papa monarca absoluto da Igreja.
O galicanismo foi retomado mais tarde pela Revolução Francesa e, depois, pela monarquia francesa restaurada, tornando-se no século XIX o modelo seguido por grande parte dos Estados onde a maioria da população era católica.
Na realidade, até hoje o termo «jacobino» reflecte o golpe devastador contra o poder do papado desferido em 1789 pela Revolução Francesa. Não apenas pelo que se passou em França – onde desde os primórdios houve, no país anteriormente considerado por muitos papas como o «filho predilecto da Igreja», um profundo conflito entre a Igreja e o ideal republicano da revolução – mas essencialmente porque propagou os ideais iluministas a todo o mundo ocidental.
Só para dar um exemplo do poder da Igreja em França antes da Revolução Francesa, em 1766 um jovem de 19 anos, Jean François de Le Fabvre, o Cavaleiro de la Barre, passa «a vinte passos duma procissão, sem tirar o chapéu». É preso e torturado. É condenado por sacrilégio e decapitado depois de lhe terem cortado a língua. Finalmente o seu corpo é queimado junto com um exemplar do Dicionário Filosófico de Voltaire, numa orgia de fé participada por uma multidão entusiasmada.
Os ideais iluministas assentes na «Liberdade, Igualdade e Fraternidade» (Liberté, Egalité, Fraternité) entravam necessariamente em conflito total com este poder da Igreja, para além de recusarem os muitos privilégios do clero ou Primeiro Estado. Uma das primeiras medidas revolucionárias, violentamente contestada por Roma, numa França em profunda crise económica, foi a supressão do pagamento do dizimo à Igreja e a confiscação de alguns dos seus bens.
Mas o golpe final no poder de Roma foi desferido pela aprovação, em Agosto de 1790, da Constituição Civil do Clero, que separava a Igreja e Estado e, considerando que a Igreja era sustentada pelo Estado, determinava que os clérigos lhe deviam obediência. Determinava assim que os clérigos deveriam jurar a nova Constituição – os que o fizeram ficaram conhecidos como juramentados; os que se recusaram passaram a ser chamados de refractários – para além de retirar a Roma o poder de ordenação de bispos e padres de paróquia que seriam eleitos pelos membros das congregações respectivas.
Claro que o Vaticano não aceitou perder o poder quasi absoluto que anteriormente detinha em França e acirrou os refractários ultramontanos a combater os «hereges». A luta entre a Igreja Católica e a Revolução Francesa e os seus partidários culminou no levantamento dos camponeses católicos na Vendeia, no oeste da França, entre 1791 e 1793 e numa selvagem luta de extermínio entre os habitantes da Vendeia e os jacobinos, luta que depois se estendeu a mais pontos de França na guerrilha camponesa dos Chouans – a Chouannerie, da qual participaram o clero refractário e a aristocracia.