A minha ida a Fátima (Crónica de 2001)
21 de dezembro de 2001. Almoço de Natal Novartis — BU – Oncologia.
Não sei quem teve a ideia do local, se alguém, na esperança de um milagre, pretendia aliviar a alma do fardo dos pecados, ou tão só cumprir o ritual canónico da comunhão fraterna em torno de uma mesa de fartos recursos gastronómicos.
O restaurante Tia Alice, ao lado do cemitério, do outro lado da rua da igreja paroquial onde foram batizados os pastorinhos, instalou-se numa cave onde só recebe fregueses depois do meio-dia. A cave é o local recôndito adequado ao ágape na capital da fé. A gula ignora aí os preceitos religiosos e ninguém tenta encontrar o Céu através do jejum.
Depois do repasto fui ver a capelinha das Aparições onde a Júlia e a Vanda debitavam padres-nossos e ave-marias, iluminando a fé com velas de 150 escudos emprestados pelo Cordeiro Pereira.
À volta da capela mulheres cansadas da vida viajavam a fé progredindo de joelhos a adejar o rosário; outras paravam genufletidas, em êxtase, acompanhadas por crianças conformadas, a bocejar orações em sofrida imobilidade. Respirava-se o ar soturno por onde viajam súplicas e se esperam respostas que não chegam.
À nossa espera, junto aos carros, um polícia segurava um livro de multas como quem usaria um breviário se fosse padre ou um rosário sendo crente. Preparava-se para nos aplicar o corretivo merecido a quem estacionara em lugar proibido não sendo embora, àquela hora, muitas as devoções nem os estacionamentos pios.
Valeu-me dizer-lhe que foi só o tempo de rezar um padre-nosso e duas ave-marias e não ter visto o sinal terreno de estacionamento proibido, colocado a longa distância, ou a sua própria compreensão, que hoje os polícias já compreendem, sobretudo em Fátima, onde a estupefação do divino lhes há de dar entendimento humano. Salvou-nos da punição o arrependimento do cívico.
Por todo o lado a construção civil progrediu ao ritmo da fé sem se conformar com o ritmo lento da divulgação dos segredos.
Fátima, cidade, centro de turismo místico, quer virar sede de concelho. Tem um ponto fraco nessa aspiração, se a Senhora quisesse aparecer numa sede de concelho tê-lo-ia feito, escolhido mesmo uma cidade cosmopolita e interlocutores cuja devoção os não tivesse impedido da frequência escolar. Mas tem armas poderosas. Além das simples manifestações de que outros soem socorrer-se, pode sempre organizar uma procissão sobre S. Bento ou uma assoada no Terreiro do Paço, sacando de velas e rosários e investindo contra o poder com guiões, crucifixos e andores.
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
- Blogger:
- Diário Ateísta http://www.ateismo.net/
- Ponte Europa http://ponteeuropa.blogspot.com/
- Sorumbático http://sorumbatico.blogspot.com/
- Avenida da Liberdade http://avenidadaliberdade.org/home#
- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
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