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Interessante testemunho de um crente

Texto Fraternizar 3, Edição 124, Janeiro 2017
A última lição de Mário Soares
E O CARDEAL NÃO PÔDE PRESIDIR AO FUNERAL!

Por

Padre Mário de Oliveira

«Foi como quem lhes arrancou os dentes sem anestesia, aos bispos portugueses e aos cardeais do Estado do Vaticano. Mas a verdade é que nem o núncio apostólico em Lisboa, nem o cardeal patriarca D. Manuel III, nem nenhum dos outros bispos do país puderam presidir ao funeral do cadáver de Mário Soares. Neste particular, o antigo Presidente da República de Portugal fez jus ao que sempre disse ser – agnóstico, republicano e laico. A sua mulher, Maria Barroso, ainda aceitou o funeral católico, mas nem ela conseguiu convencer o marido a seguir-lhe o exemplo. A cedência dela à pressão que o império católico habilmente lhe fez não o atingiu.

Felizmente. Deste modo, o país pôde ver um funeral com todas as gongóricas e monárquicas honras de Estado, mas totalmente laico, sem nenhum dos símbolos do cristianismo nem nenhum dos agentes de turno das suas igrejas católica e protestantes. Esta é uma lição que Mário Soares dá ao país, à Europa, a todo o Ocidente de raízes e de frutos judeo-pagano-cristãos.

No actual contexto nacional, com uma Concordata em vigor desde 1940, assinada entre os Estados do Vaticano e de Portugal, o facto ganha contornos de uma das maiores lições de Mário Soares. Fica claro, duma vez por todas – e é curioso que seja um republicano laico, na peugada de Jesus Nazaré, a gritá-lo ao Ocidente – que o único denominador comum a todos os povos das nações é o HUMANO. Não o religioso, menos ainda o cristão. Só o Humano é verdadeiramente católico. O religioso e o cristão são factores de divisão entre os povos, como tais, não têm a marca de Deus Abba-Mãe, o da Fé política de Jesus Nazaré. Só o Humano é transversal a todos os povos. Fora do Humano, só há seitas, partes de um todo, causa de divisão, por isso, pecado organizado e institucionalizado.

“Que todos sejam um”, quer intensamente Jesus Segundo João. Não se refere, obviamente, à unidade das igrejas que, então, nem sequer existiam, muito menos à unidade das religiões, todas alienação dos povos que as integram e cultuam. Refere-se exclusivamente à Humanidade, aos povos das nações. Que ele quer ver unidos e religados uns aos outros, uns com os outros, e não religados a um mítico deus projectado e criado pelos seus ancestrais medos e sobretudo pelas ambições dos respectivos sacerdotes e pastores mercenários. Que todos sejam um só povo de múltiplos povos, de múltiplos falares, de múltiplas cores e de múltiplas tendências, um verdadeiro arco-íris vivo e orgânico à escala planetária. A beleza das belezas.

O facto incomodou tremendamente a hierarquia católica que não teve outro remédio senão comer e calar. Estrebuchou e pressionou por todos os lados, em contida surdina, até pela espectacularidade do acto, mas teve de comer e calar. E não só. Teve inclusive de dar um ar de naturalidade, de respeito, de tolerância. Só que o seu contido silêncio e a sua completa ausência gritaram a bom gritar. Ela sabe que se se manifestasse publicamente, ou se pronunciasse por escrito nos seus órgãos oficiais de comunicação social contra esta opção de um antigo chefe de Estado, que tantos “fretes” lhe fez, ao longo dos anos de militância partidária e, até como chefe de Estado, o tiro vinha-lhe de ricochete. Por isso optou pelo contido silêncio, como sempre faz com quantos dos seus a incomodam, só porque tudo o que fazem, dizem, escrevem coloca-a inevitavelmente em causa e às suas mentiras. Sempre que a verdade praticada é proclamada sobre os telhados, ela que faz do mito, da ideologia, da encenação e do ritual a sua verdade, remete-se sempre ao silêncio.

Neste caso concreto, em que Mário Soares é a figura pública que é e tem a visibilidade nacional, europeia e ocidental que tem, a hierarquia católica não só se conteve, como até utilizou os seus meios de comunicação institucionais, a começar pelo jornal/rádio do Vaticano e a acabar na Agência Ecclesia, para destacar alguns factos em que o antigo Presidente da República esteve presente e soube ser tolerante com as diversas religiões e igrejas cristãs. Esquece que essas foram posturas institucionais, em que Mário Soares agiu na qualidade e na condição de chefe de Estado de Portugal que mantém uma Concordata com o Estado do Vaticano, a qual nem que ele quisesse, não podia sozinho pôr em causa. Agora, definitivamente liberto desse estatuto, leva a sua por diante e afirma a laicidade, não o religioso, como o que há de mais intrínseco a todos os seres humanos.

Saibam que o terceiro milénio é plena e integralmente Humano, ou não será. Saibam também que o religioso não faz parte da matriz original dos seres humanos. Tal como o medo que está na génese do religioso. Tal como o poder. Nascemos simplesmente humanos, não religiosos. Morremos simplesmente humanos, não religiosos. O religioso vem depois, como o Tentador, à medida que crescemos em anos na história. E que, lá onde entra e se instala, sempre divide para reinar. Sei que a esmagadora maioria dos intelectuais não-orgânicos com as vítimas dos poderes, não subscreve estas minhas palavras e ri-se delas e de mim. Problema deles. Pecado deles. As posições de privilégio que acumulam sem pestanejar levam-nos a semelhante desonestidade-aberração intelectual. Mudem de ser e de Deus (= convertam-se), façam-se humildes intelectuais orgânicos com as vítimas do religioso e dos demais poderes e verão abrir-se-lhes os olhos das suas mentes-consciências cordiais. Sem esta radical conversão, são cegos que guiam outros cegos.

Se se converterem, conseguirão então escutar, acolher e praticar a Fé e o ser-viver histórico de Jesus, o filho de Maria, o ser humano por antonomásia que os cristianismos reiteradamente matam e, em seu lugar, apresentam aos povos o mítico “Cristo da fé”. Da sua fé religiosa, a única que eles acolhem e praticam, porque projectada, criada e gerida por eles. De modo, fazem com ela o que mais lhes convém. É, de resto, em seu nome que cometem toda a espécie de barbaridades que a História regista, apesar de escrita por eles, os vencedores. A pior das quais é precisamente a barbaridade deste actual tipo de mundo do poder financeiro global, estruturalmente mentiroso, ladrão e assassino dos povos e da natureza. Bem podem multiplicar-se em liturgias e em construções de basílicas e de santuários. É tudo sal que perdeu a força de salgar. É tudo esterco incapaz de resistir a um tsunami. Que digo? Incapaz de resistir aos seus próprios desmandos, dado que é ininterruptamente movido pelo espírito ou sopro da divisão e do ódio, da competição e da conquista, o inimigo n.º 1 de Jesus Nazaré.

Neste terceiro milénio, ousemos praticar a laicidade, em sintonia e no prosseguimento da Fé política de Jesus, o filho de Maria. Seja assim o nosso ser-viver-morrer. O cadáver já não somos nós. É uma coisa que deixamos, porque, com a morte, a maior invenção da vida, tornamo-nos, por pura graça, corpos definitivamente viventes, por isso, definitivamente invisíveis aos olhos dos demais. Familiares e amigos, não funcionários clericais, cuidem do cadáver. Façam-no conscientes de que, nessas horas, já nos têm inteiros e íntegros com eles, inclusive a presidir a tudo e a confortá-los-estimulá-los para que se levantem mais humanos e sororais uns com os outros e com o planeta. Até se tornarem, também eles, corpos definitivamente viventes connosco. Num Hoje sem ocaso!

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

- Sócio da Associação 25 de Abril

- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;

- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida

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- Colaborador do Jornal do Fundão;

- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»

- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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