Ciência e naturalismo, parte 2
Ao meu outro post sobre esta matéria um leitor comentou: «o objecto de estudo para poder ser alvo de uma abordagem científica […] tem que ser material, concreto, ou seja natural». Este comentário merece consideração porque me parece exprimir uma opinião muito comum, e porque me parece estar parcialmente certo.
Mas vou começar pelo que penso estar errado. Por um lado, o objecto da ciência não tem que ser material. A velocidade não é material. A energia também não. O principio de incerteza de Heisenberg, a selecção natural, o conceito biológico de espécie, a cinética duma reacção química, entre muitos outros exemplos, mostram que a ciência aborda muito mais que apenas a matéria. Alguns obstarão que estes não são os objectos da ciência, que são apenas as hipóteses e teorias que a compõem. Mas não podemos distinguir as hipóteses dos objectos da ciência, pois quando estudamos algo estudamos sempre observações e hipóteses. Quando estudamos a gravidade, podemos ter uma hipótese materialista que diz que a gravidade é mediada pela troca de partículas de matéria. Mas podemos igualmente ter uma hipótese não materialista, que diz que a gravidade é uma distorção na geometria do espaço-tempo. O objecto de estudo não pode ser uma gravidade desligada daquilo que propomos como hipóteses, e todos os conceitos científicos, materialistas ou não, são também objecto da ciência.
Por outro lado, o objecto da ciência não tem que ser natural. Natural e sobrenatural são categorias arbitrárias e irrelevantes para o estudo de qualquer fenómeno. Um exemplo concreto: até ao século XIX, pedras caírem do céu era considerado um fenómeno sobrenatural, relatado em mitos e lendas religiosas, mas rejeitado pela comunidade cientifica como uma violação das leis da natureza. Mas em poucas décadas revelou-se ser um fenómeno perfeitamente natural. O que mudou? Apenas a ideia do que era ou não permitido pelas leis da natureza.
Hoje em dia já nem falamos de leis científicas. No último século a comunidade científica ganhou alguma da modéstia que lhe faltava na época Vitoriana, e sabemos que tudo o que propomos como limites ao natural não passa de teorias sujeitas a revogação, e rotular um fenómeno de ?sobrenatural? não o coloca fora do alcance da ciência.
Finalmente, temos o requisito que o objecto de estudo científico seja concreto. Concordo. A hipótese que «Ah, e tal… deve ser assim tipo uma cena qualquer» não pode ser objecto de estudo científico. Deuses, demónios, milagres e afins muitas vezes não podem ser estudados cientificamente porque os termos são indefinidos. A hipótese que um deus pode acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz é uma hipótese suficientemente concreta para ser científica. A ciência moderna diz-nos para a rejeitar, pois tanto quanto sabemos é impossível acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz. Mas a hipótese que um deus pode violar as leis da física não é uma hipótese científica porque é um disparate. Esta hipótese não escapa à ciência por ser imaterial ou sobrenatural, mas simplesmente porque é uma contradição: «leis da física» designa o que não pode ser violado, nem pelo Zé da esquina nem pelos deuses.
Qualquer hipótese que propõe algo observável pode ser abordada cientificamente, seja sobre entidades naturais, sobrenaturais, materiais ou imateriais. Para escapar à ciência tem que ser impossível determinar a sua verdade, ou por ser uma hipótese acerca do que não é observável (o unicórnio invisível cor de rosa) ou por não fazer sentido (a santíssima trindade).
——————————–[Ludwig Krippahl]