Carta a uma nação cristã
Novo livro do filósofo Sam Harris, «Carta a uma Nação Cristã.»
Não obstante as pretensões dos nossos crentes leitores de que a filosofia implica uma mundivisão religioso-sobrenatural, a maioria dos filósofos actuais, aliás todas «as ciências humanas, como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia» como se queixou Ratzinger na sua palestra em Regensburg, partilham com o ateísmo uma visão do Universo científico-natural na qual assentam as respectivas elucubrações.
Na realidade, considerando que a teologia não é filosofia, é apenas pseudo filosofia, com excepção dos que se dedicam à filosofia da religião, são muito poucos os filósofos contemporâneos que contemplem «verdades reveladas» ou o sobrenatural a não ser para as desmistificar. Na minha opinião, as religiões «reveladas» são tão incompatíveis com a filosofia como o são com a ciência, já que assentam em dogmas inquestionáveis e o dogmatismo não é consentâneo com uma postura filosófica.
De facto, desde a Renascença que a visão científico-natural do mundo e concomitante humanismo permearam o pensamento ocidental. Desde a Renascença que a Cristandade, a supremacia da religião e da visão religiosa-sobrenatural do Universo, está em declínio no Ocidente. O Humanismo, o traço dominante da Renascença, venceu o teocentrismo medieval, com a sua redescoberta do homem, confiante no seu intelecto, poder e valor, em contraste com a Idade Média, que apenas considerara o homem como um ser pecaminoso e sem valor intrínseco. Libertação do homem renascentista bem representada no discurso «Da dignidade do homem» (Hominis Dignitate) de Picco della Mirandola.
Antes da visão cientifico-natural prevalecer, as pessoas acreditavam e utilizavam astrologia, alquimia, cabala mística e demais parafernálias religioso-sobrenaturais. A mundivisão mitológica e mágica do mundo proporcionava um weltanschaaung e propósito cognitivo pré-científico, em que se acreditava, por exemplo, que os corpos celestes eram manifestações de forças divinas sortidas que podiam magicamente influenciar objectos terrestres. De acordo com esta crença astrológica – considerada científica – os corpos superiores poderiam imprimir nos corpos inferiores a podridão e as chagas. E o ar era o elo condutor. Caso estivesse corrompido pelos astros, «feriria o coração» e agravaria a natureza do corpo sem que a pessoa sentisse nada. Todos os aspectos da vida humana eram assim determinados «sobrenaturalmente» e o sobrenatural dominava a forma como vivia e morria o homem medieval.
No centro do peito da figura que eu havia contemplado no seio dos espaços aéreos do Sul, eis que surgiu um roda de maravilhosa aparência. Continha os signos que a reaproximavam dessa visão em forma de ovo, que eu tive há dezoito anos e que descrevi na terceira visão do meu livro Scivias. «O Livro das Obras Divinas», Hildegard von Bingen, a tal para a qual, segundo o Vaticano, «a relação entre fé e ciência era quase co-natural».
As imagens fantásticas da visionária beneditina expressam as teorias sobre o microcosmo e a cosmologia vigentes. A «vontade» de Deus e a vinda de adversidades podem ser lidas nos signos do céu, os pecados da terra ressoavam nos céus. Cometas e eclipses eram «maus presságios», uma forma de Deus anunciar catástrofes sortidas com que decidira mimosear a Terra.
A cosmologia medieval distinguia duas regiões do Universo, a esfera sublunar, que continha todas as substâncias sujeitas à corrupção devido à incompatibilidade natural existente entre os quatro arqué – os elementos primordiais de Empedokles ainda aceites – (o fogo quente, o ar seco, a terra fria e a água húmida) que a constituiam. A segunda região, a esfera supralunar (ou celeste), era povoada pelos astros, pelos santos que estão na «Glória Eterna», os anjos e Deus. Acreditava-se que o mundo supralunar emitia fluidos, influxos invisíveis ou segredos naturais, que influenciavam o mundo sublunar.
Ou seja, as pessoas não percebiam a natureza das interacções químicas e físicas, os processos físicos pareciam ser o produto de enigmáticas «propriedades ocultas» e os elementos e reacções químicas pareciam ser o produto de magia. Hoje, quando a ciência se impôs com as suas explicações naturais de fenómenos naturais, não há alguma razão ou prova para acreditarmos que, a existir o sobrenatural indispensável às religiões, este tenha qualquer interacção ou efeito no mundo natural.
A falência óbvia da mundivisão religiosa-sobrenatural para explicar o Universo, a falta de qualquer evidência da existência do sobrenatural associada à certeza de que a existir não exerce qualquer influência no mundo natural, não obsta a que os fanáticos de todas as religiões se achem no direito de impor a todos as suas fantasias religiosas. E explica porque são cruzados contra a ciência todos os fanáticos em nome de Deus. Um dos aspectos abordados por Harris no seu novo livro.