Encefalização e evolução do homem
Do ponto de vista neurofilogenético, a inteligência das espécies tem sido avaliada pela extensão das áreas associativas corticais, pela massa cerebral e especialmente pela relação massa cerebral/massa corporal ou índice de encefalização (I.E.), o indicador favorito da maioria dos antropólogos.
Apesar de este índice não ser um indicador absoluto de inteligência, especialmente se aplicado a pequenos animais, cujas massas corporal e encefálica são acentuadamente baixas – por exemplo um rato*, com uma massa cerebral de 0.4 g e uma massa corporal de 0.012 kg tem um índice muito superior ao do Homo sapiens – é interessante analisar a evolução deste índice na árvore filogenética humana. Na tabela que se segue são indicados valores médios usando uma das muitas definições de IE.
Espécie |
Capacidade craniana /cm3 |
IE |
A. afarensis |
414 |
3.1 |
A. africanus |
441 |
3.4 |
P. boisei |
530 |
3.5 |
P. robustus |
530 |
3.5 |
H. habilis |
640 |
4.0 |
H. erectus (Java) |
937 |
5.5 |
H. neanderthalensis |
1450 |
7.8 |
H. sapiens |
1350 |
7.6 |
P. troglodytes |
395 |
2.6 |
Ou seja, uma análise desta tabela confirma que a evolução do homem é igualmente a evolução do cérebro, isto é, da encefalização. Este aumento da dimensão do volume craniano associado ao bipedalismo teve algumas consequências não despiciendas, nomeadamente no desenvolvimento do nosso comportamento moral e social.
Como escrevi há uns tempos, o homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Isto é, nos humanos o cérebro continua a crescer com taxas próximas às fetais durante cerca de 1 ano; nos outros mamíferos (incluindo primatas) o crescimento rápido do cérebro ocorre apenas antes do parto.
De facto, o desenvolvimento de um cérebro (e crânio) maior não acarretou apenas vantagens. Por um lado, um cérebro maior necessita de mais energia – o nosso cérebro consome cerca de 1/5 da energia que produzimos – ou seja, implica a necessidade de uma dieta mais energética, e por outro para um bipedalismo eficiente a pélvis é necessariamente mais estreita.
O parto é assim um acontecimento muito arriscado apenas nos humanos pois para além de um crânio do nascituro comparativamente maior e uma pélvis materna menor, durante o nascimento a cabeça do feto tem de efectuar uma rotação complexa. Ou seja, mesmo com o nascimento numa fase que podemos considerar fetal, a cabeça do nascituro é muitas vezes demasiado grande em relação à pélvis da mãe.
Na realidade todos os nascimentos humanos, como qualquer estudante de biologia sabe, poder-se-iam considerar abortos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente.
Por outro lado, os perigos associados ao parto humano levaram ao desenvolvimento de comportamentos sociais únicos nos humanos, nomeadamente no que respeita à necessidade de cooperação entre as fêmeas de um dado grupo e à relação mãe-cria. Especialmente interessante de analisar no contexto da apologética cristã, no que concerne não só ao desenvolvimento moral como igualmente ao advento da dor no parto, atribuído ao castigo «divino» à mítica Eva depois da dentadinha no fruto da árvore do conhecimento!
*O cérebro humano apresenta uma superfície convoluta muito rara – com uma área neocortical de ~2275 cm2 – que é a zona utilizada para a resolução de problemas. A superfície do cérebro do rato é lisa. Ou seja, não é apenas o IE que interessa mas igualmente a «composição» do cérebro.