Histórias do Paleolítico
Várias perspectivas das duas conchas encontradas em Skhul. A linha desenhada para comparação tem 1 cm.
A descoberta de objectos pré-históricos cuja morfologia indica terem sido alvo de acção humana deliberada (por vezes difíceis de distinguir de objectos naturais) levanta algumas questões aos arqueólogos sobre o fim destes objectos, nomeadamente se a sua função última tinha cariz prático ou simbólico.
Os arqueólogos e (antropólogos) identificam arfefactos simbólicos com uma competência cognitiva que normalmente é assumida como tendo aparecido relativamente tarde na evolução humana, mais concretamente tem sido considerado que a cultura humana moderna, capaz de interpretar a realidade simbolicamente e incorporar e transmitir esse simbolismo no seu comportamento, surgiu há cerca de 40 000 anos quando os homens anatomicamente modernos chegaram à Europa.
Nas últimas décadas uma série de descobertas tem indicado que esta capacidade cognitiva evoluiu com o próprio homem quiçá tendo estado presente no Neanderthal e nas populações Sapiens mais antigas. As sociedades simbólicas interpretam detalhes do mundo natural, incluindo o corpo humano, ou seja, procuram características do mundo que os rodeia em que baseiam todo um sistema de sinais- e por extensão um sistema de crenças – que transmitem às gerações subsquentes.
Isto é, as sociedades que criam uma «história acumulada», as «sociedades quentes» de Claude Lévi-Strauss – que se opõem às «sociedades frias» que vivem num eterno presente – podem ser anteriores ao que muitos acreditam. Até hoje tão anteriores como 75 000 anos como a descoberta de conchas Nassarius kraussianus perfuradas na caverna de Blombos na África do Sul indica.
No número de hoje da Science figura o artigo «Middle Paleolithic Shell Beads in Israel and Algeria» (artigo completo reservado a assinantes) que sugere a existência de culturas simbólicas há pelo menos 100 000 anos.
De facto, o artigo descreve descobertas arqueológicas em Skhul, Israel, e Oued Djebbana, Argélia, proeminentes entre elas mais conchas Nassarius perfuradas, análogas às encontradas em Blombos. A datação dos artefactos encontrados em Skhul indica que as duas conchas aí encontradas têm mais de 100 000 anos e que as de Oued Djebbana podem ter 90 000 anos.
«O nosso artigo suporta o cenário que humanos modernos em África desenvolveram comportamentos que são considerados modernos muito cedo, de forma que estas pessoas são não apenas biologicamente modernas mas igualmente modernas cultural e cognitivamente, pelo menos num certo grau» afirmou à World of Science um dos cientistas responsáveis pelo trabalho, Francesco d’Errico do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, CNRS, em Talence, França.
Porque, como afirma por sua vez Marian Vanhaeren, a outra cientista responsável, também do CNRS «Comportamento mediado simbolicamente é um dos indicadores da modernidade incontestados e aceites universalmente. Uma característica chave de todos os símbolos é que o seu significado é atribuído por convenções arbitrárias socialmente construídas que permitem o armazenamento e transmissão de conhecimento».
Convenções arbitrárias e socialmente construídas como são as religiões, que quasi podem ser encaradas como sub-culturas «frias» na medida em que não foram penetradas pela «história acumulada» da Humanidade e persistem num simbolismo anacrónico e num sistema de crenças completamente dissociado do conhecimento actual. Nomeadamente nas religiões do livro a crença no «pecado original», com a concumitante concepção do ser humano como naturalmente perverso, a explicação para a existência do Mal, é um disparate «frio» que continuarei a analisar durante o fim de semana em conjunto com as contradições debitadas pelo Vaticano em relação à evolução.