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A fé pessoal

Uma das críticas que faço à fé é a capacidade que tem de pôr as pessoas a acreditar em coisas sem que tenham para isso qualquer tipo de justificação. Não acho plausível acreditar em algo sem que me seja mostrado que de facto faz sentido fazê-lo. É por isso que não acredito na existência do éter. Pegando na existência dos deuses como hipótese (mesmo que isso não seja, a meu ver, tão válido como propor a existência do éter enquanto explicação natural do mundo) rapidamente se chega à conclusão de que não vale a pena acreditar neles. Epistemologicamente, não há razões para acreditar na existência do éter. Isso rapidamente nos leva a uma forma de agnosticismo – não há provas empíricas da existência do éter e não é um conceito relevante para explicar o Universo, como tal, sou levado a concluir que a existência ou não existência do éter é irrelevante. A partir daqui, acreditar na existência do éter é uma prática insubstanciada.

Se eu quiser continuar a acreditar que o éter existe, posso fazê-lo. Por capricho, por teimosia, por fé – seja por que razão for, estou no meu direito de o fazer. No entanto, tenho de concordar em que não posso esperar que os outros também acreditem. Sou só eu que acredito, pelas minhas razões pessoais.

O mesmo raciocínio aplicado às divindades chega a uma conclusão semelhante. Se bem que o conceito de deus é, em si, uma recusa explícita de uma explicação científica ou racional para qualquer tipo de fenómeno (é por isso que sou ateu) e, neste sentido, claramente diferente do conceito de éter, eu poderia não obstante continuar a acreditar num determinado deus, se quisesse. Isso seria, obviamente, uma prática individual. Acho que ninguém, racionalmente, tem razões senão para ser ateu. No entanto é justamente o Individualismo que resgata a possibilidade da fé, ainda que seja, a meu ver, uma prática extremamente perniciosa. Consegui provar a alguns crentes, julgo, que apesar de concordar com o facto de as provas (num contexto de testemunho enquanto vivência e não de provas empíricas) que me apresentam para a sua fé ter um imenso valor para eles, esses testemunhos são intransmissíveis.

Pessoalmente, não posso conversar de forma igual com pessoas diferentes. Que posso eu dizer a uma pessoa que acredita piamente nos milagres de Fátima senão que é a minha opinião de que se trata de um disparate acreditar em semelhante coisa? A uma pessoa que, seja por que razões, leva à letra os textos que considera sagrados não posso dizer-lhe mais de que não faz sentido levar à letra esses textos. Posso mostrar que este milagre é falso ou que esta profecia não se revelou, ponto a ponto, num exercício que, muito provavelmente, não vai mudar a opinião do meu interlocutor. No entanto, não penso que seja infrutífero fazê-lo – muitos crentes recusam-se, simplesmente, a acreditar que o mundo tem 5000 anos ou que o Sol rodou três vezes mas só na Cova da Iria. E não acreditam não por razões de fé – mas porque é implausível. É difícil acreditar nessas coisas e não no sentido em que é difícil para um católico acreditar na divindade de Maomé. É difícil porque a nossa razão e a nossa inteligência nos dizem – não faz sentido. Esta é a beleza da coisa.

Porque, vendo bem as coisas, as pessoas acreditam todas elas em algo diferente, ainda que se baseiem num substrato comum. Porque os líderes das religiões conhecem mais do que o comum fiel os textos sagrados. Terão, então, os fiéis as mesmas razões para acreditar que os seus sacerdotes?

Curiosamente – e este é o meu ponto – sempre que se ataca a fé nos pequenos “milagres” do dia-a-dia, nas benzeduras, nos exorcismos, quem sai em defesa do crente comum não é o crente comum. São crentes, sim, mas mais educados nas questões da fé. Pessoas com formação, inteligentes, com catequeses mais aprofundadas e menos literais. Porquê? Essas pessoas, mais que outras, deveriam perceber o porquê dessas críticas. Esses crentes têm uma noção muito mais refinada dos melindres da sua religião – não representam, de todo, o bruto dos crentes. E no entanto, continuam muitas delas (com raras e admiráveis excepções) a defender crenças medievais e os anacronismos mais repelentes. A distorcer a História na tentativa de ocultar manifestações de vivências pré-modernas para preservar dogmas. A deturpar conceitos como o de laicidade, liberdade, ciência, ateísmo, para salvaguardar o que de mais primitivo há na religião. E não as pessoas com catequeses mais provincianas mas sim as pessoas mais alfabetizadas. Os crentes que, fazendo uso da sua liberdade de pensamento e da sua individualidade procuram testemunhos que acreditam enriquecer a sua fé e a sua humanidade não percebem que defendem noutras alturas dogmas completamente contrários a essa expressão de individualismo? Como é isso ainda possível no século XXI?

Na minha opinião, isso apenas é possível graças a memes que foram transmitidos de forma diferente – no fundo, lavagens cerebrais mais eficientes. Isso talvez explique porque são, afinal de contas, os crentes comuns que abandonam a fé mais facilmente que os outros.

Quanto mais conhecemos mais contraditório se torna permanecer na fé. É este o medo que as religiões têm da Ciência e do livre-pensamento. Só uma educação fortemente orientada na religião e uma dependência memética extremamente enraizada impedem que uma pessoa com acesso a educação concilie a fé profunda com o mínimo bom senso.

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