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«O Código Da Vinci» visto por um ateu

Sim, fui ver o filme. Na minha opinião, não é um manifesto anti-cristão, mas apenas um filme de entretenimento como muitos outros que todos os anos saem de Hollywood.

Quem gosta de filmes policiais, com perseguições de carro, pistolas apontadas, enigmas em série e actores competentes, não ficará decepcionado com «O Código Da Vinci». Quem é ateu e espera um manifesto anti-cristão (eu não esperava) sairá defraudado: perto do final, Robert Langdon diz algo como «não interessa se Cristo foi humano ou divino, o importante é que inspirou as pessoas», e recomenda os efeitos tranquilizantes da oração independentemente de se crer ou não. Pressiona ainda Sophie Neveu, que no início era ateia, a seguir esta espiritualidade, no fundo semelhante à de muitos grupos cristãos ditos «liberais», como os quakers ou os unitários. Tudo muito «cristianismo light», portanto.

Então, porquê a polémica? Pelo pouco que sei, por três razões. Primeira, o filme atribui uma descendência a dois personagens do Novo Testamento, «Jesus Cristo» e «Maria Madalena». Talvez por nunca ter sido cristão, não compreendo a aflição que a hipótese de que o semi-deus dos cristãos tivesse tido relações sexuais provoca. O «Deus» cristão em forma humana teria necessariamente que ser um castrado ou um impotente? Ou será a contradição com a misoginia doentia de Paulo de Tarso que incomoda?

Segunda razão para a polémica, o filme refere alguns factos históricos genuínos mas inconvenientes para a religião cristã, como a existência de evangelhos «não canónicos» que contradizem os evangelhos escolhidos no Concílio de Niceia, no ano 325 da nossa era, existência e escolha estas que são desconhecidas pela esmagadora maioria dos católicos. (Creio que o livro, que não li, se alarga mais sobre os evangelhos «não canónicos».)

Terceira razão de polémica (e talvez a mais importante), o filme mostra as auto-flagelações corporais praticadas no Opus Dei, embora com algum exagero (como as cicatrizes e o sangue a escorrer). No entanto, em boa verdade não se pode condicionar comunidades inteiras de pessoas numa cultura de auto-agressão e esperar que nem uma única pessoa exagere (particularmente quando circulam rumores, dentro da própria organização, de que Escrivá se flagelava até deixar as paredes da casa de banho esguichadas com sangue). Mas o nervosismo de certos sectores era desnecessário. Afinal, tanta publicidade até atraiu masoquistas à Obra…

Quanto aos «erros históricos», será verdade que no início do livro Dan Brown atribui uma data errónea (1099) à fundação do «Priorado de Sião», uma criação recente (século 20) de um grupo de brincalhões, e que inclui essa data num conjunto de afirmações apresentadas como «factos». Mas, das duas uma: ou é um recurso estílistico deliberado (muitas obras de ficção arrancam prometendo contar uma estória verídica) ou é efectivamente um erro do autor, que poderia ser corrigido em edições posteriores. Todos os anos são publicados romances históricos com «erros» (recordar «Equador», de Miguel Sousa Tavares), sem provocarem a fúria a que temos assistido. A razão real para a fúria católica deverá ser a ameaça que a narrativa «cristã alternativa» d´«O Código Da Vinci» representa para uma instituição habituada a ter o monopólio da fantasia e dos erros históricos e científicos (nascimentos a partir de virgens, a «ressurreição», a pretensamente incontroversa historicidade de «Jesus Cristo», a suposta fundação de uma nova igreja por «Jesus Cristo», etc.). Convém acrescentar que o filme «O Código Da Vinci» já foi visto por mais de meio milhão de portugueses, que assim têm acesso a factos, dúvidas e especulações que a ICAR lhes escondeu durante séculos, e que portanto lhes podem semear dúvidas…
Acrescente-se que existem centenas de filmes com «erros históricos», fantasias contraditas pela ciência e imprecisões várias. Encontrar «erros» em filmes é um pouco como encontrar pessoas na rua. Só choca quem não percebe que os filmes são ficção e que as pessoas circulam nas ruas. Dois exemplos: existe um filme com Marlon Brando em que os portugueses têm uma colónia nas Caraíbas («erro histórico»…) e oprimem os trabalhadores locais; existe um filme estado-unidense sobre Fátima em que se afirma, logo no início, que as igrejas em Portugal foram «mandadas fechar» em 1910 e que só em 1916 «reabriram algumas na província» («erro histórico» ideologicamente intencionado), e em que aparece uma «Virgem» suspensa no ar a falar à multidão (o que, sendo cientificamente disparatado, é uma fantasia habitual em filmes de ficção científica).
A terminar, é espantoso que ninguém tenha reparado que os países que proibiram a exibição de «O Código Da Vinci» são, salvo uma ou outra excepção, aqueles em que houve protestos violentos contra os cartunes dinamarqueses. A ICAR e o islão, com toda a coerência, são contra toda e qualquer crítica aos seus dogmas, e sabem cooperar quando necessário.

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