Obscurantismo e ICAR nos tempos modernos – Galileu
O papado de João Paulo II foi essencialmente devotado em recuperar para a Igreja o ascendente há muito perdido, em particular para a ciência. Uma análise das prolixas encíclicas e afins debitadas pelo «Vigário de Cristo» indica que muitos dos contos do Vigário assentam nessa «missão», para além, claro, de combaterem o ateísmo que supostamente tem «consequências particularmente devastadoras» na sociedade contemporânea (para o poder e para os cofres da ICAR não duvido), especialmente o ateísmo «prático», isto é a laicidade, que «com a sua indiferença pelas questões últimas da fé», «expressa um modelo de homem totalmente desligado da sua referência com o Transcendente».
Assim, é didáctico analisar a prosa debitada por João Paulo II na sua campanha para destruir a honestidade intelectual e os progressos civilizacionais permitidos à Humanidade pela total exclusão de Deus da ciência moderna (e da res pública). Campanha disfarçada como tentativa de reconciliação da fé e da ciência, na realidade uma tentativa não só de usurpar alguma «glória» da ciência (que descreve como «trabalho de investigação sobre a verdade inscrita na criação pelo dedo de Deus») como também de subjugar a ciência aos ditames do Vaticano. De facto, a total incompatibilidade entre ciência e religião teve, segundo João Paulo II, consequências devastadoras: a ciência sem a fé, resultou no positivismo e no cientificismo, no humanismo ateu e em todas as «pestes» modernas que João Paulo II jamais deixou de denunciar.
Ou seja, João Paulo II não demorou a identificar as causas do declínio da Igreja, proeminente entre elas a ciência, e a perceber que para a manutenção do poder da Igreja era urgente recuperar a credibilidade seriamente abalada nas suas verdades «absolutas» reveladas, tentando mostrar aos mais incautos que não há incompatibilidade entre a ciência, que reduz as «revelações divinas» aos disparates que na realidade são, e a fé, assente na palavra «revelada».
Tarefa a que deitou ombros um ano após o «Espírito Santo» o ter escolhido para o trono papal, consubstanciado no discurso debitado à Pontifícia Academia de Ciências em 1979, ano em que se celebrou o centenário do nascimento do ex-libris do século XX Albert Einstein: «A fé apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo».
Discurso em que, mui magnanimamente, reconhece «a autonomia legítima da cultura e em particular a das ciências», concedida no concílio Vaticano II, e em que propõe à Igreja «sem intervir de qualquer modo» [infelizmente esta política de não interferência da Igreja na ciência nunca foi seguida] uma «reflexão de teólogos para descobrir a [inexistente] harmonia que existe entre a verdade científica e a verdade revelada».
Nesse mesmo discurso começou a árdua tarefa de «limpeza» da imagem obscurantista da Igreja com o pedido do Papa para que a Igreja reconheça os seus erros no passado em relação à ciência. Nomeadamente em relação ao herege Copérnico (1473-1543), cujo heliocentrismo, incompatível com a Bíblia, foi combatido ferozmente pelo Vaticano, para quem era o Sol que se obstinava em girar em torno da Terra. Especialmente em relação ao mui mediático Galileu, que figura em boa parte do discurso, que «muito teve que sofrer – não poderíamos escondê-lo – da parte de homens e organismos da Igreja».
Numa manobra de marketing bem estudada João Paulo II exortou ainda teólogos, cientistas e historiadores a aprofundarem o exame do caso de Galileu para que «façam desaparecer as desconfianças que este assunto opõe ainda, em muitos espíritos, a uma concórdia frutuosa entre ciência e fé, entre a Igreja e o mundo». Para que a limpeza da imagem obscurantista da Igreja fosse completa declarou «Dou todo o meu apoio a esta tarefa, que poderá honrar a verdade da fé e da ciência, e abrir a porta a futuras colaborações [isto é, abrir a porta para que a Igreja, depois de pedir perdão pelos erros do passado possa continuar a repeti-los no presente]».
Assim, em 3 de Julho de 1981 instituiu uma «Comissão pontifícia para o estudo da controvérsia ptolemaico-copernicana dos séculos XVI e XVII», para investigar e esclarecer esta controvérsia [isto é, apenas em 1981 a Igreja concede que talvez seja verdade que a Terra não é o centro do Universo nem o Sol gira em torno da Terra], reforçando no seu discurso que não há contradição entre ciência e religião, embora reconheça «os erros dos teólogos de então» em relação à ciência. Erros do passado que considera deverem ser relativizados (ai o relativismo de Ratzinger) à «complexa situação cultural do século XVII».
E assim, com grandes fanfarras e inusitada publicidade, no dia 31 de Outubro de 1992, na sala real do Palácio do Vaticano, João Paulo II «reabilitou» oficialmente Galileu, 359 anos depois da sua condenação pela Igreja. Mas relembra que Galileu foi um bom cristão, embora desavindo com a santa madre Igreja, e que as suas descobertas científicas foram apenas possíveis por «iluminação pela graça divina», isto é, que a glória de Galileu deve ser igualmente a glória da Igreja que (muito) postumamente lhe reconheceu razão .
Este foi o primeiro golpe teatral de João Paulo II destinado a recuperar o Sapientia Dei, Scientia Mundi agostiniano, aclamado por todos os créus católicos: de então em diante, supostamente a cosmologia dos cientistas não se opõe à dos teólogos católicos. Enfim, desde que os cientistas não se atrevam a enveredar por ciências «proibidas», áreas da competência exclusiva da Igreja. Afinal, JPII foi tão magnânimo em ter reconhecido, apenas com o «pequeno» atraso de alguns séculos, que a Igreja tinha errado em relação aos pais da cosmologia moderna, só pode ser má vontade ateísta da parte dos cosmólogos, físicos e astrofísicos actuais a recusa em reconhecer que há assuntos que a ciência não deve tratar porque só a Deus dizem respeito.
Mas faltava «arrumar» uma área científica particularmente delicada e perigosa para a Igreja de Roma: a biologia em geral e a evolução de Charles Darwin, um ateísta confesso, difícil de «vender» como «iluminado pela graça divina». Especialmente delicada porque a evolução impede a leitura «literal» da Bíblia, até aí advogada pela ICAR, e força a aceitação pela Igreja de que as «verdades absolutas» da Bíblia são «verdades simbólicas». Uma verdadeira revolução teológica, cuja repercussão ainda não foi totalmente assimilada pela esmagadora maioria dos teólogos católicos que têm dificuldade em aceitar que não podem sequer recorrer ao pecado original de um mítico Adão e de uma mítica Eva para explicar a necessidade de um Redentor…