Linha dura do Vaticano reafirmada
O Vaticano, mais concretamente o Conselho Pontifício para a família, presidido pelo Opus Dei Alfonso López Trujillo, debitou um documento de 57 páginas reafirmando todas as posições anacrónicas da Igreja de Roma em relação à sexualidade e reprodução.
O documento, intitulado «Família e Procriação Humana», pretende ser uma revisão das posições oficiais da Igreja nas áreas da família e reprodução. Isto é, o documento enfatiza a condenação católica das uniões homossexuais, aborto, inseminação artificial, divórcio, uniões de facto e contracepção «artificial».
E, desiludindo os que esperavam um suavizar das posições neolíticas, diria mais jurássicas, do Vaticano, não é mencionado directamente o desafio do cardeal Carlo Maria Martini à posição oficial da ICAR em relação ao uso do preservativo. Cardeal Martini que sugeriu ser o preservativo um «mal menor» no combate à SIDA, nomeadamente nos casos de casais «tradicionais» em que um dos cônjuges está infectado.
Mas a passagem acerca do aborto que reza «Nenhuma circunstância, finalidade ou lei poderá jamais tornar lícito um acto ilícito porque contrário à lei de Deus» pode ser um prenúncio de que não me enganei quando escrevi «não devemos esperar alterações radicais na posição católica em relação ao uso do preservativo na profilaxia da SIDA».
De acordo com o texto, que pede «castigo» para o aborto, as leis actuais na esmagadora maioria dos países europeus, que não reflectem os ditames do Vaticano, indicam «um eclipse de Deus», eclipse traduzido em leis que não discriminam homossexuais e uniões de facto heterossexuais, permitem «abominações» como a inseminação medicamente assistida, divórcio, contraceptivos e aborto.
Segundo os fundamentalistas do Vaticano é a ausência de Deus a causa da grande crise actual, «que inspira leis contrárias à família tradicional». Considerando que para os teólogos católicos a ausência de Deus resulta necessariamente no Mal devido ao pecado original este discurso tem implicações que uma primeira análise não indicaria.
De facto, toda a prosa agora debitada me recordou a prelecção do cardeal Jorge Medina Estevez, ex-prefeito da Congregação para o Culto Sagrado e a Disciplina dos Sacramentos, que relembrou o mundo católico da presença bem real do Demo, em cuja existência é mandatório acreditar. O cardeal chileno Opus Dei esclareceu que o Demo «Engana os homens persuadindo-os de que não precisam de Deus e que são auto-suficientes». E tem novas armas linguísticas que não hesita em usar: «O Diabo está muito presente, serve-se da mentira e para enganar usa eufemismos. Denomina o aborto interrupção da gravidez e os filhos, cargas. Anima os casamentos entre homossexuais e as leis de divórcio, apresenta o mal como bem, endeusa o dinheiro».
Semelhanças de discurso ainda aparentes na frase constante neste documento «O homem dos tempos modernos radicalizou a tendência para ocupar o lugar de Deus e substitui-lo». Só faltou acrescentar que são possuídos pelo Demo os que são a favor da despenalização do aborto, do controlo de natalidade, do casamento entre homossexuais e do divórcio.
O documento é igualmente uma crónica da guerra anunciada do Vaticano com o governo de Romano Prodi, cujo programa prevê a legalização das uniões de facto e a revisão da lei sobre a inseminação artificial, para além de, pela voz da ministra da Saúde, Livia Turco, ter anunciado a sua decisão de relançar a pílula RU486, proibida em Itália desde Janeiro deste ano pelo grande paladino de óvulos e espermatozóides Silvio Berlusconi.
Como já tinha igualmente previsto, no papado de Ratzinger a ciência em geral e a evolução em particular são alvo preferencial de ataques. Assim, neste documento a ciência é atacada no excerto que, a propósito dos avanços na genética, afirma:
«A ciência e a técnica convenceram algumas pessoas a pensar que tudo é fruto da evolução e que o homem não tem nenhum Deus».