Boas-festas – (Crónica de solstício)
Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória, mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afetos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.
Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.
Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fraturante.
A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem os ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.
Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.
A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afetos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos, que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.
Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que motivam e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.
Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações, que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.
Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou daquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.
Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afetos e saudade.
Que a noite de hoje seja de festa em vossas casas.
Boas-festas, caros leitores.
Perfil de Autor
- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa
- Sócio fundador da Associação República e laicidade;
- Sócio da Associação 25 de Abril
- Vice-Presidente da Direcção da Delegação Centro da A25A;
- Sócio dos Bombeiros Voluntários de Almeida
- Blogger:
- Diário Ateísta http://www.ateismo.net/
- Ponte Europa http://ponteeuropa.blogspot.com/
- Sorumbático http://sorumbatico.blogspot.com/
- Avenida da Liberdade http://avenidadaliberdade.org/home#
- Colaborador do Jornal do Fundão;
- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»
- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:
- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;
- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores
http://www.blogger.com/profile/17078847174833183365
http://avenidadaliberdade.org/index.php?content=165